“O CORVO” – TRADUÇÃO COMO RECRIAÇÃO – Jocemar Celinga

“O CORVO” – TRADUÇÃO COMO RECRIAÇÃO

                         Jocemar Celinga*

 

The Raven

 

Once upon a midnight, while I pondered,

Weak and weary,

Over many a quaint and curious volume of forgotten lore –

While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,

As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.

“Tis some visiter,” I mettered, “tapping at my chamer door –

Only this and nothing more.”

[…]

 

O Corvo

 

Ua vêx, nua meia noite borocoxô, pensava eu meio banzo, meio tanso

Fazeno serão em cima de ua purção de livro baita cheio de bolô

Quase pegano no sono, já pescano, tomê lhe um cagaço di repente,

Olguém batia, degavarzinho – degavarzinho no batente

É um visitante xarope ua hora dessa, um demente – futurei – batendo assim digavarzinho no meu batente.

Só isso só, nada máx.

[…]

 

 

Alison Silveira Morais, legítimo “manezinho”, como são popularmente conhecidos os nativos da ilha de Florianópolis, traduziu “The Raven”, famosa poesia do poeta norte americano Edgar Allan Poe (1809-1849). A tradução foi feita a partir do texto original em língua inglesa para o dialeto regional “manezinho da ilha de Florianópolis”.

Como recursos, o tradutor revela que utilizou tanto o dicionário manezinho quanto sua própria vivência como falante da variante linguística. Ele relata em texto escrito o momento em que sentiu inspirado a traduzir o texto: “ […] tive acesso aos livros de Franklin Cascaes, e ‘O Fantástico na Ilha de Santa Catarina’, ao livro de ‘contos sobre ‘causos’ de bruxas em Florianópolis, sendo esses contos escritos em linguagem fonética para retratar justamente a fala do povo nativo da ilha”.

“O Corvo”, reconhecido pela crítica como a obra prima de Poe, é uma obra lírica de tonalidade fanática e sobrenatural, narrado em primeira pessoa pelo eu lírico – o protagonista da história. Corrêa e Boer (2010, p. 92) nos informam que “o tempo da narrativa é o psicológico, visto que os períodos se entrecruzam a fim de marcar o tempo presenta da enunciação e o acontecimento passado vivido pelo personagem/narrador”. Os autores acrescentam que o ‘eu lírico’ narra a sua experiência ocorrida em uma noite fria de dezembro, quando lia a fim de vencer a melancolia decorrente das saudades que sentia de sua amada e falecida Leonor. Ao ouvir um barulho estranho que lhe causa temor, procura desvendar sua origem. Contudo, somente quando retorna percebe a presença de um corvo em seu quarto, pousado em um busto de mármore de uma deusa grega.

A figura do corvo é interpretada como uma alegoria das perdas e tristezas experimentadas pelo autor. D’Onófrio informa que o autor perdera a mãe com menos de três anos de idade. Em Leonor ele encontraria uma forma de superar esta perda enquanto que o padrasto é associado à figura do corvo, “aquele intruso que o impede de cultivar a figura nostálgica da mãe”. O mesmo autor acrescenta:

“o corvo, que vem do mundo de fora, mundo exterior e material e que se aninha de uma forma imóvel, quase petrificado, no busto de minerva […] é uma feliz imagem de John Allan, o abastado comerciante, o burguês autoritário, que personifica as forças do superego, as convenções sociais que frustram a realização dos sonhos individuais. São estas forças que esmagam a alma de Edgar Allan Poe” (D’ONOFRIO, 1990, p. 354)

The Raven é um poema de estilo antissentimental, um tipo de “poesia pura”, que segundo o poeta resulta da embriaguez do coração”. Wladimir Antônio da Costa observa que neste estilo de composição poética, propõem-se a ideia “de que o sujeito seja conduzido a uma neutralidade supra pessoal, afastando-se da vida natural da vivência e da confissão, tendo como resultado, conteúdos irreais. Na composição, de maneira clara e sistemática, utiliza-se o universo dos sonhos para estabelecer uma supra realidade. Ainda segundo Garcia, na composição poética de Poe, “parte do poder sonoro das palavras como algo anterior ao sentido, que permanece secundário, investindo nas oscilações associativas das palavras”, ou seja, “a forma emerge como a origem do poema e o significado como seu resultado”). O autor ainda observa que o poeta parte “de uma ‘nota’ prévia à linguagem dotada de significado, levando-o a procurar aqueles sons que se aproximam dessa nota, os sons se unem, formando palavras, que por sua vez, produzem motivos, construindo um contexto. ” (GARCIA, 2010, p. 63.

Neste trabalho de tradução de The Raven, por Alison Silveira Morais, observa-se a tradução como recriação, ou seja, conforme o define Bense: “em outra língua, uma informação estética, autônoma, mas ambas estão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema” (BENSE apud CAMPOS, 2010, p. 34) Assim sendo, o tradutor produziu um texto poético autônomo, porém recíproco.

Neste sentido, Manguel afirma que “Toda forma de escrita é, em certo sentido, uma tradução das palavras que pensamos ou falamos numa representação visível, concreta” (MANGUEL, 2016, p. 96). O autor acrescenta que esta materialização do pensamento adquire certas identidades linguísticas as quais são substituídas quando passam de um idioma para o outro. Portanto, na tradução literária, o texto adquire novas identidades, uma vez que cada parte do texto sofre substituição, das quais pode-se citar: a estrutura gramatical, o vocabulário, a rima, as características culturais, históricas e os aspectos emocionais.

Pensando nesta mesma direção, Campos defende a ideia de que o tradutor poético se empenha em traduzir o intraduzível. Ele nos lembra que não se traduz apenas o significado, mas o próprio signo, ao que ele explica: “sua fisicalidade, sua materialidade (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que forma […] a iconicidade do signo estético”. “Aquilo que é de certa maneira similar aquilo que ele denota”. (CAMPOS, 2010, p. 34)

Este conceito de recriação, segundo Aslanov, parte do pressuposto de que o tradutor é um tipo de poeta, e como tal, inevitavelmente é um manipulador, um mentiroso. (ASLANOV, 2015, P. 12). Portanto, neste movimento que transcorre no espaço entre línguas “o tradutor manipula não só o leitor, mas também o próprio texto”, surgindo aí a definição de tradução como manipulação, ou seja, que na interlíngua, o tradutor está obrigado a “dosar substâncias da língua” uma vez que ele interfere no processo de produção do texto, “atribuindo-se prerrogativas e responsabilidades que deveriam ser só do autor”.

A tradução de Morais, é feliz em manter a tonalidade fantástica e sobrenatural do poema original e sua narração em primeira pessoa pelo eu lírico.  A recriação de Morais também investe nas oscilações associativas das palavras, partindo do poder sonoro das palavras como algo anterior ao sentido, de acordo com os seguintes exemplos: “meio banzo, /meio tanso; pegano no sono/ já pescano.

Ainda é importante destacar que de acordo com Campo, no processo de recriação, o parâmetro semântico exerce apenas a função de baliza demarcatória.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ASLANOV, Cyril. A Tradução Como Manipulação. 1ª Ed. São Paulo. Perspectiva, 2015

 

MANGUEL, Alberto. Uma História Natural da Curiosidade. Tradução: Paulo Geiger. 1ª Ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2016

 

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas : ensaios de teoria e crítica literárias / Haroldo de Campos – São Paulo : Perspectiva. 2010

GARCIA, Wladimir A. Costa. Introdução ao estudo do texto poético e dramático. Florianópolis : LLE/CCE/UFSC, 2010.

 

*Mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudos da Trdaução (UFSC).