Uma caixa de sapatos vazia – VirgilioPiñera – Tradução de Cláudia Silveyra D’Avila

Uma caixa de sapatos vazia*

VirgilioPiñera

Tradução de Cláudia Silveyra D’Avila

 

 

Personagens (por ordem de aparição)

 

 

Carlos

Berta

Angelito

O coral

Os mortos de Angelito

 

 

Primeiro ato

 

No fundo do palco, num canto, um sofá-cama, quatro cadeiras (umas sobre as outras) e um tapete enrolado. A meio metro desses móveis, uma caixa de papelão, sem tampa, de uns vinte centímetros de comprimento, de boca para cima.

 

CARLOS: (Em blue-jim, camisa vermelha e de meias [de meias sem sapatos], está sentado no sofá-cama. Com um lenço enxuga-se o suor da cara, do pescoço e dos braços. Ofega. Deixa o lenço sobre o sofá, encosta-se para trás e levanta as pernas. Esfrega-se os pés com ambas as mãos. Deixa de mexer neles. Olha-os.) Outra vez… (Alçando a voz.) Sim, outra vez. (Apoia-se nas mãos e dá um pulo) Jup! (Esfrega-se as mãos.) Hoje acordei com o pé direito… (Coloca-se de trás da caixa.) Vamos ver, vamos ver! (Respira fundo, fica em pé sobre a perna esquerda, esticando a direita para trás o máximo que pode) Aos seus lugares, preparados, partida! (Dá um forte chute na caixa.) Hã, hã! Bom chute. (Corre até o lugar onde caiu a caixa.) Não gostou? Responda: não gostou? (Agacha-se, coloca o ouvido na caixa.) O que é que fala? Que não gostou? (Pausa. Ergue-se.) Pois eu sim. E escuta uma coisa: seguirei gostando. (Pausa. Agacha-se de novo.) Se vou te dar outro chute? Pois é claro que vou te dar mais um e mil! (Ergue-se, apoia-se na perna esquerda, estica a direita para trás, mas pouca coisa.) Dessa vez vou te chutar mais suavezinho… suavezinho… (Dá um chute suave nela.) Assim, assim… Não me diga que te dói. Quase nem te toco. (Dá nela um pontapé mais suave, agora em direção ao proscênio.) Não pode se queixar, estou te dando um tapa suave, sedoso, acolchoado… (Dá um chute um pouco mais forte nela.) Perdoa, dei uma patada. (Chega ao pé da caixa.) E agora? Hã!, hã! E agora? Posso te fazer voar pelos ares. Imagina onde você ia cair! (Chuta com ambos os pés a caixa ao longo de todo o proscênio.) Onde, onde, onde, onde…? (Chegando ao extremo do proscênio, se detém. Crise de nervos. Dá-se pancadas no peito. Grita.) Onde, onde, onde, ondêêê…?

 

 

BERTA: (Que entrou pelos fundos no momento em que Carlos dizia: “Não gostou?”, está sentada no sofá-cama lixando as unhas. Em bermudas e pulôver branco.) O que está passando hoje no cinema?

 

CARLOS: (Vira-se.) Nem sei e nem me interessa. (Pausa. Caminha lentamente em direção à Berta.) Viu?

 

BERTA: (Sem deixar de lixar as unhas e sem olhar para Carlos.) O quê?

 

CARLOS: (Chegando junto a Berta.) O que você acaba de ver.

 

BERTA: (A mesma coisa.) Se você gosta disso…

 

CARLOS: Bom, gosto, sim. Alguma objeção?

 

BERTA: (Olha para ele.) Tá bem, já que você gosta.

 

CARLOS: (Pega o lenço, passa-o pela sua testa.) Você é que gosta?

 

BERTA: Gosto mais de ir ao cinema. Por isso te perguntei…

 

CARLOS: (Interrompe-a.) Deixa o cinema, eh!, te suplico, deixa prá lá. (Vai alterando-se.) Deixa essa merda. (Arrebata-lhe a lixa, e a joga fora.) E o esmalte prás tuas unhazinhas, e o xampu prá tua cabecinha, e o batom prá tua boquinha… (Pausa) E eu não quero, está me ouvindo? , não quero falar daquilo, mas sim disto. Isto é o que me interessa, não o outro ou o além…

 

BERTA: (Sem alterar-se.) Posso saber o que é o teu Isto?

 

CARLOS: (Corre, pega a caixa, enquanto volta junto a Berta.) Isto é esta caixa, esta caixa de papelão, de cor branca, de uns vinte centímetros de comprimento. Uma caixa de sapatos. (Coloca-a diante dos olhos dela.) Tá vendo? Vazia.

 

BERTA: E o que mais?

 

CARLOS: (Aponta ao sofá.) Estava aí.

 

BERTA: Esqueci ontem à noite. (Pausa.) Se quiser ela para guardar alguma coisa, posso te dar a tampa.

 

CARLOS: Não preciso dela, tenho a caixa, é o suficiente. (Pausa.) Sabe o que me chamou a atenção?

 

BERTA: (Mofando.) Não me diga! Então isto (acentua “isto”) te chamou a atenção? (Pausa.) Pois a mim, não. Se eu vejo ela no sofá, a pego, boto nela a tampa, coloco ela na privada ou quebro ela em quatro pedaços e boto fogo nelas.

 

CARLOS: E o que mais, Berta?

 

BERTA: É isso.

 

CARLOS: Tem certeza?

 

BERTA: A não ser que me ocorra escrever um conto para crianças. (Em tom narrativo.) Uma caixa de chapéus falou para uma caixa de sapatos: Eu sou maior do que você. E a caixa de sapatos respondeu…

 

CARLOS: (Interrompendo-a.) Não me interessa. Não sou uma criança. Me fala outra coisa.

 

BERTA: Bom, então um conto para adultos. (Em tom narrativo.) Advertiu com horror que o que estava na caixa de sapatos era a mão cortada de um homem … (Pausa.) Gostou?

 

CARLOS: Não, isso não serve, é literatura. (Pausa.) Essa caixa me chamou a atenção porque… (Cala-se.)

 

BERTA: (Ri.) Tá vendo? A tua caixa não presta mais.

 

CARLOS: Espera aí. Eu fiquei quieto para produzir um efeito de “suspense”.

 

BERTA: Ah! “Suspense”… Recurso gasto. Melhor ir direto ao assunto.

 

CARLOS: Bom. (Pausa.) Pois me chamou a atenção porque vê-la e pensar que era algo que se podia chutar foi tudo uma.

 

BERTA: Não é grande coisa. Também os rapazes pensam isso e o fazem.

 

CARLOS: (Levantando a voz). No começo foi um pensamento infantil: fazer qualquer coisa o que for, cortar a cauda aos lagartos, derrubar ninhos das árvores, levantar a saia da criada… (Pausa.) Mas depois, Berta, depois… (Cala-se.)

 

BERTA: Deixa o “suspense”, não?

 

CARLOS: (Angustiado.) Agora não é “suspense”. Mas tenho medo de falar isso para você. (Pausa) Você vive tão nas nuvens… (Pausa.) Bom, não é só você, quase todo o mundo vive nas nuvens: a pintura Pop, a literatura Camp, a música concreta, e, naturalmente os Beatles.

 

BERTA: (Em tom de acusação) Você gosta de tudo isso.

 

CARLOS: Gosto, gosto. Eu vivo também nas nuvens. Não nego isso. (Pausa.) Mas hoje, esta caixa de papelão, me fez botar os pés no chão.

 

BERTA: Aliás, não tenho muita certeza que ouvir os Beatles seja estar nas nuvens. Por aí falam que eles refletem a época.

 

CARLOS: Bom, sim, a refletem, mas, como ao fim e ao cabo os Beatles, não são mais do que um de tantos long-plays, a época se vê como uma festa. (Pausa.) Em contrapartida, esta simples caixinha de papelão é, em si mesma, um horror, uma angústia e uma violência.

 

BERTA: (Ri.) Grava essa descarga e você vai virar famoso como os Beatles.

 

CARLOS: Ria, é o teu direito. Mas também eu tenho o meu, meu direito, e vou exercê-lo. (Pausa.) Vem.

 

BERTA: (Sem mover-se) Estou muito cansada. Além disso, isto não tem pé nem cabeça.

 

CARLOS: Já vai ver se tem ou não tem. Vem.

 

BERTA: Tá bom, vou. (Levanta-se.)

 

CARLOS: (Pega a mão de Berta, levando-a ao centro da cena, coloca a caixa ao seus pés.) Chuta ela.

 

BERTA: (Com assombro.) Você está sob os efeitos do LSD? (Pausa.) Então vamos passar a manhã toda comendo merda. Problema seu. Eu vou me vestir. (Começa a andar.)

 

CARLOS: (Pega ela dum braço, a leva de volta onde estava.) Dá nela um chute com a tua patinha.

 

BERTA: Se você insistir… (Dá na caixa um ligeiro pontapé.)

 

CARLOS: Isso não serve. Tem que chutar forte. Bota o pé direito para atrás, coloca as mãos no quadril, assegura o equilíbrio e chuta forte.

 

BERTA: (Já em posição.) Lá vai! ( Dá na caixa uma forte patada.)

 

CARLOS: (Pega-a no braço e a leva-levando-a até onde caiu a caixa.) É uma boa patada. (Pausa.) Agora dá outra nela.

 

BERTA: (Gritando.) Com que direito? Você acha que vou passar a manhã toda dando patadas nessa caixa? Tenho mil coisas prá fazer. Vou embora.

 

CARLOS: (pega-a pelo pescoço.) Vem cá, garotinha.

 

BERTA: (Debatendo-se e chorando.) Você está louco? Com que direito?

 

CARLOS: Com o direito do mais forte. Aqui sou eu o mais forte. Em outra parte posso ser o mais fraco, mas aqui, Berta, aqui sou o mais forte. (Pausa.) Não se desanime. A caixa é mais fraca do que você. Vai, aproveite, dê uma patada nela.

 

BERTA: E o que eu ganho, fala prá mim, o que ganho dando patadas nela?

 

CARLOS: na hora certa eu te digo, mas agora dê patadas nela.

 

BERTA: E se eu me negar?

 

CARLOS: (Acaricia o cabelo dela.) Então eu começo a dar patadas em você.

 

BERTA: Você se atreveria?

 

CARLOS: (Levantando sua mão direita.) Eu juro.

 

 

BERTA: Você está brincando.

 

CARLOS: (Acentuando.) Estamos brincando os dois.Os dois. Você e eu.

 

BERTA: Mas eu não quero brincar.

 

CARLOS: Mas eu quero. Chute ela.

 

BERTA: Tenho medo.

 

CARLOS: O quê?

 

BERTA: Chutar a caixa. Não sei explicar, mas me dá medo.

 

CARLOS: A mim também.

 

BERTA: Está vendo? Não vamos.

 

CARLOS: É preciso continuar. (Pausa.) Logo depois virão as explicações.

 

BERTA: Quando?

 

CARLOS: Depois de cumprir o ritual.

 

BERTA: Não vai me dizer que dar chutes numa caixa de sapatos é um ritual.

 

CARLOS: É sim, como uma missa. A nossa. Só que em vez de cantada, chutada.

 

BERTA: Um ritual para loucos. (Pausa.) Você insiste? Outro chute?

 

CARLOS: Como Sumo Sacerdote te ordeno isso.

 

BERTA: (Inclina-se ceremoniosamente.) As ordens não se descutem. (Se coloca em posição.) Aí vai (Dá um chute na caixa em direção ao fundo do palco.) Gol!

 

CARLOS: (Sem mover-se) Agora brinca com ela.

 

BERTA: Você gosta de abusar, hein? Falo para ela me pedir perdão?

 

CARLOS: (Imperativo.) Deixa as cretinices. Quando é que você ouviu uma caixa pedir perdão? (Pausa.) Ela não tem arte nem parte nesta missa. É tão só um instrumento. O nosso instrumento.

 

BERTA: Que triste a sina desta caixinha! (Com voz gutural.) No altar do sacrifício a vítima propiciatória aguarda a hora fatal. (Pausa. Solta uma gargalhada.) Então ela é o nosso instrumento. Não é um cachorrinho, nem gatinho e sem mesmo uma rãzinha… algo que sinta e padeça. Não, é ela, que não existe.

 

 

CARLOS: Que você exista e eu exista é suficiente para o jogo. (Pausa.) E agora, menos palavras e mais ação. Vamos, brinca com ela.

 

BERTA: O que faço?

 

CARLOS: Dá uns chutes suaves nela, leva-a de um a outro lado, fala com ela.

 

BERTA: Não te entendo. Você acaba de dizer que ela não fala, nem vê, nem ouve e nem sente.

 

CARLOS: Ela não, mas você existe. Você pode sim falar para ela. Por exemplo, pode perguntar para ela: “Não gostou?”.

 

BERTA: (Maquinalmente dá chutes suaves na caixa e fala para ela.) Não gostou?

 

CARLOS: Ehhhhhh! Se agacha, bota o ouvido na caixa.

 

BERTA: (Ela faz.) O que você diz? Que não gostou? (Interrompe-se, grita.) Não posso mais! não posso mais!

 

CARLOS: (Aproxima-se, tapa a boca dela, está agitado). Isso não forma parte da missa. Aqui o profano nada tem a ver. Leva o teu problema emocional ao psiquiatra. Ele oficiará a sua missa, você será o acólito dele e então poderão gritar até se esgoelar. (Pausa.) Prossigamos a nossa missa. Insulta ela.

 

BERTA: (Sem calor.) Hipócrita.

 

CARLOS: Algo mais forte. Algo, que como a patada, golpeie.

 

BERTA: Filha da mãe.

 

CARLOS: Mais bruto.

 

BERTA: Puta ruim.

 

CARLOS: Isso é bem melhor. (Dá um chute na caixa.) Cafajeste. (A Berta.) Bate nela com a língua e com a pata.

 

BERTA: (Chuta na caixa em direção a Carlos.) corja, escarro.

 

CARLOS: (Chuta a caixa em direção a Berta.) Sapatão.

 

BERTA: (Chuta na caixa sentido-direção a Carlos.) Punheteira.

 

CARLOS: (Agacha-se, pega a caixa.) Fim do primeiro tempo. Um minuto de recesso. (Coloca a caixa no centro da cena. A Berta.) Você queria saber que filme estão passando?

 

 

BERTA: Queria.

 

CARLOS: Estão passando este. Olha.

 

BERTA: Gosto desse jogo. Vamos ver.

 

CARLOS: (Acende um fósforo e o mantém na sua mão até consumir-se.) Qual o título?

 

BERTA: (Rápido.) “A luz que agoniza” (Pensando.) Me fala o título deste. (Como se apunhalasse alguém, depois olha suas mãos, depois começa a tremer como seestivesse com frio.)

 

CARLOS: (Pensando.) “Sangue sobre a terra.”

 

BERTA: Tem sangue, mas não sobre a terra. Você se dá por vencido?

 

CARLOS: Me dá mais uma chance. Vamos ver… (Pensando.) “Torrentes de paixão.”

 

BERTA: Não. (Pausa.) Se dá por vencido?

 

CARLOS: Você também é do caralho… Botas cada titulozinho. Anda, fala.

BERTA: “Lady Macbeth na Sibéria”

 

CARLOS: Porra, que fácil de adivinhar: a punhalada, as mãos da Lady Macbeth Siberiana, o frío. (Pausa.) Escuta este. Se você adivinhar, eu te pago o cinema um mês inteiro.

 

BERTA: Tá bom.

 

CARLOS: (Com o punho de sua mão direita fechado deixa livre o dedo indicador e o move uma vez só. Ato seguido, toca-se o rosto. Depois com a mão direita aberta, a eleva à altura de sua cabeça, vaárias vezes de direita à esquerda.) Adivinha se puder.

 

BERTA: Pois claro que posso. “Um rosto na multidão” (Pausa.) Quero ver se sabe como se intitula este.

 

CARLOS: Nada disso, queridinha. Acabou o recesso. (Com voz de anunciador.) Segundo tempo. (Pausa.) Vamos chamá-lo “A imolação.”

 

BERTA: Coitada da caixinha.

 

CARLOS: Ri agora, depois vais chorar.

 

BERTA: Joia, então não oficiarei neste segundo tempo. Guerra avisada…

 

CARLOS: Precisamente, é essa a palavra para dar ao nosso espetáculo um título geral: a guerra. (Pausa.) E guerra avisada. E se é avisada ninguem pode desertar. E quem desertar vai ser fusilado sumarissimamente. (Pausa.) Você oficia ou não oficia?

 

BERTA: Se não tem outra saída… (Pausa.) O que acontece agora?

 

CARLOS: Agora temos a caixa na pedra do sacrifício. Está vendo? Indefesa. Não pode escapar. Também não pode cozinhar, costurar, sair para fazer compras, brigar com a vizinha, tomar banho, pintar as unhas…

 

BERTA: Pode encomendar sua alma a Deus.

 

CARLOS: E você acha que ela é tão idiota como para perder o pouco tempo que tem de vida encomendando a sua alma a Deus? (Pausa.) Faz algo bem diferente. Olha bem. (Pega Berta no braço.) Se agache. (Berta agacha-se, Carlos deita-se no chão.) Planeja a fuga. Caramba! (Move a caixa.) Se move. Está vendo? É uma artista. Nós filosofando, e ela, Berta, ela na prática… Um passinho agora, outro depois, e olhos que te viram ir…

 

BERTA: (Levanta-se.) Isto começa me dar vontade de vomitar. Te juro. Isso de imolá-la é uma coisa mas daí chegar à tortura… Problema seu se você gosta. Eu vou embora.

 

CARLOS: (Levanta-se, pega Berta na cintura.) Você fica. Sou o número um neste ritual e você é o número dois. Portanto você fica. A tortura é parte do ritual. Tá certo? (Pausa.) Então prossigamos.

 

BERTA: Teu coração não amolece? É tão pouca coisa, tão fragil.

 

CARLOS: Pouca coisa esta safada? Olha o trecho que percorreu enquanto discutíamos. (Pega a caixa e a coloca sobre seu peito.) Degenerada!

 

BERTA: Está chorando, não a está ouvindo? Nos pede perdão. Toma cuidado para ela não te cagar.

 

CARLOS: (Aparta a caixa de seu peito.) É coisa normal. O terror relaxa o esfíncter. Primeiro o torna tenso, depois sobrevém o desabamento. O corpo inteiro é manteiga, gelatina, saliva. E o que dizer de suas tripas? Elas são altamente sensíveis, são sua high-fidelity. No primeiro sinal de terror o corpo escorre em merda.

 

BERTA: (Gritando.) Porco!

 

CARLOS: Merda é a única palavra que pode refletir o estado de terror em que um ser humano se encontra. Se eu dizesse essas fezes estaria manifestando que o doente padece de lombrigas(Ri.)

 

BERTA: Não gostaria estar na pele da nossa caixinha.

 

CARLOS: Eu também não. Para… (Cala-se.)

 

BERTA: Não cala não. Continua.

 

CARLOS: Para preservar a pele da gente é preciso esfolar a a pele de outra pessoa.

 

BERTA: E se esse outro te rompe a tua pele para preservar a dele?

 

CARLOS: É isso que se tem que evitar. Evitar por todos os meios e custe o que custar.

 

BERTA: Que eu saiba, a ninguém pretende romper a nossa pele.

 

 

CARLOS: (Num ataque de histeria, Carlos golpeia Berta na boca.) Cala a boca. Você me enche o saco com a tua filosofia barata. Já te falei, quando você quiser se analisar vai ao psiquiatra. Aqui estamos na missa, está me ouvindo? Na missa.

 

BERTA: (Passa as mãos pela boca.) A única coisa que falta é você me assassinar. Me avisa quando esse momento chegar para eu fazer as minhas orações.

 

CARLOS: Senso do humor. Não está ruim. (Acaricia-a.) Me perdoa. A mão deve me cair por ter batido em você. Perdi o controle. (Pausa.) Acontece que tudo isto é muito sério para mim. E gostaria que também você o levasse a sério.

 

BERTA: Mas eu levo a sério! Olha tanto eu levo a sério que estou a ponto de vomitar. (Faz uma curvatura.)

 

 

CARLOS: Não, por favor, não vomite aqui. Este é um lugar sagrado. Vai no banheiro.

 

BERTA: O que você acha de eu vomitar em cima dela? (Faz um gesto de pegar a caixa.) Me dá.

 

CARLOS: Sabe que gosto dessa parte? Só que… ( Cala-se.)

 

BERTA: Só que, cara, só que…? Consideração por essa puta?Você fala muito, mas no final se abranda. (Pausa.) Me dá ela. (Faz outro gesto de pegar a caixa.) Vou enchê-lá até o topo com meu vômito. Depois você mija nela. E se ela não gostar, se começar a gritar, então vamos fazer com ela coisa pior.

 

CARLOS: Coisa pior do que essas? Berta, quais?

 

BERTA: Imagina, o outro, o gordo.

 

CARLOS: (Mais excitado.) E o que mais, Berta, o que mais?

 

BERTA: Pode emprenhar ela, e quando tiver um barrigão grande assim (coloca as mãos diante da barriga) dá chutes nela e mais chutes.

 

 

CARLOS: (O mesmo.) Tá ouvindo, puta? (Dá dois socos na caixa.)

Vou te inchar a barriga. (Bota a caixa no seu sexo.)

 

BERTA: (Bastante excitada, aos gritos.) Incha ela, porra, incha ela.(Bota o ouvido na caixa.) O que é que está dizendo? Que você não pode ficar prenha porque tiraram a tua matriz e os ovários? Não acredito em ti. (Bota novamente o ouvido.) Jura que é verdade? Pois então vamos te encher até os topos com o gordo (Acesso de risada.)

 

CARLOS: (Afastando Berta.) Solta ela já (Pausa.) Se a gente continuar assim, ela vai morrer de susto. E ela, Berta, certamente está desejando essa morte. Imagina, quando você morre de um susto é questão de um segundo. (Pausa.) Assim pois, de acordo com o nosso ritual, procedamos à imolação da caixinha. (Coloca, boca abaixo, a caixa no centro da cena.) Berta…

 

BERTA: (Coloca as mãos nas costas. Suplicante.) Não, Carlos! Eu não. Nunca matei. Não saberia fazer isso!

 

CARLOS: É questão de aprender. E sabe como? Matando.

 

BERTA: (Mofando.) Olha quem fala! Teus únicos mortos são as moscas e os mosquitos.

 

CARLOS: Não nego, mas isso não quer dizer que a partir de hoje… ( Faz o gesto de degolar.)

 

BERTA: Então, mata você.

 

CARLOS: Vou te dar esse prazer, mas tenha em mente que você também terá o teu mortozinho. Logo verás… Logo verás…

 

BERTA: Não quero matar.

 

CARLOS: Você não quer, mas tem que fazer. (Pausa.) Por hoje você se salvou; amanhã você matará. (Pausa) Bem, como o algoz sou eu, você será o sacerdote. Administra a ela os auxílios espirituais.

 

BERTA: (Ajoelha-se diante da caixa, de costas ao público. Junta as mãos, inclina a cabeça.) Beee, beee, beee! (Os balidos vão ficando mais estrondosos.)

 

 

CARLOS: (Enquanto Berta grita “beee”, Carlos que já tinha saído pela porta do fundo, regressa instantaneamente calçando no seu pé direito uma bota de borracha preta que lhe chega até o começo do joelho. Coloca-se diante de Berta.) Me ajuda.

BERTA (que em nenhum momento deixará de balir, ajoelha-se junto a Carlos, pega a perna direita dele e a levanta. Em seguida vai baixando-a lentamente até colocá-la acima da caixa, embora sem tocá-la. Retira as mãos).

 

 

CARLOS: (Gritando.) A-ção! (Berta deixa de dizer “beee”. Carlos esmaga a caixa. Pausa longa. Senta no solo, tira a bota, coloca-a a um lado. A Berta.) Final do segundo tempo. Um minuto de recesso.

 

BERTA: (Com assombro.) Como! Não acabou a missa com a eliminação física da vítima? Se pretender me levar até a mesa, já te comunico que não vou me prestar ao teu jogo. São as dez da manhã. Às onze tenho cabelereiro. À uma almoço. Às duas Universidade. Vou embora.

 

CARLOS: Sempre acabas teus discursinhos com um “vou embora”. Então, vai, garota, vai embora.

 

BERTA: (Com assombro.) Quer que eu vá embora? Posso ir?

 

CARLOS: Pode.

 

BERTA: Mas acaba de dizer que falta o terceiro tempo da missa.

 

CARLOS: E aí?

 

BERTA: (Hesitando.) Bom… Não sei… Estou pensando…

 

CARLOS: Pensa o que mais gostar, mas se quiser ir embora, vai. (Pega a bota e a lança ao sofá.)

 

BERTA: (Nervosa.)Não te entendo. Antes me prometeu um monte de chutes se eu fosse embora, e agora você me deixa ir.

 

CARLOS: (Com voz de falsete) Antes… Agora… (Pausa.) Velha, me solta já. Vá embora de uma vez.

 

BERTA:Você me põe para fora?

 

 

CARLOS: (Mofando.) Eu te botar fora, meu amor? É voce quem quer ir embora

 

BERTA: E se eu ficar?

 

CARLOS: Fica.

 

BERTA: Te faço falta realmente?

 

CARLOS: Nenhuma.

 

BERTA: (Aproxima-se, acaricia-o.) Você está atuando?

 

CARLOS: Neste momento não.

 

BERTA: Então, o que eu faço?

 

CARLOS: Não estava indo embora?

 

BERTA: Não vou ficar para continuar na mesma.

 

CARLOS: Te explica.

 

BERTA: Continuar chutando e esmagando a caixa.

 

CARLOS: Joia!

 

BERTA: Foi chutada, torturada, imolada. Uma vez, tudo bem, mas duas, isso fede.

 

CARLOS: Quer dizer que para você o jogo acabou?

 

BERTA: Claro que sim!

 

CARLOS: Então, vai embora.

 

BERTA: E você?

 

CARLOS: Eu fico.

 

BERTA: Então, para você ainda não acabou.

 

CARLOS: Claro que sim!

 

BERTA: (Agressiva.) Você é um safadinho-canalhazinho. Quem você acha que é? Ouça bem o que vou te dizer: brinca com tua caixinha, mas a mim, me solta. (Aproxima-se dele.) Não me procure porque aí você vai me encontrar… Cê está pedindo um chute na bunda.

 

CARLOS: (Imperturbável) Então me dá. (Agacha-se.)

 

BERTA: (Gritando.) Vai tomar no cu, veado! (Vira

as costas para ele.)

 

CARLOS. (Gritando.) Me dá!

 

BERTA: (Gritando) Vê se vai tomar no cu, veado. (Vira-se e dá um forte chute nele. Carlos cai de bruços. Berta perde o equilíbrio, cai também. Crise histérica significada em socos contra o chão.) Veado! (Levanta-se e começa a dar chutes [nele] por todo o corpo.) Vem cá, seu veado!(Pega-o por ambas as mãos, o levanta. Carlos se relaxa ao ponto de parecer um fardo) Vou te romper esse cu fedorento.(Dá nele dois chutes.) E aqui eu fico.

 

CARLOS: Fica.

 

BERTA: Fico, não. Fico porque me dá prazer (Toca o sexo dela.) Vamos, continua com a tua missa de merda. (Dá nele um empurrão.)

 

 

CARLOS: Perfeitamente. (Pausa.) Terceiro tempo. O chamaremos “O interrogatório”.

 

BERTA: E isso por que? A caixa está morta.

 

CARLOS: Mas você não. (Agressivo.) Vou te interrogar.

 

BERTA: A mim mesma? E o que vai me perguntar? Você acha que vou gastar saliva falando para você que em tal dia, em tal lugar, a tal hora, dois assassinos chamados Carlos e Berta torturaram e mataram uma infeliz caixinha? Isso até os cachorros o sabem!

 

CARLOS: Esses são os fatos. Falta que o discutamos. (Pausa.) Você. (Toca no peito dela) E eu. (Toca-se no peito.)

 

BERTA: (Arremedando e fazendo a ação de Carlos.) Você e eu… Parece uma pieguice de Canção Picuá. (Pausa. Vozerio.) Pois olha rapaz, você e eu não temos nada para discutir. … Ao fim e ao cabo, este conto se dá por terminado.

 

CARLOS: (Aproxima-se dela, a pega pelos pulsos, agressivo.) Este conto ainda não terminou. Está louquinha por ver como acaba. (Solta-a.)

 

BERTA: (Arremedando a voz de Carlos.) E como acaba?

 

CARLOS: Pensa duas vezes. Olha que acaba muito mal. Isto não é de happy ending. Vamos, se decida.

 

BERTA: E como acaba?

 

CARLOS: Você vai ver. (Pausa.) Chapeuzinho Vermelho foi à floresta e encontrou-se…(Pausa.) Com quem se encontrou?

 

BERTA: Contigo.

 

CARLOS: Correto. (Pausa.) O que ele te perguntou?

 

BERTA: Me perguntou: “Chapeuzinho, você fica para o interrogatório?”

 

CARLOS: E você o que respondeu para ele?

 

BERTA: Eu fico.

 

CARLOS: Magnífico. (Pega duas cadeiras, as coloca uma diante da outra de modo que os atores sejam vistos de perfil.) Senta.

 

BERTA: (Senta-se.) Sento, pode me interrogar, pode me… torturar.

 

CARLOS: (Senta-se, extende a perna direita.) O que é isto?

 

BERTA: O que vai ser! Uma perna.

 

CARLOS: Não.

 

BERTA: Não?

 

CARLOS: Não. Pensa.

 

BERTA: (Pensando.) Uma pata?

 

CARLOS: Correto. (Levanta a mão direita.) E o que é isto?

 

BERTA: O que vai ser? Uma mão.

 

CARLOS: Não.

 

BERTA: Não?

 

CARLOS: Não. Pensa.

 

BERTA: (Pensando.) Já sei! É uma garra.

 

CARLOS: Correto. (Pausa. Pega a cabeça com ambas mãos) E o que é isto?

 

BERTA: Uma cabeça.

 

CARLOS: Não.

 

BERTA: Não?

 

CARLOS: Não. Pensa.

 

BERTA: (Pensando.) Um cérebro.

 

CARLOS: Correto. (Pausa.) Agora pode me dizer o que o cérebro ordena fazer com a garra?

 

BERTA: O cérebro fala para a garra: agarra. (Faz a ação.)

 

CARLOS: E que mais?

 

BERTA: Desgarra. (Faz a ação.)

 

CARLOS: E o que fala para a pata.

BERTA: Chuta. (Faz a ação.)

 

CARLOS: E que mais?

 

BERTA: Esmaga. (Pausa.) Algo mais?

 

CARLOS: (Ri.) Isto é só o exórdio do interrogatório. Estou cheio de perguntas.

 

BERTA: (Fazendo gesto de levantar-se.) Então deixa para lá. Não gosto do joguinho. Você sabe a hora e o minuto em que começam a te interrogar, mas não sabe nem a hora nem o minuto em que vão deixar de fazê-lo. (Pausa.) Ainda lembro das perguntas daquele Juiz quando do julgamento por aquela coisa da batida…

 

CARLOS: Não me diga!

 

 

BERTA: Ele meteu na cabeça que eu tinha batido porque estava bêbada. (Pausa.) Sabe até onde ele chegou com as perguntinhas dele? Pois a que eu enumerasse para ele as melhores marcas de uísque. E as falei para ele.

 

CARLOS: Boba, ele estava te caçando.

 

BERTA: Claro que me caçou. Falou para mim que com o uísque bom se bate, e com o ruim também.

 

CARLOS: Te enredou. Isso foi o que fez: emaranhar-te.

 

BERTA: Acho também, porque, me diga você, o que tinha a ver o uísque, bom ou ruim, em tudo isso?

 

CARLOS: Sempre brincam com a gente. Puxam e tiram e no final você fica vazio.

 

BERTA: Por isso mesmo não gosto deste jogo. Se proseguirmos vou me inteirar de coisas muito desagradáveis.

 

CARLOS: E tão desagradáveis! Mas não tem mais saída. (Pausa.) Bom, outra pergunta. (Pausa. Estende de novo a perna.) O que é isto, Berta?

 

BERTA: (Agressiva.) Me escuta bem: aceito fazer o papel de boba, mas o de dois bobos o faz a puta da tua mãe. (Arremedando Carlos estica a perna direita.) O que é isto? Carlos, o que é isto? (Pausa.) Entrei no teu joguinho, te falei que era uma perna. Você falou que não era uma perna. Então eu adivinhei e te disse que era una pata. E você falou para mim: “o que faz a pata?” Eu eu te falei, e você falou: “correto”. E continuou com a garra e com o cérebro. E agora você volta indiretamente… (Levanta-se.) Te vejo vir: quer me enlouquecer, mas antes te mato. (Pega a cadeira e faz gesto de esmagá-la na cabeça de Carlos.) Primeiro te mato. (Dá uma cadeirada na cabeça de Carlos.)

 

CARLOS: (Com [angústia] aflição.) O que é isto, Berta?

 

BERTA: (Coloca a cadeira perto daquela de Carlos. Para o ouvido dele.) Não me procure, Carlos, não me procure que vai me encontrar…

 

CARLOS: (O mesmo.) O que é isto, Berta?

 

BERTA: Já te falei, mas embora fosse outra e embora o soubesse, não vou te falar. Pergunta ao Juiz, ao cura, ao padeiro, ao leitero, ao mecânico, ao mestre-escola, ao pintor, ao pianista, ao carteiro, ao escultor, pergunta à buceta da tua mãe.

 

CARLOS: (Gritando.) O que é isto, Berta?

 

BERTA: (O mesmo.) É isso o que você quer que eu te fale, mas eu já te falei e não vou repetir. (Pausa.) Em contrapartida, vou te falar que deste novo joguinho gosto sim e que vamos continuar jogando. (Pausa.) Isto (toca a perna dele), é uma perna de porco assada, tua cerda perna de porco que você mesmo assou para eu me dar um banquete com ela. Deixa eu prová-la. (Dá um mordisco na perna) Deliciosa! (Pausa.) Vai, experimenta, eu te permito.

 

CARLOS: (Gritando e retorcendo-se.) O que é isto, Berta?

 

BERTA: Bom, agora não é uma perna de porco; agora é uma bosta, um excremento, uma merda. Fique sabendo.

 

CARLOS: (Relaxando-se.) Tá vendo, meu amor? No final você acertou na mosca. (Pausa.) Isto é uma merda! (Toca-se na mão.) E isto também. (Toca-se na cabeça.) E isto? Nem falar… Isto é a merda maior de todas as merdas. (Toca-se o sexo.) E isto é uma reverenda merda. (Pausa.) Não tenho nem pata, nem garra, nem cérebro. O que tenho é merda, e eu sou uma pura merda.

 

BERTA: Joia! Assim sendo o capanga é uma merda. (Levanta-se.) E toda esta missa é outra merda.

 

CARLOS: Uma merda entre merda, mas mesmo assim é necessário rezá-la. Uma missa profana para doentes sem esperança nenhuma [condenados]. (Pausa.) A missa da minha vida; em contrapartida, uma missa sagrada para matadores não é a missa da minha vida, mas…

 

BERTA: Mas que… Você é uma merda e um cara de merda só coleta merda, recolhe merda e a come.

 

CARLOS: (Gritando.) Mas… Berta, você não comprende, tem que comprender… (Abraça-a.) Meu amor, olha para mim, estou tremendo; vou cair em pedaços aqui mesmo, vou escorrer em merda. (Pausa.) Mas tenho de aprender; se não aprendo, me matam, e não significaria nada que o fizessem, mas ser excluído do mundo que mata é não estar no mundo, neste mundo, neste mundo de meus vinte anos, não no do meu pai nem no do meu avô, nem sequer, Berta, no mundo por fazer. (Pausa.) Se não mato, me matam; se não aprendo, me esquecem; se não esmago, me esmagam; se não vivo como eles, morro, e eu quero viver, Berta, embora seja matando.

 

BERTA: Me esclareça: Toda esse desabafo faz parte da missa? Quero saber onde estou pisando. Agora devo te dizer: Carlos, a primeira coisa na vida é viver, viver seja como for. Assim pega a pistola e mata até cair o teu braço?

 

CARLOS: Agora não estamos na missa. Agora somos o que somos. E somos merda.

 

BERTA: Então, o que te respondo?

 

CARLOS: Nada, tão só me abraça.

Berta o abraça. A luz começa a decrescer. Ambos, sempre abraçados, começama cair lentamente.

 

BERTA: Como se sente?

 

CARLOS: Bem.

 

BERTA: Vamos finalmente ao cinema?

 

CARLOS: Como você quiser.

 

BERTA: Verdade que você está sentindo bem?

 

CARLOS: Verdade. E você?

 

BERTA: Igual, bem.

 

CARLOS: Você já descansou?

 

BERTA: Já.

 

CARLOS: (Levanta-se de um pulo. A luz volta.) Tenho que aprender a matá-lo.

 

BERTA: A quem?

 

CARLOS: Esse cara que quer me matar.

 

BERTA: Eu conheço ele?

 

CARLOS: Não, você não o conhece, e eu também não.

 

BERTA: Então…

 

CARLOS: Quando vier o conheceremos. Se chamará João, Pedro, Arturo,ou Carlos, como eu, ou lhe dirão “Pata de Ferro” ou “Cuspe pelo canino” ou “ Dez mortos no café da manhã…”

 

BERTA: Como você sabe que virá?

 

CARLOS: Hoje é a vez dele.

 

BERTA: Então, tem vindo outras vezes?

 

CARLOS: Nunca falha.

 

BERTA: Rapaz. Já sei… O cara do blue-jim preto, com tênis brancos que olha com um olho para cá e outro para lá… porque o cabelo cai sobre a testa dele. Escutaaa! o dinheiro caiu!

 

CARLOS: Entra assim (como se apuntasse com duas pistolas), e fala: “Chegou Angelito, cumprimentem”.

 

BERTA: (E coro.) Bem-vindo, Angelito.

 

CARLOS: Então ele me pega por aqui. (Com sua mão direita pega por trás do colarinho de sua camisa. Ao mesmo tempo, faz como se chutasse alguém no traseiro) Senta ali. (Carlos, tropeçando, deixa-se cair numa cadeira, e deixa-se pendurar os braços e abaixa cabeça.)

 

BERTA: (Levanta-se, senta-se na outra cadeira.) O que faz agora?

 

CARLOS: (Mantendo a mesma posição.) O que Angelito falar.

 

Apaga-se a luz.

 

 

 

 

Ato Segundo

 

Carlos está na mesma posição do final do Primeiro Ato. Berta, agora de mini-saia, sentada no sofá-cama, lixa as unhas. Angelito em pé diante de Carlos. Veste blue-jim preto, camisa preta, tênis brancos. A mesma cenografia.

 

ANGELITO: (A Carlos.) Levanta.

 

CARLOS: (Levanta a cabeça devagar e olha para ele.) Outra vez?

 

BERTA: (A Carlos.) Se você começar com as tuas perguntas bobas, vou embora. Ontem você brilhou. Vinte minutos a mais que não estavam no programa.

 

 

ANGELITO: (A Berta.) Não se meta nos nossos assuntos.

 

BERTA:(A Angelito.) Não me diga! Estou metida nisto até o pescoço.

 

ANGELITO: (A Berta.) Metida, mas quando chegar a tua vez. Agora fecha o bico. (Pausa. A Carlos.) Levanta.

 

CARLOS: (Levanta-se com esforço.) Um dia desses…

 

ANGELITO: Um dia desses quê… (Pausa.) Te coloca no lugar de sempre.

 

CARLOS: Um dia desses não me coloco mais.

 

ANGELITO: Prova. (Aproxima-se dele.) Tenha culhões para fazer isso. Quando alguém é um merda se cala. Se algum dia você chegar a ter culhões,vai poder falar. E falar para mandar. (Pausa.) Te coloca ali.

 

CARLOS: (Caminha lentamente até o centro da cena.) Você acha que vou aprender?

 

ANGELITO: Difícil. A mim ninguém resiste. (Pausa.) Dobra as costas.

 

BERTA: (Levanta-se. A Carlos.) Você é um merda. Angelito é um chefe (Chega junto a Angelito, abraça-o.) O que é que você me diz desse menino lindo?

 

ANGELITO: Tenho pena dele, juro que tenho. E asco. Nunca vai aprender nada de nada.

 

CARLOS: Quando você menos esperar vai ter uma surpresa.

 

ANGELITO: Nesse dia me mata rápido. Do contrário você não conta o conto.

 

CARLOS: Confia na bichona. Um dia ela decide que isto se faz e isto não se faz e todo mundo de boca fechada.

 

BERTA: (A Angelito. Pondo a mão direita na orelha [para ouvir melhor].) Chefe, ouviu o que eu? (Baixando com o dedo índice de sua mão direita a pálpebra de seu olho direito.) Viu o que eu? (Passando suas mãos por todo o corpo) Sentiu o que eu?

 

ANGELITO: Não se consola quem não quer… (Pausa. A Carlos.) Agora vou te dar o primeiro chute desta tarde. Naturalmente, você vai permitir que eu te dê, você vai rodando até cair aonde a gente combinou, eu vou chegar junto de ti, vou te chutar de novo, você vai rodar de novo, e assim prosseguiremos. (Pausa.) Ai vai! (Chuta ele)

 

BERTA: Deixa a bunda dele como um tomate.

 

ANGELITO: (Chega junto a Carlos, que tem rodado até cair de bruços perto do proscênio.) Não gostou? Responda. Não gostou? (Agacha-se.) Pois eu, sim. E olha: vou continuar gostando. (Ergue-se.) Que tal eu te dar mais chutes? Claro que sim! Mas desta vez te chuto suavezinho. (Dá nele um chute suave) Não me diga que doeu. Quase nem te toquei. Não pode se queixar: estou batendo em você suave, sedoso, acolchoado…

 

CARLOS: (Levanta-se.) Você já pensou que esse jogo pode ter um final?

 

ANGELITO: Sim, claro que sim, aquele que eu quiser dar.

 

CARLOS: (Arrogante. )Ou aquele que eu decidir.

 

BERTA: (A Angelito.) Vou cortar a lingua dele.

 

ANGELITO: Deixa ele em paz. (Pausa. A Carlos.) Me interessa isso. (Pausa.) Vamos ver: que final você daria ao jogo?

 

CARLOS: Te matar. E rápido. (Faz o gesto de disparar.) Com a minha própria mão.

 

ANGELITO: Gosto dessa parte: você me mata e eu fico vivo.

 

CARLOS: Eu te mato e morto você fica.

 

ANGELITO: (Dá um chute nele.) Quando você vai fazer isso?

 

CARLOS: Isso eu é que decido.

 

ANGELITO: (Entre risos afogados.) Então você vai… Com um… Um dia desses…

 

CARLOS: Com todas as letras. Chegarei a ser Chefe. E como você, irei todas as noites, das oito às dez, para a casa de alguém que se deixa dar chutes, porque não tem outra saída a não ser deixar-se chutar. (Pausa.) É um cara que mede seis por dois, com umas costas assim. (Faz o gesto), com uns braços que são duas bazucas e uns punhos que são duas granadas. (Pausa.) E eu o coloco, aí onde você está, e… apanha esse chute e apanha esse outro e esse outro… (Lança chutes ora com a perna direita, ora com a esquerda tão velozmente que cai.)

 

 

ANGELITO: (Lança-se sobre Carlos e dá chutes nele.) É isso o que você vai fazer com o cara dos seis dois? Que gosto você vai se dar! “Mano”, meus parábens. Você imagina o que é poder dar um pezão no pescoço? (Pausa.) Veja: Você o pega pelo pescoço (pega Carlos pelo pescoço.), bota a cabeça dele no chão e o obriga a beijar a chão. (Faz o gesto.) Depois você coloca ele em pé (ele o faz), dá golpes nos rins dele (ele faz isso), leva ele até essa cadeira (ele o faz), dá um passeiozinho para ele se refrescar (ele o faz), volta a chutar nele (ele o faz). (Pausa.) Você gostaria de fazer tudo isso com ele?

 

 

CARLOS: Antes vou ter que matar você.

 

ANGELITO: Me mata.

 

CARLOS: Já vais ver, já vais ver!

 

ANGELITO: Já verei, não! Me mata. Agora mesmo, me mata.

 

CARLOS: Quando eu tinha dez anos ia ao colégio dos padres. O meu avô me dava uma peseta para a merenda. (Pausa.) Um dia, Matraca, que tinha quinze anos, falou para mim: “Me dá essa peseta”. Eu falei para ele: “Em nome de que santo?” Ele me falou: “Do santo que me sai daqui”. (Toca-se o sexo.) “Bom”, falei, “vai ganhar ela”, e assumi posição de confronto. (Fecha os punhos.) Ele me disse: “Pois, vou ganhá-la”. E me lançou tremendo soco. Que eu esquivei, e lancei um murro no queixo dele. Caiu redondo.

 

ANGELITO: E daí…?

 

CARLOS: Imagina! Queria me abofetear. A mim mesmo. Depois comecei a dar chutes nele. Se não tiram ele dali eu o como vivo.

 

ANGELITO: E o que mais?

 

CARLOS: Desde então ninguém botou a pata em cima de mim. Vai lá, meu irmão! Se você se abrandar eles te fritam, e aí você acabou; assim literalmente, você acabou. (Pausa.) Quando ia pelos meus quinze, um cara alto assim e gordo assim se aproximou do banco aonde eu estava com a minha namorada. Falou pra mim: “Se identifica?” Eu mostrei a certeira de identidade, ele olhou, voltou a olhá-la, por fim jogou-a no gramado. Eu falei para ele “por que é que faz isso?” Ele falou para mim: “Sempre faço o que sinto dentro de mim”. Falei para ele: “Pois se faz isso, você é um merda”. Ele falou: “Menininho, vou lavar essa boca suja”. Eu falei para ele: “Quando quiser”. Ele veio em cima de mim, eu dei um pulo e me coloquei atrás do banco. Ele se aproximou e quando se jogou em cima de mim eu banhei a barrriga dele com a minha navalha. (Faz todos estes gestos.)

 

ANGELITO: (Dá a Carlos um aperto de mãos e uma palmada no ombro.) Bate aqui, meu sócio! Assim é que se faz: rápido. Você ferrou ele. Imagina. O gordo grande estava procurando briga… Mas você parou ele em seco. (Pausa.) É o que você fala: se te fritam, é para toda a vida. E isso não se pode tolerar.

 

 

CARLOS: (Sem deixar de apertar a mão dele.) Você acredita em mim? Verdade? (Pausa.) Posso procurar o jornal onde saiu o acontecimento.

 

ANGELITO: (Larga a mão dele) Não precisa, meu irmão. Tenho certeza de que você é um cara que arrisca o jogo. Basta te ver para saber que você é um bravo.

 

CARLOS: Você está brincando comigo. Vejo na tua cara.

 

ANGELITO: Que nada, “mano”! (Aproxima-se, apalpa-lhe os braços, toca-lhe o peito.) Você acha que alguém pode encarar um homem que tem esses braços e esse peito? Eu sou um cara que respeita os machos. E você a gente vê por cima da roupa que também é. (Pausa.) Vou te dar uma prova de confiança.

 

CARLOS: (Abraça-se a Angelito.) Verdade, “mano”? Obrigado, “mano”, obrigado.

 

ANGELITO: Pois sim vou te dar. Uma grande prova de confiança. (Pausa.) Está vendo o cara que está sentado no sofá? (Faz sinal a Berta para se sentar no sofá.)

 

CARLOS: (No jogo.) Aquele que está com a namorada ou aquele que está dormindo?

 

ANGELITO: Aquele que está com a “guapa”. (Pausa.) Pois esse filho de uma égua se meteu no meu caminho. Tem ares de chefe. (Pausa.) Sabe o que fez? Mandou um dos comparsas dele para me cortar embaixo. Ferrei ele, botei numa canastra, enchi ela de flores, e mandei o morto de volta para ele. (Pausa.) O que você acha?

 

CARLOS: (Sempre no mesmo jogo. Rindo.) Você é grande, “mano”, grandíssimo! Só você é capaz de fazer isso.

 

ANGELITO: Depois fiz um telegrama para ele, um telegraminha assim: “Mesmo que te enterres eu te desenterro e te enterro morto.”

 

CARLOS: (Curvando-se da risada.) Fantástico, “( DOBLANDOSE DE LA RISA.) FENOMENO, “” ele, um telegraminha assim: ” SE LO MANDE DE VUELTA. VO. mano”, fantástico!  O cara deve estar se cagando de susto.

 

ANGELITO: Desde que recebeu o telegraminha, vive nadando na sua própria merda. (Pausa.) O que menos ele imagina é que estou aqui. Não sei como se atreveu de sair. A tipa que está com ele vem me ver todos os dias. (Imita a voz de uma mulher.) “Angelito, deixa disso, você sabe que Mai se impõe; é que ele tem o caráter dele”. E eu: “Que caráter? Os merdas como ele não têm caráter”.

 

CARLOS: (Gritando.) Merda, merda, merda!  (Pausa.) Merda como eu.

 

ANGELITO: “Mano”, o senhor não diga isso. Nem de brincadeira. Come vivo aquele cara. (Aponta para o sofá.) Aí coloco o doce na tua boca. (Pausa.) Vá ali passinho por passinho, não dê tempo ele para respirar. (Pausa.) Uma vez que o tiver arrebentado, formaremos a sociedade de matanças mútuas.

 

CARLOS: Mas ele não me fez nada.

 

ANGELITO: Provoque ele, fale para ele: “Sabe quem é a putinha que te acompanha?”

 

CARLOS: Vou falar isso para ele, mas, com o que eu o mato?

 

ANGELITO: Com esta pistola. (Coloca a mão direita na cintura e faz como se lhe desse a arma.) Assim que ele te falar o que te falar, você apaga ele.

 

CARLOS: (Faz como se pegasse a arma, coloca-a na cintura e deixa a mão sobre esta. Caminha muito devagar até o sofá.) Sou um bravo, sou um bravo… (Interrompe-se. A Angelito.) O que faço agora?

 

ANGELITO: Fala para ele o que te falei.

CARLOS: (Com voz entrecortada.) Se pode saber quem é a putinha que te acompanha?

 

ANGELITO: (Colocou-se atrás de Carlos.) A putinha sou eu e vou  romper o teu cuzinho. (Dá chutes no seu traseiro. Carlos cai de bruços sobre o sofá. Chora.) Você acreditou, covardão! (Senta-se e coloca os pés de Carlos sobre seus joelhos.) Vamos, não é para tanto, isso acontece até nas melhores famílias. Sempre tem um rã otário. Eu lembro…

 

CARLOS: (Gritando) Cala a boca, cala a boca!

 

ANGELITO: (Fingindo assombro.) Eh! Falei algo errado? Eu vi otário convertido em gente de pelo no peito. (Pausa.) Deixa eu te contar…

 

CARLOS: (Chorando.) Para quê, para quê? Sempre serei um rã.

 

ANGELITO: Bom, não vou te contar nada. (Pausa.) Me pede o que quiser.

 

CARLOS: Deixa para lá, é inútil.

 

ANGELITO: “Mano”, te juro que agora não estou jogando. Me dá tanta pena te ver ali deitado, chorando, que me parte o coração. Agora estou falando sério… Me pede o que quiser.

 

CARLOS: Deixa, deixa para lá…

 

ANGELITO: Desta vez é serio. Te anima.

 

CARLOS: (Senta-se ficando entre Berta e Angelito.) Como se sabe que é sério?

 

ANGELITO: Muito simples: Eu me transformo em você e você em mim.

 

BERTA: (Rindo.) E eu me transformo no que? Em que me converto? Numa barata?

 

ANGELITO: (De um empurrão a joga para atrás.) Fecha o bico. Fala quando for a tua vez. Você sabe de sobra quando vai falar.

 

BERTA: É que eu te vejo vir: você decidiu que Carlos deve se afogar na própria merda dele. (Levanta-se.) Não continue jogando com ele, mata ele já.

 

ANGELITO: Não se adiante. Quem sabe Carlinhos me parte em dois. Nunca se sabe…

 

BERTA: (A Carlos.) Ouviu, Carlos?

 

CARLOS: (Com desalento.) Eu sou… O que é que eu sou, Berta, o que é que eu sou?

 

ANGELITO: Um merda. Você mesmo falou. (Pausa.) Mas… (Cala-se.)

 

CARLOS: (Ansioso.) O que…? Fala.

 

ANGELITO: Posso fazer com que você não seja um merda. Estava te dizendo…

 

CARLOS: Não entro nesse jogo, no teu jogo sujo.

 

ANGELITO: Te digo que não. Vamos, te decide: se você esperar tempo demais, quem sabe esqueço esse traço de… generosidade.

 

CARLOS: Nem você pode se transformar em mim, nem eu posso me transformar em você.

 

ANGELITO: E eu digo que você pode se transformar em mim, fazendo comigo o que eu faço com você, e eu posso me transformar em você, me deixando fazer o que eu faço com você.

 

CARLOS: Isso é um trava-línguas. (Pausa.) De modo que você vai me deixar te dar chutes e mais chutes. E além disso vai confessar que você gosta, e além disso você vai me agradecer. Essas coisas maravilhosas só acontecem no sonho.

 

ANGELITO: Escutem ele! O sabichão que leva a melhor. (Pausa.) Você disse tudo tá dito. (Pausa.) De jeito nenhum, senhor.

Você não acaba de dizer que a tua máxima aspiração é aprender a matar?

 

CARLOS: Isso mesmo.

 

ANGELITO: Então, resta por dizer muita coisa. (Pausa. Como se apontasse com um revolver.) E por fazer, “mano”. Você quer aprender?

 

CARLOS: Quero. (Pausa.) Me diga o ques e eu tenho que fazer.

 

ANGELITO: Se transformar em mim.

 

CARLOS: E você?

 

ANGELITO: Que pergunta! Eu me transformarei em você. (Pausa.) Assim. (Começa a se desabotoar a camisa.) “Entendeu?”

 

 

CARLOS: (Exitado imita a voz e a petulancia de Angelito: começa a tirar a camisa.) Sempre pego as coisas no ar. (Pausa.)Vou deixar esse teu cu sujo como um tomate.

 

 

ANGELITO: (Imita a voz e a fraqueza de Carlos.) Merda, merda, sou um merda! (Dá a sua camisa a Carlos, e por sua vez pega a camisa deste, veste ela.) Você vai me dar muitos chutes?

 

CARLOS: (Enquanto veste a camisa dá um empurrão a ele.) Os que me saem daqui. (Toca-se o sexo) Agora sou o bravo. (Tira a calça.) Isto não é uma calça, isto é uma saia, uma saia para vestir você, mulherzinha.

 

ANGELITO: (Tirando a calça.) Isto não é uma saia, isto é uma calça, uma calça para você vestir, machinho.

 

CARLOS: (Veste a calça de Angelito.) Vão ter que me matar para me tirar esta calça. (Pausa.) Sou um chefe, um bravo, um duro. Viva Carlos!

 

ANGELITO E BERTA: Que viva!

 

CARLOS: (A Angelito.) O que você é?

 

ANGELITO: Eu sou o que você não é e você é o que eu não sou.

 

CARLOS: Ah, bom! Eu ia romper o teu cuzinho se respondesse outra coisa. Você fala como um filósofo. (Pausa.) O que é um filósofo?

 

ANGELITO: Um cara que não é um bravo.

 

CARLOS: Me fala algo filosófico.

 

ANGELITO: (Pensativo.) Matar ou que te matem: eis aí o dilema.

 

CARLOS: (Cruza os braços sobre o peito. Em caricatura.) É mais nobre para aquele que mata sofrer os golpes e dardos da furiosa fortuna?

 

ANGELITO: (Em caricatura.) Ou aquele que não mata se armar contra um pélago de tormentos e, enfrentando-os, acabar com eles?

 

BERTA: (Pega Angelito e Carlos por um braço e vai com eles até o proscênio. Uma vez ali, Berta marca o compasso com o pé direito no chão e falando só a palavra “Bangue” cantam os primeiros compassos da Marcha Fúnebre de Chopin. Depois voltam ao lugar onde estavam. Carlos ocupa uma cadeira. Angelito a outra. Berta coloca-se atrás deles. Com afetação.) Sigam filosofando.

 

ANGELITO: Morrer… deixar-se matar, nada mais; e com um balaço pensar que damos fim aos pesares e aos mil naturais conflitos que constituem a herança da carne. (Berta se inclina sobre Angelito, abre o seu decote, mostra os seus seios, exala um suspiro de prazer. Angelito prossegue o seu falatório. Eis aqui um desenlace que deveríamos solicitar com sofreguidão.

 

BERTA: (Negando energicamente com a cabeça.) Bangue, bangue!

 

CARLOS: Aí, aí está a dificuldade, porque é forçoso que tenhamos que considerar que ao perdermos a vida saimos de sua inquietação.

 

ANGELITO: Esta reflexão é o que faz tão duradouro a desgraça, porque: Quem aguentaria os ultrajes e desdéns do mundo, a tirania do opressor, as afrontas do soberbo, as aflições do amor desairado, as dilações da justiça, as insolências do poder e as humilhações que o valoroso paciente recebe dos homens indignos, se não fosse pela inquietação da vida?

 

CARLOS: Quem queria procurar o repouso com uma simples ejaculação de espera duma vida eterna que não é senão a negrura do sepulcro?

 

BERTA: (Como se tivesse ejaculado na sua mão, a afunda no peito de Angelito. Pausa.) Bangue, bangue!

 

ANGELITO: Quem queria sofrer dores imensas, gemer e suar sob o peso de uma vida difícil, se não fosse pela certeza da morte? Certeza que não põe impede à vontade e nos faz suportar aqueles males que nos afligem para nos levar a outros que ainda desconhecemos.

 

CARLOS: Assim é como a consciência faz de todos nós uns valentes, e assim o tom natural da determinação não fica desluzido pela doentia palidez da inquietude e os atos de maior coragem seguem seu curso e se chamam ação.

 

BERTA: (Gritando.) Açããããooo! (Empurra, fazendo-os cair, Carlos e Angelito; também cai ela. Apagão. Durante um minuto se ouvirá ratatatá de metralhadoras misturado com imprecações e lamentos; ao mesmo tempo a cena estará cruzada por luzes de bengala, balas traçantes e reflexos de incêndio. Ao iluminar-se de novo a cena, Carlos e Angelito se levantam, pegam as cadeiras e se sentam. Berta permanece no chão e se esfrega energicamente os joelhos.)

 

BERTA: Tô me cagando com Hamlet e com toda a sua parentela.

 

CARLOS: O que aconteceu com você?

 

BERTA: Dei um joelhaço do caralho; sempre a mesma coisa: quando não é algo pior. A semana passada…

 

ANGELITO: (Interrompe-a.) Verdade é que o Hamlet era um bárbaro: atropelou a mãe, o rei, fulano e sicrano …

 

CARLOS: (Interrompe-o.) E quê… Olha como ele acabou. Tanta algazarra para Fortimbras ficar com o melhor quinhão. (Pausa.) Comigo isso não vai. Em vez de um Horácio que de mim diga: “Por fim se quebranta um nobre coração… Adeus, amado Príncipe! Coros de anjos arrulhem com os seus cantos o teu sonho eterno”, quero um Horácio que de mim proclame: “Bom dia, amado Príncipe: você é o Chefe, pede por essa sua boca”.

 

ANGELITO: (Abre as pernas, deita-se nas costas, dá batidinhas na sua barriga. Com voz gutural.) O que mais posso pedir? Posso botar no tronco a cabeça de todos os meus súditos; posso, como um mago, fazer com que a verdade seja mentira, e a mentira verdade; posso fazer com que a lua esquente e o sol esfrie. (Pausa.) Bom, isso não o posso fazer, mas é como se pudesse fazê-lo (Pausa.) Posso fazer chorar e posso fazer rir. Posso, como Júpiter, me dará o luxo de um Prometeu acorrentado, e, finalmente, tanto é o meu poder que até posso não poder.

 

BERTA: (Implorante, se prosterna diante de Angelito.) Pede mais, chefe, pede mais! Pede por essa sua boca!

 

ANGELITO: (Com indolência.) Posso poder não poder te pedir que você me peça que peça mais por esta [minha] boca.

 

BERTA: (Com humildade.) Você pode não poder, chefe, mas, de qualquer forma, pede mais por essa boca.

 

ANGELITO: (Se levanta, cruza os braços.) Sou dono do mundo inteiro. Nos meus Estados o sol nunca se põe.

 

BERTA: (Situa-se por trás de Angelito.) Pede mais por essa boca.

 

ANGELITO: (Com fastídio.) Oh!

 

BERTA: Oh! (Como sim se dirigisse a um auditório invisível.) Vocês já ouviram? Todo o mundo deve dizer “oh”.

(Ao fundo da cena, pelos laterais, se ouvem muitos “oh”, gritados, cantados, susurrados, de terror, de pasmo, de alegria, etc.)

 

ANGELITO: Calem-se! (Pausa.) Não pedi por esta boca que todo o mundo diga “oh”. Só quis dizer: “Oh!”. Berta, deixa de me pedir que peça mais por esta boca.

 

BERTA: Não posso não poder te pedir que você peça mais por essa boca.

 

ANGELITO: Merda!

(O coral nos mesmos tons e gradações, repite dita palavra.)

 

ANGELITO: Calem-se! (Começa a caminhar lentamente. Berta segue-o.).

 

BERTA: Que fechem o bico, que suas bocas se façam cinza, mas você, chefe, pede mais por essa boca.

 

ANGELITO: (Caminha ao proscênio. Ao público.) Eu tenho tudo.

 

BERTA: (Que tem seguido Angelito.) Então pede algo que seja mais que tudo.

(O coral repete, in crescendo, dita palavra.)

 

ANGELITO: (Vira-se.) Calem-se! (Pausa.) O que mais posso pedir por esta boca? Algo que seja mais que tudo? O quê? O quê?

 

O CORAL: Calça! Calça!

 

BERTA: (Com estranheza, olha para Angelito.) Calça?

 

ANGELITO: (O mesmo, olhando para Berta.) Calça?

 

CARLOS: (Chegando junto a Angelito e Berta, os olha com igual estranheza.) Calça?

 

O CORAL: (In crescendo.) Calça! Calça!

 

ANGELITO: Calça? Não entendo.

 

BERTA: Você não pode não entender, chefe. Dizem “Calça”.

 

CARLOS: Calça? Calça?

 

ANGELITO: Calça, eu tenho. De trabalho, de estar em casa, de sair, de cerimônia, de caça, de pesca, de primeira comunhão, de balé, de mecânico, de… (Gritando.) Do que for!

 

O CORAL: (Vociferando.) Calça! Calça!

 

ANGELITO: Calça tenho, caralho! De pano , mesclada, de brocado, de veludo, de seda, de pelúcia, de alpaca, caqui, de casimira, de sarja, de tecido chinês, de juta, de poliéster, de orlon, de látex, de papel, de … Do que for!

 

O CORAL: Calça! Calça!

 

BERTA: Pois bem, chefe, é preciso pedir calça.

 

ANGELITO: Que seja. Tem que pedir calça. (Pausa.) É precisco ouvir a voz interior. (Pausa.) Calça tenho, mas calça devo pedir. Tenho tudo, algo mais do que tudo pedir devo. (Pensando.) Calça ou não calça: eis aqui o problema. Calça tenho, mas calça me falta. (Pausa.) Me falta uma calça minha ou me falta uma calça de alguém? (Pensando.) De alguém? Tenho uma calça de alguém? (Olha a calça que está vestindo.) Esta calça minha não é. (Pensando. Olha, ora Berta, ora Carlos. Pausa. De repente aponta para Carlos.) Calça!

 

CARLOS: (Com terror.) O que você diz? Não entendo.

 

ANGELITO: (Apontando para a calça de Carlos.) Minha calça. Esta.

 

CARLOS: (Tentando levar isso na brincadeira.) Esta calça só comprando. Calça esta minha.

 

ANGELITO: (Sempre apontando para a calça de Carlos.) Calça minha essa.

 

O CORAL: Calça! Calça!

 

 

CARLOS: (Mete os polegares na cintura.) Calça minha esta.

 

ANGELITO: Calça minha essa. (Precipita-se em cima de Carlos e lhe mete os polegares na cintura.) Minha, minha, minha. (Empurra Carlos até fazê-lo cair de joelhos: Coloca o pé no rosto dele, empurra-o, e Carlos fica estendido boca para cima. A Berta.) Tira dele calça minha. (Tira a calça que estava vestindo.).

 

BERTA: (Tira a calça de Carlos pelas pernas da calça. Dá-a calça para Angelito.) Calça tua.

 

ANGELITO: (Veste-a. Pega a calça de Carlos pelas pernas da calça e faz com elas um nó. A Carlos.) Levanta. Vem.

 

 

 

CARLOS: Isso não. (Chega junto a Angelito.)

 

ANGELITO: Isso sim. Quando um merda é vencido acontece isso com ele. (Coloca a calça enozada. A Berta.) Pega uma perna.

 

BERTA: Você não vai fazer isso com ele.

 

ANGELITO: (Pega a outra perna da calça.) Vou fazer isso com ele. Por esta boca peço que por essa boca dele a língua vermelha dele saia. (A Berta.) Pronto?

 

BERTA: Quando quiser.

 

ANGELITO: (Gritando.) Açãããããooooo! (Ambos tiram as pernas da calça. Carlos dá a língua. As vozes gritam: Bêêêê! Apagão. Voz potente diz: “Por fim se quebranta o coração de um otário… Adeus, covarde Príncipe! Corais de bruxas arrulhem com as suas maldições o teu sonho eterno”. Volta a luz. Angelito está sentado numa cadeira no centro do palco. Leva sobre os ombros a calça de Carlos com as perna da mesma enozadas frouxamente ao pescoço e as agarra com ambas as mãos. A Berta.) Por isto ninguém dá nada.

 

BERTA: (Aproxima-se e faz um gesto de pegar a calça.) Vou queimar ela.

 

ANGELITO: (Detém-na com a mão direita.) Não, deixa, eu fico com ela. Quando eu for dar aula a algum aspirante a matador, vou falar para ele: “Escuta, sócio, esta calça pequena pertenceu a um otário. Olha como você se porta, porque numa dessas eu também levo a tua”.

 

BERTA: (Olhando para o sofá onde Carlos agora está deitado, de cuecas, boca para cima.) Morreu como um otário. De nada servirá a ele a língua, daqui para frente. Pedirá por essa boca e tudo ficará em: “Palavras, palavras, palavras…”

 

CARLOS: Angelito, me dá uma oportunidade.

 

ANGELITO: Não tenho nenhum tipo de relação com os mortos. E menos com aqueles que eu matei. Nem sequer poderia voltar a matá-los. Então cala a boca ou você se aborrece, fala para outro morto.

 

O CORAL: (Mofando.) Morto! Cadáver! Defunto!

 

ANGELITO: Tá ouvindo? Estão rindo de você. E estão com todo o seu direito. Você não defendeu a tua calça, deixou que a tirassem de você como pomba mansa. Fica aí com o teu castigo.

 

O CORAL: Morto! Cadáver! Defunto!

 

CARLOS: (Erguendo-se e olhando para o alto.) Calem-se!

 

O CORAL: Morto! Cadáver! Defunto!

 

CARLOS: (Levanta-se sobre o sofá, agita os punhos.) Calem-se falei!

 

O CORAL: (In crescendo.) Maluco! Maluco!

 

ANGELITO: (A Carlos.) Vai ver. Vou pedir por esta boca. (Levanta-se, faz como se formasse um alto-falante com as mãos.) Calem-se!

 

(O coral, que até esse momento não para de gritar “maluco” se cala.)

 

CARLOS: Não entendo. Quando falavam “Calça!, Calça!”, você gritou a eles que se calassen e não te obedeceram.

 

ANGELITO: Correto, defunto. Quando eu gritei para eles se calarem, o chefe era você. Te escapou esse detalhe. Em contrapartida, eu fiquei ligado, peguei a mensagem e te matei. Agora sou o chefe de verdade. Peço por esta boca, e por esta boca peço para vocês calarem e vocês o fazem. Posso tudo e algo mais do que tudo.

 

CARLOS: (Desce do sofá, aproxima-se a Angelito.) Então, me faz viver de novo.

 

ANGELITO: Sinto muito, defunto, isso é a única coisa que não poderia fazer. Iria contra os meus princípios.

 

CARLOS: Tá bom, mas pode me devolver a minha calça.

 

ANGELITO: Seria como te devolver a vida. Também iria contra os meus princípios. (Pausa.) Somente te resta o sonho eterno e os corais de bruxas com as suas maldições.

 

CARLOS: (Vai até Berta e abraça ela.) Você ouviu? O sonho eterno, as maldições. (Pausa.) Faz algo por mim.

 

BERTA: (Rejeitando-o.) Por um morto nada se pode fazer, Carlos.

 

CARLOS: Você pode fazer algo por mim, não sei o que, mas pode me salvar.

 

BERTA: A única coisa que posso fazer por você é te enterrar. Quer que eu faça isso?

 

CARLOS: (Caminhando em todos os sentidos e gritando.) Fazer algo, fazer algo, algo, algo, algo, algo, algo, algooooooo! (Cai de joelhos e faz quicar sua cabeça contra o chão.)

 

ANGELITO: De modo que além de morto, está louco. Será preciso enviá-lo ao hospital de dementes do inferno.

 

BERTA: Se está louco pode fazer alguma coisa. O único modo de fazer as coisas grandes é enlouquecendo.

 

ANGELITO: Concordo, mas a loucura de nada servirá a ele porque está morto.

 

CARLOS: (Começa a passar as mãos pelo corpo, no começo com moderação até chegar ao frenesi.) Morto, me larga, me larga, morto, sai, morto sai, morto me fuja, me fuja; morto se perca, se perca; morto, dá no pé, dá no pé. (Repete o conjuro. Pausa.) Vivo, chupa ele, chupa ele. (Chupa os braços.) Vivo, morde ele, Morde ele. (Morde os braços e as coxas.) Vivo, aranhe ele, aranhe ele, aranhe ele. (Aranha o rosto e o peito.) Vivo, bata nele maluco, bata nele maluco. ( Dá-se golpes por todo o corpo.)

 

O CORO: ( In crescendo.) Bata nele maluco! Bata nele maluco!

 

ANGELITO: (Excitado, levanta-se, chega junto a Carlos, dá chutes nele.) Cala a boca!

 

CARLOS: (Erguendo-se.) Cala os vivos, mata eles, tem milhões de vivos. A mim, me deixa este morto.

 

ANGELITO: Bom, se isso te diverte. (Volta a sentar-se.)

 

CARLOS: Me deixa ele, tenho que viver o vivo que está no morto, tenho que matar o morto que está no vivo.

 

O CORAL: (In crescendo.) Bata nele maluco! Bata nele maluco!

 

CARLOS: (Chegando junto a Berta abre o seu decote e olha.) Aí está escondido, aí está! Sai. Vivo, se apresente! Vivo, apareça!

 

BERTA: (No jogo. Olha os seus seios.) Procura! Procura!

 

CARLOS: (Agacha-se e olha por debaixo do vestido de Berta.) Então se esconde aqui. (Mete a mão e agarra o sexo de Berta.) Apresente-se, apresente-se! (Berta cai presa de convulsões. Carlos corre, pega o tapete, extende-o aos pés de Angelito. Será um tapete vermelho. Pega a Berta e a arrasta até deixá-la deitada sobre o tapete, com a cabeça sobre os pés de Angelito. Berta continua com as convulsões. Carlos se põe a cavalo sobre ela e agarra os seus braços, movendo-se ao compasso das convulsões de Berta.) Vivo, sai! Vivo, sai! Vivo, apareça!

 

O CORAL: (In crescendo.) Vivo, sai! Vivo, sai!

 

ANGELITO: (No jogo.) Que venham outros mortos, que este já fede!

 

CARLOS: (A mesma ação.) Vivo, morde ele! Vivo, aranha ele! Vivo, chupa ele! Vivo, bata nele maluco!

 

O CORAL: ( In crescendo.) Bata nele maluco! Bata nele maluco!

 

ANGELITO: (No jogo.) Calem-se! Que venham outros mortos, mortos frescos, matados pela minha mão!

(Apagão de dez segundos. Enquanto durar o apagão ouvir-se-á um vibrador em toda sua intensidade. Quando deixar de ressoar, a luz amarela de um spot cairá sobre Berta, agora em “panties”, e sobre Carlos, ajoelhado atrás desta. Por sua vez, dez atores, vestidos igual como está Carlos [quer dizer, em cuecas, camisas pretas e descalços formam uma escolta, distribuidos em dois grupos de a cinco, cada um a um lado de Angelito.).

 

ANGELITO: (Olhando a um e outro lado.) Pedi por esta boca e aí tenho eles. Mortos fresquinhos. Cheiram a rosa. (Aspira o ar como cheirando um perfume. Pausa. A Carlos.) Faz a tua sepultura. Você fede demais. (Aos atores.) Gosto, gosto… Sempre se deve obedecer ao chamado daquele que pode tudo. (Pausa.) Agora, com a mesma rapidez que vieram, se larguem. E ao mesmo tempo levem este. (Os atores não se movem.)

 

O CORAL: (Uma voz depois da outra, até dez.) Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus.

 

ANGELITO: (A Carlos.) Tá ouvindo? Te chaman pelo nome que você tem na tua lápide: “Hic jacet Carolus…” (Pausa.) Pulvis es et in pulvis reverteris[1]… (Pausa.) Vamos, Carlinhos, volta ao pó. Os teus amáveis colegas te acompanharão. (Pausa. Gritando.) Fora, fora eu falei! Se não sumir já, vou expulsar vocês a chutes!

 

O CORAL: Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, Carolus, […].

 

ANGELITO: (Olhando ao alto.) Calem-se! (Pausa.) Eu, aquele que por esta boca (Toca-se a boca) pode pedir tudo e algo mais, exige a rápida desaparição dos espectros. Eu, eu exijo, eu ordeno, eu mando, eu boto, eu tiro, eu faço, desfaço, eu viro, eu torno, eu afirmo, eu nego, eu escalo, eu humilho, eu mato. (Olha em torno dele.) Eu mato, estão ouvindo?, eu mato. Disperssem-se, do contrário não deixarei títere com cabeça…

 

 

O CORAL: Carolus, Carolus!

 

ANGELITO: Ao caralho Carolus! Eu e só eu, eu e sempre eu, eu, eu pelos séculos dos séculos.

 

O CORAL: Camisa, Camisa, Camisa, Camisa!

 

ANGELITO: (Se levanta, olhando para o alto.) Camisa? Eles têm falado camisa?

 

O CORAL: Camisa, Camisa, Camisa, Camisa!

 

ANGELITO: Não há dúvida: “camisa” eles têm falado. “Camisa” agora? Antes falaram “calça”. (Pausa.) Colossal! (Esfrega as mãos.) Pois se antes calça falaram e eu calça vesti, agora se dizem camisa, camisa eu vestirei.

 

O CORAL: Camisa, Camisa!

 

ANGELITO: Camisa? Camisa para Angelito? Pois então camisa, a que for, onde for e como for… Embora seja camisa de força. (Ri.) Camisa, depressa, camisa, camisa, depressa, depressa, camisa! (Mal as vozes disseram “Camisa”, os atores começaram a tirar as suas camisas, atando-as, umas com as outras, pelas mangas, e quando Angelito diz a última intervenção, botam elas sobre as costas de Angelito em forma de mortalha, e ao mesmo tempo tiram a camisa que ele veste.)

 

ANGELITO: (Inchando o peito e com voz gutural.) Camisa me predisseram e camisa já tenho. (Pausa.) E como camisa tenho, o poder tenho, todo o poder e algo mais do que o poder. (Pausa.) Para que não se equivoquem, falarei para os meus súditos. (Caminha até ficar parado sobre o extremo do tapete.) Aquele que tudo pode e algo mais do que tudo pode pedir, lhes fala: Eu sou Angelito Rex.

 

O CORAL: Carolus Rex, Carolus Rex!

 

ANGELITO: Bem falado. Angelito Rei dos vivos e Carolus Rei dos mortos.

 

O CORAL: Carolus Rex!

 

ANGELITO: (Dando as costas ao público.) Rei de que reino, do reino dos vivos ou do reino dos mortos?

 

O CORAL: Carolus Rex! (Gritam agora em ritmo sincopado.) Rex-Rex-Rex-Rex-Rex-Rex-Rex-Rex!

 

ANGELITO: (Golpeando no seu peito com uma e outra mão.) Eu Rex! Eu Rex, Eu Rex! Eu Rex!

 

O CORAL: Carolus Rex! Rex-Rex-Rex-Rex-Rex-Rex!

 

(Berta que não deixou de debater-se em convulsões, e sempre com seus braços agarrados por Carlos, lança um alarido. Imediatamente, os atores se juntam em torno dela. Dois deles levantam-na até colocá-la em pé, sustentando-a pelos sovacos. Os oito restantes se dividem em dois grupos de quatro e se situam em filas diante de Berta. Berta começa a pressionar, depois abre as pernas e aparece a cabeça de Carlos entre as mesmas.)

 

O CORAL: Rex-Rex-Rex-Rex-Rex-Rex!

 

(Agora Berta debate-se, como uma louca, entre os braços dos dois atores que a sustêm; ao mesmo tempo suas contrações se tornam mais frequentes. Os oito atores restantes dizem, como numa litania em uníssono: “Pressiona!” Berta continua pressionando e abre mais as pernas. Carlos estende, por entre as pernas de Berta, os braços. As vozes dos atores vão ficando ensurdecedoras. Berta continua pressionando e debatendo-se num total paroxismo. Finalmente Carlos sai por completo entre as pernas de Berta. Esta deixa de debater-se e de pressionar. Os dois atores que a sustêm assim como os oito restantes se colocam por trás de Carlos, que agora avança, com os braços estendidos, rumo a Angelito.)

 

ANGELITO: (Volta-se ao público.) Angelito Rex.

(Nesse momento chega Carlos junto a ele, sempre seguido pelos atores, pega as pernas da calça que Angelito leva enlaçada ao pescoço e vai apertando até enforcar Angelito, que estende a língua e vai caindo lentamente sobre os seus joelhos. Carlos fica em seu lugar. Os atores apressuram-se a cobrir com o manto de camisas pretas o corpo de Angelito. Berta pega a camisa vermelha que está sobre o tapete e a dá a Carlos, que já tirou a preta que vestia. Carlos vai até o proscênio e agita diante o público a camisa vermelha. A cena ilumina-se em sua totalidade. Os atores e Berta gritam:“ Carolus Rex!” A eles se unem as vozes em antífona: “Rex-Rex-Rex-Rex!”)

(Apagão. Enquanto este durar, continuará o Coral dizendo “Rex” até a sala se ascender).

 

FIM

 

[1]Pulvis es et in pulverem reverteris

* Informações sobre a peça podem ser lidas em: http://teatrojornal.com.br/tag/virgilio-pinera/