Grandes cidades e relacionamentos interpessoais – uma análise do filme “Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual” (2011) – Alggeri Hendrick Rodrigues
Grandes cidades e relacionamentos interpessoais – uma análise do filme “Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual” (2011)
Alggeri Hendrick Rodrigues[1]
Barulho. Trânsito. Concreto. Paredes. Muros. Selva de pedra. Obstáculos físicos e não físicos. Transponíveis e intransponíveis. Psicológicos. A vida na cidade grande de hoje é um lugar sem-fim desses obstáculos. A cidade é um perigo e talvez, por ser perigo, a cidade assusta, mas também fascina. A cidade grande acelera. Mas deve-se acelerar até quando? A partir desses elementos proponho neste trabalho uma aproximação teórica entre os efeitos causados pelo crescimento, formação e constituição das grandes cidades e a construção (ou desconstrução) dos relacionamentos interpessoais, utilizando como objeto, para tanto, o filme argentino “Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual” (2011).
Nos tempos passados as pessoas costumavam viver em cidades pequenas, em localidades rurais isoladas, protegidas por seus laços familiares, por seus vizinhos e amigos, e resguardadas de forma a conseguirem viver suas vidas em suas terras de forma tranquila e pacata. Com o passar dos anos e, principalmente, com a chegada da Revolução Industrial, as cidades foram crescendo e se tornando centros de trabalho e locais de promessas e garantias de uma vida melhor. As grandes cidades viraram verdadeiros chamarizes para a possibilidade de ascensão social e de melhoria de vida. Mas temos um “porém”: a vida nas cidades grandes é muito diferente da vida levada nas cidades pequenas – o ritmo frenético, os barulhos ensurdecedores e os riscos iminentes fazem parte de toda essa nova situação. O professor e sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), em seu célebre ensaio “As grandes cidades e a vida do espírito”[2] (2005), dada a nova condição estabelecida naquele momento, pontuava com clareza a principal diferença que poderia ser percebida entre os homens do campo e os homens da cidade: os homens da cidade estariam pautados pelo caráter intelectual, já os homens do campo se encontrariam pautados pelo caráter sentimental. Como Simmel colocou em outras palavras, os homens do campo (ou mesmo das cidades pequenas) têm por costume basear as suas relações em círculos menores, costumam conhecer uns aos outros – os produtores rurais sabem quem são os comerciantes ou mesmo outros produtores para quem estão vendendo ou trocando os seus produtos – as relações são caracterizadas pela proximidade. Os homens das cidades grandes, entretanto, não conhecem quem se encontra ao seu lado, para estes as pessoas são meros números: essas pessoas existem às centenas, às milhares e, assim, é praticamente impossível conhecer todas elas. Costumamos ter medo do desconhecido. O medo gera reações, como continua Simmel:
“Assim, o tipo do habitante da cidade grande – que naturalmente é envolto em milhares de modificações individuais – cria um órgão protetor contra o desenraizamento como qual as correntes e discrepâncias de seu meio exterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas sobretudo com o entendimento, para o que a intensificação da consciência, criada pela mesma causa, propicia a prerrogativa anímica. Com isso, a reação àqueles fenômenos é deslocada para o órgão psíquico menos sensível, que está o mais distante possível das profundezas da personalidade. Essa atuação do entendimento, reconhecida portanto como um preservativo da vida subjetiva frente às coações da cidade grande, ramifica-se em e com múltiplos fenômenos singulares”. (SIMMEL, 2005, p. 578).
Seguindo esta lógica, os “desconhecidos” são perigosos e para que as pessoas estejam seguras (longe das ameaças do desconhecido e do perigo) é necessário que elas sejam indiferentes. A indiferença é o desenvolvimento e aplicação prática do que Simmel conceitua no mesmo ensaio como sendo a Blasierheit, ou o caráter blasé: caráter blasé é “o embotamento frente à distinção das coisas” (SIMMEL, 2005, p. 581), ou seja, a aversão, a estranheza, a repulsa – é o sentimento de que a antipatia “nos protege” e funciona de maneira exata para “executar distâncias e afastamentos”. Distâncias e afastamentos não faltam atualmente em nossas cidades e essas situações criadas estão tão naturalizadas que parecem ser condições normais que “sempre estiveram aí”, e que as vidas das pessoas sempre foram assim.
As lentes do cinema – expressão de arte tão exaltada por Walter Benjamin – reforçam e ressaltam situações corriqueiras de forma com que possamos pensar e refletir a respeito delas. Benjamin, em sua discussão sobre “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” (1982), dizia que “o cinema trouxe, consequentemente, um aprofundamento da percepção” e que o cinema pode “fornecer um inventário incomparavelmente mais preciso da realidade”[3] (BENJAMIN, 1982, p. 232). Assim, aproveitando-me das “funções revolucionárias” (BENJAMIN, 1982, p. 226) e das características mencionadas sobre o cinema, trago um filme como objeto para ilustrar a forma com que os relacionamentos estão sendo construídos e se dando nas cidades grandes nos dias de hoje: a película argentina “Medianeras”.
A história deste filme de comédia e romance, dirigido por Gustavo Taretto, acontece na capital da República Argentina e retrata dois personagens principais: Martín (Javier Drolas) e Mariana (Pilar López de Ayala)[4]. Martín é um criador de websites e vive em um processo de tentativa de libertação de uma condição isolacionista. Mariana é arquiteta[5], mas trabalha como vitrinista, foi abandonada pelo namorado e também se mantém reclusa. Ambos residem na mesma avenida, a Avenida Santa Fé, mesmo assim não se conhecem. Buenos Aires é a grande metrópole cosmopolita que os une, mas que também os separa.
Martín é o primeiro a aparecer no filme. Dentro de sua quitinete escura de quarenta metros quadrados ele está usando um mensageiro eletrônico no computador e altera o seu status para: “super available” (“superdisponível”). Está mesmo “superdisponível”? Martín não saiu de casa por cerca de dois anos, descobriu que por meio da internet era possível fazer todo o necessário para viver de dentro da sua bolha de proteção: trabalhar (como web designer), realizar serviços de banco, jogar videogame, ler revistas, baixar músicas, ouvir rádio, alugar e ver filmes, conversar, estudar, e até mesmo ter relações sexuais – não era necessário abandonar o seu abrigo, o seu refúgio. Ele está ciente de tudo isso, e diz que “a internet o aproximou do mundo, mas o distanciou da vida”. O personagem tem medo de sair na rua, e o seu psiquiatra o ajudou, por meio da fotografia, a perder o medo da cidade, o medo dos outros, o medo do mundo. Nas poucas vezes que sai de casa, para fotografar, sai somente a pé, não anda de ônibus, nem de táxi, nem de metrô, muito menos de avião – aliás, foi em um aeroporto que a sua ex-namorada o deixou para nunca mais voltar. Sua ex-namorada o deixou, mas deixou também uma cachorrinha, Susú, que claramente também tem medo da rua e não é acostumada a ter nenhum tipo de relação com outros animais. Mantendo-se recluso em sua casa, Martín procura relacionamentos pela internet, atuando como em uma espécie de flânerie virtual, flânerie eletrônica (FEATHERSTONE, 2000, p. 202), mas as pessoas que ele encontra na internet são como “um lanche do McDonalds”, parecem melhores e mais interessantes na descrição e nas fotos do que na realidade.
Já Mariana é uma arquiteta. Arquiteta que não construiu nada, apenas umas “maquetes inabitáveis”. Mora em uma quitinete que possui apenas uma porta para a rua: “uma porta que é metade janela, metade sacada, e que não pega sol durante o ano inteiro”, como relata. Seu último relacionamento, de quatro anos, acabou: em certo momento estava com o seu namorado em casa e o observava, mas para ela, ele parecia um desconhecido. Ficou com medo de estar sozinha com esse desconhecido já que ele havia se tornado um estranho para ela. Mariana tem claustrofobia, não entra em elevadores. Em certo momento do filme ela tem um encontro com um rapaz, mas o restaurante em que vão jantar fica no vigésimo andar do prédio. Mariana sobe pelas escadas, só que ao chegar ao final delas desiste do encontro e as desce correndo, voltando para a sua casa e deixando o rapaz sozinho. Mas ela quer tentar encontrar alguém, como normalmente as pessoas fazem meio que por impulso imediatamente após terminar um relacionamento longo. A personagem chega a se interessar por outro homem que conheceu enquanto utilizava a piscina do clube, os dois conversam e depois saem para jantar. Eles vão para a casa dele, mas ele “falha” com ela na cama e ela nunca mais volta a encontrá-lo: depois disso ele deixa de ir para as aulas de natação. Mariana já dava a entender que estava desacreditada das relações interpessoais, chegando ao ponto de simular relações sexuais com um dos manequins que utilizava para as suas vitrines. Posteriormente, ao descartar o manequim “como lixo” na rua, dá um abraço neste, em uma clara aproximação sentimental entre ela e um objeto inanimado. Mariana está tão desacreditada nas relações com as pessoas que, enquanto comenta sobre os fios de energia e comunicação que cortam os céus da cidade, diz: “O futuro está na fibra óptica’, dizem os visionários. Do trabalho você vai poder aumentar a temperatura da sua casa. Claro, ninguém vai esperar você com a casa quentinha. Bem-vindos à era das relações virtuais”. É a falta de esperança de encontrar alguém. A moça também sofre, ainda, de fobia de multidões e acredita que a origem desta sua fobia esteja no livro “Where’s Wally?”. Este é o livro de sua vida, mas ele criou nela uma “angústia existencial bem particular”. Ela cita que “ele representa, de um jeito dramático, a angústia de saber que sou alguém perdido entre milhões”. De todo o livro, apenas uma página ela não conseguiu resolver: “Wally na Cidade“, ela havia conseguido encontrá-lo no shopping, na praia, mas durante todo este tempo não havia conseguido encontrá-lo na cidade. A cidade é um grande enigma e um enorme desafio.
Agora que os dois personagens principais estão devidamente apresentados é possível fazer uma aproximação entre eles. A união e a ligação (ou a falta de união e ligação) dos dois personagens estão conectadas, de certa forma, na arquitetura e na cidade. A arquitetura é fundamental para a progressão da história, tanto que Martín, logo nos primeiros minutos do filme, fala sobre a falta de regularidade na construção e localização dos edifícios na cidade:
“Ao lado de um muito alto, tem um muito baixo. Ao lado de um racionalista, tem um irracional. Ao lado de um em estilo francês, tem um sem estilo. Provavelmente essas irregularidades nos refletem perfeitamente. Irregularidades estéticas e éticas”. (MEDIANERAS, 2011).
É possível perceber uma correlação mais do que unicamente urbanística nesta frase: assim como os prédios que enchem a cidade, pessoas diferentes convivem nela lado a lado, mesmo que saibamos que existem segmentações sociais na divisão dos bairros nas cidades. A composição arquitetônica heterogênea é similar à composição heterogênea das massas que povoam as metrópoles. As irregularidades estéticas e éticas são adjetivos que caracterizam muito melhor pessoas do que objetos, e essas irregularidades nas pessoas podem assustar e causar medo. Com a evolução e o crescimento gigantesco das cidades a arquitetura passa a ser em certa medida “um grande mal”, realizando o distanciamento das pessoas, criando barreiras comunicativas, contribuindo para que elas não tenham nenhum contato além de meras e rasas aproximações físicas. A imensidão de pessoas e a disposição arquitetônica causam muito mais desencontros do que encontros nessas cidades. Temos diversos exemplos dessas situações no filme: em uma das primeiras cenas já observamos o tamanho do perigo que a cidade proporciona – um acidente acontece com um cachorro que cai da sacada de um edifício. O acidente deixa dois feridos[6]: uma pessoa, que foi acertada pelo cachorro na queda, e um homem, que logo após foi atropelado por um táxi. São nítidas aqui as situações de risco que as pessoas estão expostas em uma metrópole: os barulhos ensurdecedores nos fazem perder os sentidos e nos colocam em perigo, o trânsito é perigoso, o que pode vir de cima é perigoso, temos que estar sempre atentos a tudo que acontece ao nosso redor, mas mesmo prestando muita atenção o perigo sempre nos ronda. Martín e Mariana chegaram a estar bem próximos nesta situação: quando o homem foi atingido pelo táxi Martín parece ligar para a emergência e, no mesmo momento, Mariana está ao lado da pessoa que foi atingida pelo cachorro. Eles estão próximos, mas aparentemente não se veem e não se falam. Depois mais uma vez, em outra cena, Mariana está preparando uma nova vitrine de loja e comenta sobre o processo e o que ela sente enquanto está arrumando as vitrines, em uma tentativa de justificar esse seu novo trabalho já que não atua como arquiteta. Ela diz que “imagina, talvez burramente, que se alguém para diante da vitrine, de alguma forma se interessa por ela”, e sai de cena (e da fachada da loja). Um momento depois chega Martín, que para e se detém por um tempo observando a vitrine que ela terminou de arrumar. Em muitas outras ocasiões os dois ficam próximos de se encontrar, mas não se encontram. A mais marcante, entretanto, é quando eles chegam a ficar lado a lado ao esperar no meio da rua para poder atravessar na faixa de segurança: o contorno de suas duas cabeças projeta a imagem de um coração, porém mais uma vez os dois não se olham nem se falam.
As pessoas, enquanto andam pelas cidades, projetam e ostentam o seu mais puro caráter blasé, elas estão indiferentes, não se olham, não buscam encontrar quaisquer rostos conhecidos, seguem o ritmo frenético para realizar as suas tarefas, e não se permitem o olhar da observação, da contemplação. Em seu ensaio, Simmel falou muito bem sobre essa relação das pessoas com a cidade:
“Pois a reserva e indiferença mútuas, as condições espirituais de vida dos círculos maiores, nunca foram sentidas tão fortemente, no que diz respeito ao seu resultado para a independência do indivíduo, do que na densa multidão da cidade grande, porque a estreiteza e proximidade corporal tornaram verdadeiramente explícita a distância espiritual. Decerto é apenas o reverso dessa liberdade se, sob certas circunstâncias, em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado como precisamente na multidão da cidade grande […]”. (SIMMEL, 1982, p. 585).
As pessoas buscam encontrar as pessoas perfeitas e encontrar seus parceiros para relacionamentos pela internet, mas perdem inúmeras oportunidades de conhecer melhor as pessoas que estão muito mais próximas fisicamente. Há uma proximidade corporal, mas uma enorme distância afetiva.
Figura 1 – Martín e Mariana – Medianeras (2011), de Gustavo Taretto
A proximidade corporal, entretanto, existe somente quando as pessoas andam dentro da multidão frenética no meio das ruas, nos outros momentos ela é praticamente inexistente. As pessoas saem de casa de manhã, vencem o trânsito, chegam ao seu trabalho ou local de estudo e depois passam pelo trânsito mais uma vez e voltam para suas casas. Elas ficam confinadas quase que o tempo todo dentro dos mesmos ambientes – quando não a casa ou a escola ou o ambiente de trabalho ou o carro/ônibus/metrô, o shopping, o clube, a casa do amigo, um restaurante, mas nada muito diferente disso, nada fora da zona de conforto e proteção. O título do filme vem expressar de forma acertada como a cidade consegue separar as pessoas. Mas, o que são as tão chamadas “medianeras”? Medianera é a denominação dada às paredes dos prédios que não possuem nenhuma janela, são as paredes que estão localizadas próximas aos outros edifícios. Essas paredes são comumente utilizadas como locais de fixação e divulgação de propagandas e, legalmente, é proibido que janelas sejam abertas nas medianeras, determinação que é visivelmente descumprida. As barreiras criadas por essas paredes-cegas não são única e exclusivamente físicas, já que se sabe que a ausência de iluminação e a sensação de estar em um ambiente quase que hermeticamente fechado causam diversos distúrbios psicológicos, agravando, inclusive, problemas já existentes como a tendência ao isolacionismo.
Figura 2 – Local em que Mariana vive, e a sua janela, na medianera de seu prédio – Filme Medianeras (2011), de Gustavo Taretto.
As menções à falta de iluminação e aos problemas oriundos dessa situação são recorrentes no filme: já na abertura, quando Martín descreve como são estruturados e posicionados os edifícios em Buenos Aires ele lança a frase “vista e claridade são promessas que poucas vezes se concretizam”, vê-se então que estes dois itens são imprescindíveis e provavelmente é o que todas as pessoas buscam quando vão comprar ou alugar um apartamento ou casa. Martín ainda continua:
“É certeza que as separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a tensão muscular, a insegurança, a hipocondria, o estresse e o sedentarismo são culpa dos arquitetos e incorporadores. Esses males, exceto o suicídio, todos me acometem”. (MEDIANERAS, 2011).
Indo mais além, ele atribui quase que todos os males que acometem os seres humanos habitantes das cidades grandes às construções que os circundam. Mas, afinal, as pessoas não buscam as metrópoles justamente atrás de mais oportunidades e melhoria da qualidade de vida? Como ter mais qualidade de vida se a estrutura e o funcionamento dessas cidades causam mais malefícios ao corpo e à mente do que as cidades menores? Hoje, os benefícios de se viver em uma cidade grande são mesmo superiores à qualidade de vida proporcionada pelo interior? Os obstáculos físicos e não-físicos criados pelas selvas de pedra com seus gigantescos muros, paredes e armações de concreto são extremamente gélidos e obscuros e acabam por contribuir cada vez mais para o recolhimento das pessoas, para a sensação de medo e insegurança, para a desconstrução dos relacionamentos interpessoais e o consequente desenvolvimento e amplificação do caráter blasé “generalizado”.
Como mencionado anteriormente, a proibição de abertura de novas janelas nas medianeras é frequentemente descumprida, a ação de quebrar a parede para a instalação de um ponto de entrada de luz é tida como uma ação subversiva, e que a própria Mariana, no decorrer do filme, assume como sendo uma rota de fuga ilegal:
“Para a opressão de viver em apartamentos minúsculos existe uma saída. Uma rota de fuga. Ilegal, como toda rota de fuga. Em clara desobediência às normas de planejamento urbano abrem-se minúsculas, irregulares e irresponsáveis janelas que permitem que alguns milagrosos raios de luz iluminem a escuridão em que vivemos”. (MEDIANERAS, 2011).
No campo psicológico, essas janelas proibidas abertas nas paredes-cegas funcionam como uma válvula de escape para o sentimento de aprisionamento que vem para causar os mais distintos distúrbios mentais. Esses distúrbios acabam por contribuir para um maior distanciamento entre os indivíduos.
Mas se as cidades separam as pessoas, como os relacionamentos podem acontecer? O subtítulo do filme em português já nos dá uma dica: depois de incontáveis e emocionantes “quase encontros” que Martín e Mariana experimentaram em diversos momentos, os dois acabam por se conhecer em um bate-papo na internet, o que, retomando Featherstone, não os torna nada mais nada menos do que, por assim dizer, flâneurs virtuais. A ausência de proximidade, porém, é mais do que nítida, Martín incentiva que Mariana comece a conversa fazendo algumas perguntas e ela diz: “Não sei o que dizer. É estranho falar com alguém de quem não sei nada […] nem sei por onde começar”. No momento em que Mariana se solta e eles conseguem engatar uma conversa (e ele passa seu telefone para ela), a luz na cidade cai e eles não podem mais continuar o diálogo. Os dois então descem de seus apartamentos para comprar velas e vão até a mesma mercearia, que é o local onde acontece o primeiro contato físico entre eles – o contato é um mero esbarrão, os dois estavam lado a lado, mas não sabiam quem o outro era. Eles compraram suas velas e seguiram para as suas casas, afinal, a regra da vida na cidade grande é ser blasé. No fechamento do filme, Mariana está em seu apartamento, olha pela sua janela e vê Martín, vestido com as mesmas roupas que o personagem Wally. Para ser mais rápida ela enfrenta a sua claustrofobia e desce pelo elevador, correndo ao encontro de quem, desde o início, parecia estar destinado a ela e, então, os dois finalmente se conhecem. Chega assim o momento em que ela consegue superar o seu desafio de infância e achar Wally na cidade, no meio da multidão, quebrando assim com a sua anteriormente mencionada “angústia existencial bem particular”.
Figura 3 – Mariana observa Martín, vestido com a conhecida blusa de Wally – Filme Medianeras (2011), de Gustavo Taretto
Podemos perceber com este filme, por fim, o papel importante que a constituição das grandes cidades de hoje desempenha ao não permitir a aproximação das pessoas como acontecia no passado. As pessoas são vizinhas, mas não se conhecem, e também talvez nem queiram se conhecer. Vivemos em um momento em que deixamos de perceber o mundo ao nosso redor. A cidade é perigosa. O filme trata da solidão urbana, as pessoas hoje vivem as suas vidas de forma solitária no meio de outras tantas milhões de outras pessoas que também compartilham da mesma situação vivendo dentro de suas “solidões”. É difícil conseguir confiar até mesmo em colegas de trabalho, dadas as culturas arraigadas de meritocracias injustas e competitividades exacerbadas que acabam por causar mais mal do que incentivar disputas saudáveis. É praticamente impossível conseguir se abrir completamente para os outros e isso influencia de maneira fundamental nas relações afetivas: as pessoas têm de ser fortes, não podem ter defeitos e caso não correspondam perfeitamente às expectativas do outro passam a ser desinteressantes e descartáveis. Os erros não são mais tolerados, as pessoas têm dificuldades em aceitar os problemas que não são delas e não têm tempo a perder tentando consertar os seus relacionamentos, estão sempre em busca de um relacionamento novo que seja perfeito, sem falhas ou vícios e isso é apenas um indício que demonstra a fragilidade existente nas relações interpessoais de agora. É necessário lutar e ter a esperança de que em algum momento, no futuro, exista alguma revolução que supere e altere essas estruturas de hoje. Em certo momento Mariana diz: “Se mesmo quando eu sei quem estou procurando não consigo encontrar, como vou encontrar o que estou buscando se nem mesmo sei como é?”. Mariana sintetiza muito bem as contradições: a mesma cidade que nos une é a cidade que nos separa, e é o local em que buscamos, mesmo que inconscientemente, encontrar aquilo que irá nos fazer bem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. “a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 209-240.
FEATHERSTONE, Mike. “O flâneur, a cidade e a vida pública virtual”. In: ARANTES, Antonio (org.). O espaço e a diferença. Campinas (SP): Papirus, 2000. p. 186-208.
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana – Estudos de Antropologia Social – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. v. 11, n. 2, p. 577-591, out. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v11n2/27459.pdf>. Acesso em 26 ago. 2016.
REFERÊNCIA AUDIOVISUAL
MEDIANERAS. Direção: Gustavo Taretto. Argentina, Espanha, Alemanha: Eddie Saeta S.A., Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, Pandora Filmproduktion, Rizoma Films, Televisió de Catalunya, Zarlek Producciones: 2011. Espanhol. 95 min.
[1] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – hendrick.de@gmail.com – Florianópolis/SC, Brasil.
[2] Título original, em alemão: Die Großstädte und das Geistesleben, (1903).
[3] É de ciência, entretanto, que tudo pode ser manipulado no cinema – diversos elementos podem manipular a realidade.
[4]Os sobrenomes de Martín e Mariana não são conhecidos, o que pode sugerir certo efeito de impessoalidade aos personagens.
[5] Martin no mundo da internet (arquitetura do ambiente virtual) e Mariana (arquitetura do ambiente real) criam espaços que podem ser explorados pela flânerie.
[6]Essa situação apresentada no filme também retoma outro tópico relacionado ao cinema abordado por Walter Benjamin em seu texto “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Traçando um paralelo com o movimento dadaísta, Benjamin trata do conceito de choque: “Efetivamente, suas manifestações [do dadaísmo] produziram diversão muito violenta, fazendo da obra de arte objeto de escândalo. Seu objetivo era, sobretudo, chocar a opinião pública” e chega ao cinema: “Projeta-se contra o espectador ou ouvinte. Adquire um poder traumático. E favorece assim o gosto pelo cinema, que também possui a característica de diversão, graças aos choques provocados no espectador pelas modificações de lugar e de cenário” (BENJAMIN, 1982, p. 235). Neste caso, o acidente é algo inesperado para quem está assistindo, o que pode ser relacionado à “Schockerlebnis” – experiência de choque. Uma discussão mais aprofundada sobre a relação entre o filme objeto deste trabalho e o conceito de Schockerlebnis poderá ser realizada oportunamente.