Manifesto Kurima Bantu Mulheres Mudempodiro – Roberta Lira
Manifesto Kurima Bantu Mulheres Mudempodiro[1]
Roberta Lira*
O privilégio da “raça” é realidade do Brasil. É a chave e o abismo. É a ficção que deu certo. A cor da pele protege quer queiram aceitar esta realidade ou não. A cor da pele define quem vai ter poder e privilégio. Pessoas brancas vivem uma vida sem as ameaças, ameaças do racismo, ameaças que pessoas negras vivem suas vidas inteiras, e por sua vez pessoas brancas continuam a negar a existência do racismo e de pessoas racistas. Em sociedades estruturadas pelo racismo funciona assim. O Brasil é assim. Quanto mais claro maiores as chances de “fictícia pureza” e “bondade” “fazerem parte da pessoa”, quanto mais escuro maiores as chances de “fictícia impureza” e “maldade” “fazerem parte da pessoa”. O racismo define pessoas. É a semiótica do racismo que ganha vida. Marca corpos. O ápice da irracionalidade. Um pensamento colonial que não se desloca do passado e se reconfigura. E a essência se mantém igual.
Há sempre um momento de fala nas relações humanas e nele, com minha arte trago minha voz para a cena cotidiana ou nas artes das cenas e rompo o silenciamento que me impõem. Silenciamentos imposto a tantas vozes que neste momento falo e canto por mim e por nós. E assim vou (en) cantando, (re) existindo e vivendo melhor, com e em arte e cultura negras que afirmo e difundo pelos “espaços brancos e negros” de Santa Catarina, do Brasil e mundo a fora, pelos espaço que eu quiser e que e se me convém.
Buscamos incansavelmente que aconteça, como fruto de tantas ações coletivas abafadas e lutadas, o processo de descolonização do pensamento e a erradicação das práticas coloniais racistas, machistas, sexistas, as LGBTfobias, o fundamentalismo, a intolerância. Como a eliminação de ideologias e sistemas que constroem e vem mantendo essas opressões como o patriarcado que oprime a nós mulheres e afeta ainda mais nós mulheres negras, indígenas, ciganas, que não temos o privilégio da “raça” e somos os grupos historicamente marginalizados e massacrados no Brasil e em outras parte do mundo. Como é urgente que se coíba e erradique todas as violências interseccionadas, porque têm atingido principalmente a nós mulheres negras e tem matado nossos filhos/as, sobrinhos/as, netos/as.
Como eu, muitas lutaram, lutam e lutamos cada uma a sua maneira, com seus mecanismos, dos seus lugares sociais e nos juntamos em outros momentos para que tenhamos um país e um mundo igualitário, plural, com direitos e equidade de raça e gênero assegurados, em que as desigualdades sociais sejam minimizadas e tenhamos iguais oportunidades. Estejamos livres de violências, possamos viver em um mundo com bem-estar, amor, com acesso às necessidades fundamentais, a solidariedade e respeito, a diversidade humana, que haja harmonia entre os povos em um mundo sustentável.
Eu, enquanto artista, cantora popular, professora de cantos de matriz africana, mulher negra feminista, migrante de São Paulo, radicada na Bahia, vivendo em Florianópolis, estudante cotista do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC), e enquanto liderança e uma das fundadoras de coletivo estudantil negro precursor universitário da UFSC e de seu mais recente desdobramento a entidade de mulheres negras, me agencio e vou rompendo com os lugares impostos pela branquitude nas performances cotidianas e nas artes das cenas e assino minha presença.
Faço que se torne presente a cultura e a arte negras por meio de minhas produções artísticas individuais e ações coletivas para que essas representem, inspirem, naturalizem e também sejam tratadas em nossos espaços públicos – espaços de todas/os, que temos direitos de estar -, mas historicamente considerados “espaços brancos”[2].
Diante disto, sinto uma constante e incansável necessidade de contribuir nessa luta em minha área de atuação profissional, pela militância e ativismo, como muitos artistas vêm fazendo pelo mundo. Dessa maneira, me engajo e vejo que devemos trilhar a cada dia novos caminhos. Caminhos para saírmos da invisibilidade e do ciclo estrutural da desigualdade racial e/ou social que estão intimamente relacionadas e estamos totalmente inseridos.
No Brasil, aumentam essas movimentações negras como aconteceu na UFSC, pelo Coletivo Kurima[3] e pelo Kurima Bantu Mulheres Mudempodiro, que posteriormente vimos surgir pelo Coletivo Negro – 4P, Grupo de Estudos Nelson Mandela (GENM), Quilombo, dentre outros. A palavra “Kurima” tem uma primeira origem na língua kimbundu, da cultura bantu africana e significa: lavrar e cultivar. Assim a palavra traduz a essência e a história do Coletivo: o trabalho e o cultivo – do significado ancestral africano – dão sentido à construção de nossas ações, que vão também para além de um trabalho físico-material, pois têm sentido que transcende e transforma.
Pensando no espaço universitário, ainda que a Universidade deva tratar de todos os temas com igualdade, ela não os trata. Somos negras/os, um público novo nesse espaço historicamente ocupado e construído para o acesso e educação das populações brancas das elites brasileiras. Hoje nós, um dos novos perfis de estudantes, pessoas negras nas universidades públicas, ainda somos um grupo pequeno diante de brancas/os, mas nossa presença se faz relevante e importante. Até a adesão e implementação das políticas de ações afirmativas (cotas raciais e escola pública) pelas universidades, éramos quase inexistentes nesse ambiente. Estar presente nesses espaços tidos como “espaço branco” para nós é uma conquista vitoriosa e mais uma de tantas (re)existências negras.
Para tudo precisamos de um começo e, entrando em um Curso de Artes Cênicas (UFSC) sem diversidade epistemológica e com ensino eurocentrado, investi na criação pioneira de um projeto protagonizado por mim, uma profissional e acadêmica negra, em um espaço de arte e cultura negras, no Departamento de Artes[4] pelo projeto de extensão Vozes de Zambi : Expressão Vocal e Consciência Negra, que idealizei e dirigi. Incentivei o acesso a aulas práticas canto integrado a consciência negra, consciência corporal, performances e outras expressões do corpo em arte e cultura negra, com rodas de conversa sobre cultura e arte política. Como criamos espacialidades negras na universidade por meio do Coletivo Kurima e realizamos diferentes projetos, ações, parcerias com diversas instituições governamentais e não governamentais, professores, TAEs, trouxemos teóricos de diferentes área e estados brasileiros, dentre outras.
Muitas de nossas ações tem criado um ambiente aberto para ampliação da diversidade racial e de gênero na universidade e no curso, onde ainda anseio ver acontecer atividades regularmente. Penso termos dado alguns passos e começamos a ter alguns avanços nestes espaços.
Nessa trajetória, com meu trabalho busco sugerir um outro olhar a partir da desconstrução de um pensamento colonizado. (En) cantos mostrados tal qual cenas pelas letras das canções, que nos deslocam do tempo e nos trazem memórias, histórias, pelas expressões de nossos corpos negros ou por nossas próprias presenças, produções negra, ações coletivas e individuais.
Na música tradicional afrobrasileira Cangoma, dizem os anciãos, o tambor ngoma ou cangoma – como é chamado em kimbundu -, ele que nos é sagrado, soou e anunciou aos escravizados que a escravidão havia acabado. Música de festa, anunciação, que cantamos para pensar na necessidade de libertarmos nossas almas das amarras da branquitude que nos tenta alienar e aprisionar negras/os e aliena brancas/os.
Eu as trago em minha voz cantada e falada em cenas e performances cotidianas onde esta matriz já vem transformada por sua condição diaspórica e tupiniquim – juntamente com outras vozes, imagens, pessoas, histórias e memórias ancestrais.
Fui chamado de cordeiro mais não sou cordeiro
Preferir ficar calado que falar e levar não
O meu silencio é uma singela oração a minha santa de fé
Meu cantar vibram as forças que sustentam meu viver, anunciou Sr.Mateus Aleuia.
Minha trajetória envolve a cultura e a arte negras assim como os seus desdobramentos. Estes desdobramentos estão presentes no meio em que eu vivo e no universo de muitas/os negras/os. São desdobramentos complexos.
Relato, falo, canto, investigo, mostro, analiso, pesquiso, anuncio. Amo, me fortaleço, me religo, me conecto, me espiritualizo, me reinvento propondo este reinventar. Me Religo com África e vou e vamos de alguma forma transcendo na diáspora. Mas a certeza é que há muitos caminhos para desbravar e realmente descobrir como resolver algo que ainda não se soluciona: o problema da raça, do racismo e seus efeitos nas populações negras e brancas.
* Roberta Lira – cantora, atriz, performer, produtora, curadora, pesquisadora, professora de cantos de matrizes africanas e musicalização infantil. Diretora Executiva do Kurima Bantu Mulheres Mudempodiro, Diretora de Projetos, Arte e Cultura do Coletivo Kurima – Estudantes Negras/os da UFSC. Diretora Vozes de Zambi – projeto e coletivo e membro da Association for Women’s Rights in Development (AWID).
[1] Kurima Bantu Mulheres Mudemporiro – Mulheres em Desenvolvimento por Direitos para Ombembwá(Paz): Kurima Bantu Mulheres MUDEMPORIRO – Mulheres em Movimento e Desenvolvimento por Direitos para Ombembwá (Paz) – Movimento de mulheres de origem africana, negras empoderadas ou que estão conquistando empoderamento, que se reúnem para ajudarem na construção de bem estar material e espiritual. A igualdade de gênero e raça é seu maior objetivo: elas lutam por uma sociedade livre de racismo e machismo. Para tanto, se esforçam por preservar suas culturas e identidades e alcançar melhores condições de vida.
[2] Espaços Brancos – O racismo ao definir clivagens sociais e uma hierarquização do indivíduos e grupos por suas pertenças raciais, se expressa na constituição de “lugares“(nos sentidos espacial e social) onde a presença dos desfavorecidos será majoritária (lugares da pobreza, da subalternidade) e lugares onde sua presença é minoritária (lugares de riqueza, do poder, do saber socialmente legitimado) (Santos, 2007). As atribuições subjetivas são influenciadas por princípios valorativos. E na forma prática desta clivagem
vemos que pelas hierarquias, quem “pode” estar em cada um destes lugares conformados pelo racismo.
[3] Coletivo Kurima – Estudantes Negras e Negros da UFSC – O Coletivo Kurima foi criado em 2011, por uma maioria de estudantes negras e negros da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Kurima se distingue e identifica pelo protagonismo negro. Onde as cenas das questões negras são pautas significativas, com espaço para todas as que se façam necessárias. É uma entidade independente[…]”
[4] Departamento de Artes – Antigo Departamento de Artes e Libras(CCE/UFSC).