Tradução comentada de Dora, de Vanessa Geronimo – Yéo N’gana
Tradução comentada de Dora, de Vanessa Geronimo
Yéo N’gana*
Se escrever é confidenciar-se publicamente, conforme defende Gabriel Perissé na sua obra A Arte de Escrever: Como criar seu estilo pessoal na comunicação escrita (2003), implica dois aspectos: um motivo para uma tal confissão e um ouvidor(a) e/ou escutador(a) capaz de decifrar e [co]mover-se com esse tautócrono emocional. O poema Dora foi tingido com as lágrimas da autora Vanessa Geronimo, estudante de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Tradução da Universidade de Santa Catarina (UFSC). Este trabalhado consiste em traduzir Dora do português para o francês privilegiando o saber que remete ao conteúdo, isto é, o sentido ao invés do sabor, quer dizer, da forma, devido ao conhecimento de que a autora procurou, ao escrever, descarregar-se desse infortúnio que a alma mal suportava. É possível perceber, no poema, versos livres, livres e libertadores, soltos mas não solteiros pois permanecem sob a vigia dos olhos atentos da autora. Segue o poema:
Dora
Eu tento seguir a minha rotina
Mas grita a tristeza profunda no peito
A dor da saudade de um anjo sem asas
Que brinca que late e traz felicidade
Eu sei que eles vêm para amar e se vão
Pois sozinhos não sabem viver
Mas penso no olhar tão sincero e tão bom
E pulsa no peito a dor de perder
Não só penso mas sei que se foi
Um pedaço do meu coração
E agora me acalma, anjo que late,
E transforma a saudade em eterna canção.
(Autora: Vanessa Geronimo)
Processo de tradução
Toda e qualquer produção literária – implícito ou explicitamente – está permeada por elementos sociais e culturais. Estes são os itens culturais-específicos (Aixelá, 2013) produzido num tempo e num espaço. A tradução desses elementos de uma língua para outra implica que o tradutor entenda o funcionamento dessa pragmática discursiva da qual depende a compreensão do texto ou poema para ser traduzido. Pois embora pareça pessoal, o poema de Geronimo também se encaixa num conjunto de convenções pertencentes à sociedade na qual ela vive, isto é, do Brasil. Apesar de morarmos nesta mesma sociedade, continuamos encontrando e enfrentando a questão relativa ao tratamento dos anisomorfismos (Aixelá, idem) que constituem elementos fundamentais para a interpretação socio-cultural (Lambert, 2016) da tradução para o francês. O anisomorfismo mais conhecido encontrado neste poema, é a palavra “saudade”. Ela faz lembrar as palavras “sertão” e “fato”. Se o Sertão remete ao deserto, é bem típico do Brasil. É diferente do deserto da Antártida, do Saara, da Arábia, de Gobi, etc. O mesmo acontece com a palavra “fato” usada pelos portugueses mais para se referir ao “terno” brasileiro que para falar de “facto”. É essa consciência, digamos diferenciada, que Aixelá aponta no seu trabalho. De ambos os lados existe um imaginário sobre o referente “fato” mas a interpretação sociocultural difere, igual a palavra “saudade”. Esta palavra – por ser polissêmica – pode dificultar sua interpretação se o tradutor/leitor não tiver a consciência história (Berman) capaz de ajudá-lo na construção do sentido. O dicionário Eletrônico Michaelis a traduz em francês por “manque”, “regret”; o dicionário Lefigaro oferece “nostalgie” e quanto ao dicionário InterAtivo de Terminologia para a Europa (IATE) temos “nostalgie” e “mélancolie”. O mais recorrente significado aqui é “nostalgie”. Só que saudade, pensamos, nem sempre remete à melancolia. O que sabemos com certeza, é que em toda e qualquer situação de saudade, há irremediavelmente um sentimento e/ou fato concreto de falta, de não existência ou seja de ausência de alguém ou de alguma coisa. Por isso, optamos por “absence” em francês não que seja a tradução perfeita da palavra, mas com o intuito de reduzir essas tensões sêmicas e resultamos em: La douleur de l’absence d’un ange sans aile. O tratamento e privilégio da palavra saudade no texto fonte, embora não seja repetida, faz dela a mais importante do poema no seu conjunto. Tanto os dois primeiros versos quanto o resto, todos são, ao nosso ver, um desdobramento, uma tentiva pela autora de descrever aquilo que vivenciava, essa tal saudade. Não conseguimos repetir “absence” como indicado acima, talvez seja fruto da nossa interpretação, pois a saudade cresceu tanto, amadureceu tanto que se tornou tristeza (tristesse em francês), uma saudade que a própria autora não pode vencer. Por ser uma elegia, a referência nesse ponto à tristeza foi quase como espontânea. É por isso que no final do poema, ela faz como último recurso, esse chamamento que se assemelha a uma oração cuja expectativa é transformar a saudade sentida, em uma “eterna canção” com a qual ela está condenada a viver. Na sua poética do traduzir (2010), Meschonnic já na sua introdução disse que “a teoria é apenas o acompanhamento reflexivo, […] mas a experiência vem em primeiro” (p. xvii). Por isso, a palavra canção que fecha o poema criou algumas dúvidas.
O texto fonte sendo uma poesia lírica, buscamos não perder esse lirismo. Tentamos na medida do possível manter o uso da primeira pessoa como: Eu tento, Eu sei, Mas penso, Não só penso, mas sei em francês por J’essaie, J’sais, Mais je pense, Sans nul doute, Je sais. Perdemos a linearidade dos pronomes no texto fonte com a introdução de “sans nul doute” em vez de Non seulement je sais ou j’en ai non seulement conscience que resultaria num alongamento quase desnecessário. A substituição da expressão “não só sei” por Sans nul doute não impediu que possamos transpor o saber, isto é, o sentido. Perdemos também duas rimas nas duas últimas estrofes. O sistema de metrificação tenta seguir o dinamismo da língua. Conforme as línguas e culturas, o parâmetro para se medir o sabor de uma poesia também muda. Portanto o posicionamento a respeito da versificação de alguns críticos franceses hoje à imagem de Fénelon : “nossa versificação perde cada vez mais, se não me engano, de que ganha com as rimas: ela perde ainda em diversidade, facilidade e harmonia. Às vezes a rima, que um poeta vai procurar bem longe, leva-o a alongar e fazer languescer seu discurso. […]”. Isso segundo Fénelon (apud Vaillant, 2005) não é o fundamento da poesia. Não que rimar é ruim em si, mas fazer disso uma condição sine qua non para se julgar uma poesia ilude mais o leitor do que alude às realidades do mesmo.
Traduzimos o verbo “transformar” por “muer” em vez de transformer. Pois muer embora pouco usado, carrega a ideia de mudança com o tempo, de uma constante transformação. A saudade da autora vai assim se metamorfoseando com o passar do tempo. Vai ganhando outros corpos, outras vozes. Portanto, a palavra “canção” foi traduzida por “voix” (voz) ao invés de “chanson”. Pois o sentido de saudade mesmo em português sendo infixável, o uso de “voix” permite conservar essa ambiguidade. Muer expressa também a idéia de nuançar, ou de fundir uma tristeza que vem lembrando uma alegria vivenciada. Quanto à palavra “profunda”, escolhemos “insondable” em francês, pois além de significar profundo, também traz à tona a complexidade e/ou dificuldade que se tem em medir o sofrimento da autora. Na “frase que brinca que late e traz felicidade”, tivemos que remover o pronome relativo que repetido ao longo do verso cujo papel era ajudar a enfatizar como dizia Senghor (1961) escreveu em Nocturne, “Que morra o poema, que se desintegre a sintaxe, que se danifiquem as palavras que não são essenciais”. Se o que é essencial no verso de partida, não foi na tradução. Assim apresentamos a nossa proposta de tradução para o francês:
Dora
J’essaie de suivre ma routine
Mais résonne en moi une tristesse si insondable
La douleur de l’absence d’un ange sans aile
Qui joue, aboie et apporte la joie
J’sais qu’ils viennent aimer et ensuite s’en vont
Car tous seuls, ils ne savent pas vivre
Mais je pense à ce regard si sincère, si bon
Et s’agite dans ma poitrine, la douleur de perdre
Sans nul doute, je sais que s’en est allée
Une partie de mon cœur déchiré
Console-moi à présent, ô ange qui aboie,
Et mue ma tristesse en une éternelle voix.
(Poema de : Vanessa Geronimo – Tradução para o francês de : Yéo N’gana)
No limiar deste e de outros trabalhos acreditamos que é de extrema importância definir de princípio o projeto de tradução. Conforme mencionamos no início, procuramos manter o lirismo e principalmente o conteúdo da melhor maneira possível. Se tivéssemos nos preocupado unicamente com a forma, não há dúvida que até nossas escolhas poderiam sofrer algumas alterações. É importante ressaltar a relevância da questão cultural que permeia todo e qualquer texto, seja poesia ou seja prosa e acreditamos também ter mostrado esse aspecto.
* Doutorando em Estudos de Tradução, possui Graduação em Letras (Português) pela Universidade Félix Houphouët Boigny (UFHB – 2010) e Mestrado em Letras pela Universidade Félix Houphouët Boigny (UFHB – 2014). Membro do Núcleo de Pesquisa História da Tradução (CNPq/UFSC). Revisor na Revista Cadernos de Tradução do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução (UFSC).
Referências
BERMAN, Antoine. Pour une critique des traductions : John Donne. Paris : Gallimard,
MESCHONNIC, Henri. A poética do traduzir. [trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich]. São Paulo: Perspectiva, 2010.
PERISSÉ, Gabriel. A arte da palavra: como criar um estilo pessoal na comunicação escrita. SP: Manole, 2003.
SENGHOR, Léopold S. In: “The African writer as translator” in Journal of African Cultural Studies. London: Routledge, vol. 16, n°2, 2003.
VAILLANT, Alain. « Pour une poétique du vers syllabique », Poétique 3/2005 (n° 143), p. 259-281. Disponível em : www.cairn.info/revue-poetique-2005-3-page-259.htm
Dicionários eletrônicos:
InterActive Terminology for Europe (IATE): http://iate.europa.eu/SearchByQuery.do
Dictionnaire français Larousse: http://www.larousse.fr/
Dicionário Escolar Francês Michaelis:
http://michaelis.uol.com.br/busca?r=6&f=0&t=5&palavra=saudade