Adaptações da Literatura para o Cinema: Uma análise comparativa entre os filmes “Viagem à Lua” e “A Invenção de Hugo Cabret” – Diogo Berns

Adaptações da Literatura para o Cinema: Uma análise comparativa entre os filmes “Viagem à Lua” e “A Invenção de Hugo Cabret”

 

Diogo Berns*

INTRODUÇÃO

Ao longo da história, narrativas de diversos meios de comunicação têm sido adaptadas para o cinema, sobretudo da literatura. “Da Terra à Lua” (De la Terre à la Lune), de Júlio Verne, publicado em 1865, “Os primeiros Homens da Lua” (The First Men in the Moon), de Herbert Georges Wells, escrito em1901, e “A Invenção de Hugo Cabret” (The Invention of Hugo Cabret), de Brian Selznick, publicado em 2007, são exemplos desse fenômeno. As duas primeiras obras literárias foram adaptadas para o cinema por Georges Méliès, em 1902, recebendo o título de “Viagem à Lua” (Le Voyage dans la lune);a segunda, por Martin Scorsese, em 2011, com o título “A Invenção de Hugo Cabret” (Hugo).

As duas adaptações cinematográficas exemplificam algumas diferenças que ocorrem quando são realizadas transposições de textos literários para o cinema em momentos distintos. As ideologias, debates de cada época, visão do diretor e as possibilidades técnicas que o cinema possui são algumas responsáveis. O primeiro passo para entender que uma obra literária não poderá ser transposta integralmente para o cinema é compreender que a literatura e o meio audiovisual possuem particularidades bem distintas, o que culmina em uma nova visão acerca da adaptação.

 

CINEMA E LITERATURA: CONCEITUANDO A ADAPTAÇÃO

(…) o cinema é aquilo que queremos que ele seja para nós, realizadores e espectadores. Ninguém é dono da verdade ou de uma definição específica, pois a experiência do cinema é única e passageira. Os filmes passam e se multiplicam, mas as sensações e as lembranças de cada experiência permanecem. (SILVA, 2012, p. 302)

 

Diariamente, narrativas de variados estilos são apresentadas nas salas de cinema. Elas possibilitam que o espectador aprecie histórias de diversas culturas, sensibilizando-se com elas, sendo impactados por inúmeras sensações, entre elas a emoção, o medo e a adrenalina, além de adquirir conhecimento. Embora muitos elementos e recursos utilizados na composição dessas narrativas tenham vindo de outros meios culturais, como a literatura, a união e a organização desses componentes garantem um dos potenciais da sétima arte. A imersão dos espectadores nessas histórias por meio do som, luz, enquadramentos, efeitos visuais, montagem e ritmo é um dos fatores que atrai a atenção do público e o envolve ao enredo da obra cinematográfica. Uma das características que marcou a história do cinema e lhe ajudou a crescer como meio artístico, cultural, e industrial foi o fato de adaptar obras de outros meios, especialmente da literatura.

No livro “Uma teoria da Adaptação” (2011), Linda Hutcheon menciona a importância do ato de traduzir, que se refere também à transposição de uma narrativa de um meio para outro. A autora comenta que a tradução sempre esteve presente em nossa sociedade porque as histórias têm sido recontadas constantemente desde o início da humanidade (p. 10). Hutcheon enfatiza ainda que a adaptação é a recriação de uma obra para outro meio, como da literatura para o cinema:

Tal como a tradução, a adaptação é uma forma de transcodificação de um sistema de comunicação para outro. Com as línguas, nós nos movemos, por exemplo, do inglês para o português, e conforme vários teóricos nos ensinaram, a tradução inevitavelmente altera não apenas o sentido literal, mas também certas nuances, associações e o próprio significado cultural do material traduzido. Com as adaptações, as complicações aumentam ainda mais, pois as mudanças geralmente ocorrem entre mídias, gêneros, e, muitas vezes, idiomas e, portanto, culturas. (HUTCHEON, 2011, p. 9)

 

O enunciado de Hutcheon instiga a reflexão acerca da adaptação da literatura para o cinema, haja vista que existem algumas diferenças entre os dois campos no que se refere ao modo como apresentam as histórias ao público. Nesse aspecto, a cinematografia é conhecida por expor as narrativas através de imagens capazes de recriar o universo literário no meio audiovisual com expressividade e utilizando-se da sonoridade e de recursostécnicos, como os efeitos especiais. Os personagensconduzem as tramaspor meio de ações que desencadeiam o conflito com maior destaque na história. Tudo isso ocorre tendo como suporte os cenários que apresentam onde as ações ocorrem, dos elementos de cena que garantem verossimilhança ao enredo e da montagem que impõe ritmo às sequências. Em razão de tantos recursos, é necessário lembrar o custo para realizar uma produção cinematográfica, um dado bem mais impactante para o cinema do que para a literatura. O ato de recriar a narrativa no meio audiovisual exige planejamento e um orçamento bem estruturado para poder produzir e distribuir os filmes às salas de cinema. Sobre essa questão, Syd Field (2001) afirma que o cinema depende da colaboração de profissionais para que a história chegue ao público (p. 196). É essa coletividade um dos fatores mais importantes para o êxito de uma produção cinematográfica, mesmo que o diretor seja o principal responsável por ela.

Na literatura, por outro lado, as palavras conduzem as narrativas. Elas descrevem os personagens, as situações, localizam ao leitor onde se passam os acontecimentos. A imaginação pode ser exercitada na criação das histórias, sem ou com pouquíssimos limites, diferente do cinema que, em geral, cada escolha pode implicar em um custo adicional à produção. No entanto, a sonoridade, o ritmo das frases é de vital importância. Para isso ser possível, a composição das frases, pontuação e escolhas de palavras, entre elas sinônimos e antônimos, compõem a estrutura do texto e atraem a atenção de pessoas que se interessam por essas características. É um processo demorado, analítico, meticuloso e, muitas vezes, solitário para o autor. Em geral, ele realiza diversas revisões para que o texto possa ser fluído e entendido pelo leitor ou obscuro, se assim preferir. A poesia por trás das palavras, como as metáforas e outras figuras de linguagem, são inseridas cuidadosamente, bem como os intertextos que potencializam e embelezam a escrita.

As características da literatura e do cinema, como algumas mencionadas anteriormente, devem ser observadas quando se pretende adaptar uma obra de um meio de comunicação a outro, a fim de analisar como proceder no trabalho. Para esse ato, como aponta John Milton, podemos ter diferentes sinônimos, como: “apropriação, recontextualização, trans-adaptação, derivação, redução, simplificação, condensação, resumo, versão especial, reescrita, fruto, transformação, reparo, revisão”[1]. (2010, p. 3) Constantemente, esses termos podem ser citados em materiais teóricos acerca do assunto, bem como em conversas e debates sobre o tema. O vital é que se entenda que “a adaptação sempre envolve tanto uma (re-)interpretação quanto uma (re-)criação”. (HUTCHEON, 2011, p. 29). Algo novo se cria. É uma nova versão, porém adequada ao meio em que se está contando a história, nesse caso o cinema.

“VIAGEM À LUA” – A CÉLEBRE ADAPTAÇÃO DE MÉLIÈS

Os pesquisadores costumam atribuir a data de 28 de dezembro de 1895 como marco inicial do cinema. Na ocasião, os irmãosLouis e Auguste Lumière teriam realizado a primeira exibição pública de alguns filmes na França. O início se deu de modo tímido, sendo apenas mais uma simples novidade em meio a tantas outras. Ele “apareceu misturado a outras formas de diversão populares, como feiras de atrações, circo, espetáculos de magia e de aberrações” (COSTA, 2005, p. 17).  Aos poucos, as narrativas foram sendo desenvolvidas com maior profundidade e as técnicas cinematográficas evoluíram, o que contribuiu para produzir filmes que agradassem um grande público capaz de fazê-lo crescer e se tornar uma importante meio industrial, cultural e artístico.

Até o momento não se pode afirmar quando e qual foi a primeira adaptação cinematográfica. Afinal, muito dos filmes produzidos ao longo da história deterioraram-se devido à fragilidade do material. No entanto, sabe-se que desde os primeiros anos alguns diretores adaptaram obras literárias para o cinema. Uma das mais significantes daquele período refere-se aos livros “Da Terra à Lua” (De la Terre à la Lune), de Júlio Verne, publicado em 1865 e “Os primeiros Homens da Lua” (The First Men in the Moon), de Herbert Georges Wells, publicado em1901.

O primeiro conta a história do Clube do Canhão, uma organização com experiência em construir equipamentos bélicos, que estava sem trabalho por causa do término da Guerra de Secessão, ocorrida nos Estados Unidos. Sob ordens de Barbicane, presidente do grupo, é desenvolvido um projétil para ir à Lua, que não consegue atingir o objetivo, apenas aproxima-se dela. Verne escreveu “Da Terra à Lua” utilizando diversos detalhes acerca da geografia da Terra, de dados espaciais e cálculos para garantir verossimilhança ao leitor e instruir como a viagem fora realizada pelos personagens. É uma narrativa rica em descrições que possibilita que se adentre no universo dos personagens e na ficção científica criada pelo autor.

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Figura 1 – Capa do livro “Da Terra à Lua”, de Júlio Verne.

Fonte: http://baixarebook.com/2016/03/14/livro-da-terra-a-lua-julio-verne-pdf-mobi-ler-online/

Em “Os primeiros Homens da Lua”, o personagem Bedford inicia a narrativa comentando que conheceu o cientista Dr. Cavor quando alugou uma casa no campo e que este havia desenvolvido um material chamado cavorita, capaz de anular a força da gravidade. Os dois a utilizaram para revestir uma pequena espaçonave, a fim de irem à Lua, onde conheceram os selenitas, habitantes daquele lugar. Wells descreve esses seres, a paisagem lunar e os esforços de Bedford e Dr. Cavor para que o leitor possa imaginar como os personagens interagiram-se entre eles, além dos detalhes que o primeiro fornece de tudo o que viu e das sensações vivenciadas naquele ambiente. O autor ainda provoca suspense quanto ao desfecho dos fatos, instigando o leitor a presumir o desfecho da obra.

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Figura 2 – Capa do livro “Os primeiros Homens da Lua”, de H.G. Wells

Fonte: https://www.skoob.com.br/os-primeiros-homens-da-lua-126088ed139864.html

Em 1902, “Da Terra à Lua” e “Os primeiros Homens da Lua” foram adaptados para o cinema por Georges Méliès, um cineasta francês, conhecido por realizar diversas experimentações nos filmes, sobretudo nas imagens. A obra baseada nos referidos livros recebeu o título de “Viagem à Lua” (Le Voyage dans la Lune), tendo apenas cerca de quinze minutos de duração. A narrativa fílmica é considerada uma das mais relevantes da história do cinema, sendo referenciada em diversas produções audiovisuais, como videoclipes e filmes, ao longo do tempo.

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Figura 3 – Frame do filme “Viagem à Lua”, em que o foguete chega ao destino planejado

Fonte: Printscreen do filme “Viagem à Lua”, de Georges Méliès

Para transpor o livro de Júlio Verne e de Herbert Georges Wells ao cinema, Georges Méliès necessitou eleger trechos das duas obras e recriá-los através de imagens. Isso costuma ser frequente quando se adapta um texto para o meio cinematográfico. Afinal, as obras fílmicas costumam ter uma variação de tempo devido às exigências das sala de cinema e aos anseios do público alvo. Além disso, em uma análise acerca de uma adaptação cinematográfica é importante lembrar também o contexto da época em que a adaptação foi realizada para que se entenda um pouco das escolhas feitas pelo diretor. Méliès foi um dos grandes cineastas do período conhecido como primeiro cinema, que vai até o ano de 1908, como salienta Flávia Cesarino Costa, no livro “O Primeiro Cinema: Espetáculo, Narração, Domesticação”:

De 1895 a 1908 temos um cinema preocupado em surpreender o espectador, estruturado em um ou mais planos autônomos, arranjados como os números de variedades, consumido em performances em que os exibidores têm grande participação na organização dos filmes e no acompanhamento sonoro, um cinema cujos eventuais atores utilizam uma gestualidade afetada e exagerada (proveniente do melodrama), muitas vezes se dirigindo ao espectador. É um cinema dominado por uma forte tendência ao espetáculo e uma fraca tendência à narração.  (2005, p. 112)

Foi nesse contexto que Méliès realizou centenas de filmes, inclusive “Viagem à Lua”. Acostumado com os espetáculos de variedades, sobretudo com truques de mágicas, acredita-se que o diretor se interessou pelo cinema logo após a apresentação pública realizada pelos irmãos Lumière em 1895. Méliès imaginou que essa nova arte poderia ter grande potencial para entreter as pessoas. Diante disso, resolveu, então, aventurar-se nesse novo meio.

Com “Viagem à Lua”, Georges Méliès cria um mundo de fantasia. Os selenitas, personagens que habitam a superfície lunar, são dotados de movimentos incomuns, como o fato de se arrastarem no chão, pular de um lado para outro, além do próprio corpo que os difere dos terráqueos. Esses detalhes não constam na obra de Verne, pois, no livro, os personagens do Clube do Canhão nem chegam à Lua. Na obra de Wells, há pequenos indícios acerca dessas características, porém, Méliès concebe aos selenitas movimentos e aparência física distintos da referida obra.

O ambiente lunar e os demais locais mostrados no filme foram cuidadosamente planejados pelo diretor, a fim de que o espectador pudesse envolver–se na atmosfera da história. Os cenários nos dão a ideia, logo no início, de que se trata de uma localidade em que se discute astronomia, bem como os demais espaços construídos para as demais cenas que auxiliam na verossimilhança da obra. Além disso, Méliès utilizou-se de diversos efeitos especiais na composição do filme, evidenciando uma característica da época: a experimentação. Diversas trucagens visuais, bastante simples se comparadas com as utilizadas no século XXI, conferem ao filme uma atmosfera distante da que o leitor pode ter imaginado quando leu os livros de Júlio Verne e de Herbert Georges Wells.

Pode-se afirmar que as limitações técnicas da época contribuíram para as escolhas de Méliès na composição do filme. Naquele tempo, a duração das obras audiovisuais era de poucos minutos, o que comprova o fato de “Viagem à Lua” ser uma trama contada de forma rápida com menos de quinze minutos. Os recursos para filmagem eram escassos. O cinema ainda não apresentava uma estrutura narrativa que pudesse auxiliar os diretores na criação e adaptação das histórias. A grande maioria daqueles filmes era apresentada sem acompanhamento de áudio e, muitas vezes, parcialmente, cabendo aos exibidores escolherem quais cenas desejavam. Cada segundo continha dezesseis frames (quadros) por segundo, o que significa que a cada segundo era possível ver dezesseis imagens uma após a outra criando a ilusão de movimento. Isso tornava a obra mais rápida do que as produzidas atualmente que apresentam vinte e quatro ou mais frames por segundo.

Na atualidade, o público pode acompanhar as obras do período denominado primeiro cinema graças a pesquisadores que encontraram diversas obras que haviam sido perdidas. Muitas delas foram restauradas e passaram a conter letreiros com o intuito de explicar as cenas aos espectadores por causa da falta de alguns trechos ou em razão da difícil compreensão acerca do que ocorre nas sequências. A restauração possibilitou que, em diversos casos, o público passasse a assistir a esses filmes com trilhas sonoras, imagens sem grandes interferências dos efeitos ocasionados pela deterioração do tempo e até mesmo algumas sequências em cores.

 

RECRIANDO “A INVENÇÃO DE HUGO CABRET” NO CINEMA

O livro “A Invenção de Hugo Cabret”, escrito por Brian Selznick, tem como público alvo crianças e adolescentes. Possui 534 páginas, sendo que 322são de ilustrações, em preto e branco, realizadas por Brian Selznick; frames de filmes; desenhos do cineasta Georges Méliès e fotos de arquivos. Essas imagens contam a história sem a necessidade do uso de palavras. Elas narram diversos acontecimentos, mostrando os personagens se deslocando pelos lugares e interagindo entre eles. Selznick escreveu a obra fazendo homenagem ao cinema tanto pelas imagens quanto pelo estilo de escrita que remete às obras cinematográficas.

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Figura 4 – À esquerda, capa do livro de “A Invenção de Hugo Cabret”; e à direita, da adaptação cinematográfica

Fonte: Montagem feita pelo autor do artigo.

A história de “A Invenção de Hugo Cabret” acontece em Paris, na década de 1930. Hugo, interpretado, no filme, por Asa Butterfield é um menino de doze anos que vive escondido na estação desde a morte do pai (Jude Law) quando passou a conviver com o tio (Ray Winstone). Georges Méliès (Ben Kingsley), diretor de “Viagem à Lua”, trabalha como vendedor de brinquedos naquele local, sem as pessoas desconfiarem do passado que guarda em segredo. Os dois começam a ter contato após Hugo roubar algumas peças das mercadorias de Méliès para que pudesse consertar um autômato que o pai lhe deixou. Hugo, então, passa a ajudar o vendedor como pagamento pelo que furtara e em troca de que Méliès devolva o caderno que pegou do menino por conter desenhos que lembravam o próprio passado. Com o contato com o cineasta, Hugo se torna amigo de Isabelle (Chloë Grace Moretz), uma menina de mesma idade que mora com Méliès, e juntos descobrem os segredos que Georges esconde dos demais. O filme é uma homenagem ao período do primeiro cinema, sobretudo ao diretor francês pela contribuição à história da sétima arte.

Na época em que “Viagem à Lua” foi produzido havia diversas limitações para realizar uma obra fílmica. O uso da película não permitia tanta flexibilidade no trabalho quanto o digital. Porém, podia-se trabalhar com texturas que as novas ferramentas não oferecem. Ambos são estéticas diferenciadas. A película agora não é mais uma limitação, mas uma opção para a composição de uma obra cinematográfica. Com “A Invenção de Hugo Cabret”, de 2011, observa-se que muitos daqueles empecilhos foram superados. A tecnologia passou a ser amplamente utilizada pelo cinema, especialmente no século XXI com o avanço das ferramentas digitais que não existiam na época de Méliès. Uma delas é a técnica 3D que foi utilizada por Martin Scorsese com o objetivo de provocar a sensação de o espectador imergir nas cenas.

Nesse novo modo de se fazer cinema, cenas com momentos de intensa ação, perseguições, guerras, eventos e personagens sobrenaturais, paisagens de lugares longínquos e de difícil acesso podem ser inseridas através de um trabalho meticuloso de manipulação das imagens. A estação em que se passa a narrativa de “A Invenção de Hugo Cabret” e os acidentes de trens mostrados no longa-metragem são alguns exemplos. Os estúdios contam com o auxílio diversos equipamentos para captação de imagens, criação da ambientação sonora e trabalho de pós-produção em que são criados os efeitos e realizada a correção de possíveis problemas no material gravado. Os filmes se tornaram grandes investimentos, sendo a produção, em muitos casos, rigidamente controlada para que se obtenha o retorno financeiro esperado. Diferente de “Viagem à Lua”, em “A Invenção de Hugo Cabret” os diálogos são ouvidos pelos espectadores, além dos elementos sonoros que reiteram o que o público assiste e até mesmoconferem novos dimensionamentos ao apresentarem ruídos ao qual não estamos acostumados no cotidiano. Eles conferem verossimilhança ao enredo, tornando a narrativa atraente e dinâmica.

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Figura 5 – Imagem dos bastidores de “A Invenção de Hugo Cabret”, dirigido por Martin Scorsese

Fonte: https://cinemaeaminhapraia.com.br/tag/perda/

É importante lembrar também que o modelo comercial ao qual o cinema está inserido obrigou que as narrativas apresentassem roteiros mais estruturados. Muitas vezes, com início, meio e fim bem definidos com o intuito de que o público possa se identificar com os personagens e as situações abordadas. Diferente de grande parte dos primeiros filmes, existem protagonistas e é neles que se centram as ações, como no caso de “A Invenção de Hugo Cabret”, em que o enfoque principal é no personagem referido no título da obra. Esse enfoque traz maior relação e empatia com o público. No entanto, é importante ressaltar que o roteiro cinematográfico possui normas de escrita bem diferentes de uma peça literária, como, por exemplo, a ênfase na ação, na descrição física de personagens e ambientes, diálogos, de modo geral, mais curtos, simples e objetivos.

Na adaptação, o diretor compõe a obra cinematográfica por meio da própria identidade: valores, opiniões, estilo, o modo como vê o mundo. Ele não é alguém que ilustra o texto no cinema, mas que o adequa à cultura e ao meio para o qual está adaptando a história. Durante essa tarefa, ele reflete como pode levá-la ao público através de imagens naquele momento e naquele contexto social. Foi desse modo que Martin Scorsese concebeu o filme “A Invenção de Hugo Cabret”. O diretor conhecido por dirigir filmes que tinham o público alvo com idade acima de dezoito anos decidiu realizar uma produção que poderia ser assistida por crianças. Nela, Scorsese comparou a sociedade atual a uma máquina: as pessoas não param de trabalharandam apressadamente e o tempo é regido de forma controlada. O relógio, objeto tão destacado ao longo da obra, é a evidência desse controle e do desejo de uma sociedade marcada pelo consumo que espera usufruir, em muitos casos, de forma imediata.

O universo fílmico de “A Invenção de Hugo Cabret” contém personagens, cenários e ações com um desenvolvimento maior em relação ao filme de Méliès. É notável que o filme de Martin Scorsese foi favorecido pela evolução das técnicas cinematográficas. Isso foi essencial para se criar uma trama mais estruturada do ponto de vista narrativo. A história apresenta maior complexidade do que no início do século passado quando “Viagem à Lua” foi adaptada dos livros de Júlio Verne e de Herbert Georges Wells. Atualmente, os enredos apresentam personagens, de modo geral, mais elaborados, contendo qualidades, defeitos, gestos e ações não tão excessivas. Os cenários, objetos de cena, elementos sonoros e de tratamento de imagem contribuem para que o público possa imergir de forma mais profunda nas narrativas em relação às que eram produzidas no passado.

O modo com que Martin Scorsese compõe os enquadramentos reflete como o cinema do século XXI tem uma concepção diferente dos primeiros filmes. Em “Viagem à Lua”, os corpos dos personagens são mostrados inteiramente na tela. Utilizava-se poucos planos detalhes, enquadramento que mostra partes de objetos ou do corpo humano com proximidade para destacá-los. Além disso, naquela período, o espectador não conseguia perceber tantos traços nos rostos dos personagens, cor dos olhos e tantas outras sutilezas devido à distância do enquadramento. Em “A Invenção de Hugo Cabret”, por exemplo, podem ser vistas, em algumas cenas, apenas o rosto do protagonista. As lágrimas do menino, por exemplo, correm e o público as vê claramente, o que seria impossível se a câmera estivesse distante mostrando o corpo dele inteiro.

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Figura 6 – Diferença de enquadramentos entre “Viagem à Lua” (1902), à esquerda, e “A Invenção de Hugo Cabret” (2011), à direita.

Fonte: Printscreen dos filmes “Viagem à Lua” e “A Invenção de Hugo Cabret”

Ao escolher qual enquadramento será utilizado para a cena, o diretor confere diferentes sensações na narrativa, pois essa é uma escolha que interfere de forma significativa na atmosfera da obra. É como se o enquadramento fosse uma pintura. Nela, o diretor decide onde o ator ficará, visando como o público será impactado pela emoção que ele deseja transmitir através dos gestos do personagem. Além disso, com o enquadramento escolhido, é necessário analisar de que forma aquele momento será iluminado para expressar o que o personagem está sentindo. Os objetos que estão em cena também podem dizer algo sobre aquele instante. A época em que se passa a história; se o local em que ele está é bem arrumado; se é um hospital, uma escola ou outra localidade; a organização do personagem se é mostrado o quarto dele arrumado; se é uma pessoa doente e/ou viciada em remédios se próximo a ele estiverem diversas caixas de medicamentos; a classe social ao revelar o tamanho da casa, qual ou quais veículos possui, roupas que veste. O enquadramento molda e delimita o olhar do espectador, afastando-o ou aproximando-o da história, sensibilizando o espectador com a história.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se analisar adaptações cinematográficas de diferentes períodos como “Viagem à Lua”, de 1902, e “A Invenção de Hugo Cabret”, de 2011, constata-se modos distintos de transpor uma obra literária para o cinema. Isso ocorre por causa das limitações técnicas e das possibilidades tecnológicas que o cinema apresenta em determinado momento. Além disso, as diferentes leituras realizadas pelos profissionais do campo audiovisual, em especial do diretor, principal responsável pela parte artística da adaptação, afeta como o texto será contado em imagens. Há ainda o fato de que as estéticas, tendências, discussões de cada época podem ser transpostas para os filmes, alterando a narrativa com grandes modificações na história.

Os dados expostos neste ensaio exemplificam algumas influências que impactam diretamente no resultado da adaptação, sendo difícil que uma obra literária seja transposta para o cinema da mesma forma em tempos distintos. Cada diretor que coordena a realização da obra fílmica traz a própria visão que tem do mundo e a insere no filme, tal como o escritor faz quando escreve um livro. Portanto, um texto passará por diversas influências ao ser adaptado para o cinema e, evidentemente, que deverá ser adequado às características desse novo meio, visando alcançar público e o retorno esperado com a produção, seja financeira, artística, cultural, crítica social ou qualquer outra que se objetiva.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005. 256 p.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da Adaptação. Tradução André Chechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. 280 p.

MILTON, John. Adaptation. In: Handbook of Translation Studies. Amsterdam/Philadelphis:  Yves Gambier and Luc van Doorslaer, 2010. v. 1, p. 3-6

SELZNICK, Brian. The Invention of Hugo Cabret. New York: Scholastic Press, 2007. 536 p.

SILVA, Alessandra Collaço. A Invenção de Hugo Cabret e a Reinvenção de Scorsese. EntreVer – Revista das Licenciaturas. Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 297-309, jul./dez. 2012

FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográficoTradução Alvaro Ramos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 223 p.

VERNE, Júlio. From the Earth to the Moon.[E-book]. Tradutor desconhecido. [Consult. 20/06/2016]. Disponível na internet <URL:http://www.mckinley.k12.hi.us/ebooks/pdf/moon10.pdf>.

WELLS, Herbert Georges. Os primeiros homens da lua. Tradução Fernando Py. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985. 177p.

 

REFERÊNCIAS FÍLMICAS

A INVENÇÃO de Hugo Cabret. Produção: Martin Scorsese, Jony Depp, Tim Headington e Graham King. Direção: Martin Scorsese. Roteiro: John Logan.  Intérpretes: Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz, Jude Law e outros. Estados Unidos, Paramount Pictures, 2011. DVD, 126 min, Son., color. Legendado. Produzido por GK Films e Infinitum Nihil.

VIAGEM à Lua. Produção, Direção e Roteiro: Georges Méliès. Intérpretes: Bleuette Bernon, François Lallement, Georges Méliès, Henri Delannoy e outros. França, Georges Méliès, 1902, 13 min, mudo, preto e branco. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rttJC8B1aMM>

 

* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina

 

[1]M.T: “adaptation, appropriation, recontextualization, tradaptation, spinoff, reduction, simplification, condensation, abridgement, special version, reworking, offshoot, transformation, remediation, re-vision”.