Ran – A influência da cultura japonesa na adaptação cinematográfica de King Lear – Diogo Berns

RAN – A INFLUÊNCIA DA CULTURA JAPONESA NA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE KING LEAR

 

Diogo Berns[1]

 

 

INTRODUÇÃO

William Shakespeare (1564 – 1616) foi um renomado escritor inglês de diversas obras literárias. Entre as produções escritas pelo autor destacam-se as peças teatrais que ainda hoje são conhecidas pelo público, apresentando relevância no estudo da literatura e da dramaturgia pela construção das histórias. A peça teatral King Lear (Rei Lear, no Brasil), por exemplo, é uma delas. Ela tem sido recontada pelas pessoas ao longo do tempo de diversos modos e em variadas ocasiões. As traduções para outros idiomas foi uma das formas que possibilitou que a história passasse por diversas gerações. A oralidade e, mais recentemente, o cinema também contribuíram para o fato de a narrativa ser conhecida atualmente.

Ao longo de mais de cem anos da história dessa arte, diversas obras literárias têm sido adaptadas para o campo cinematográfico. Muitas produções audiovisuais foram realizadas desde o advento do cinema valendo-se do texto da obra de Shakespeare como ponto de partida (DINIZ, 2003, p. 14 – 15). O potencial das obras do autor tem sido percebida pelos cineastas ao longo da história do cinema que as apresentaram ao público através de imagens e sons. Em King Lear, por exemplo, Shakespeare apresenta o começo e o fim da natureza humana, bem como o tema de destino (BLOOM, 1998, p. 45). É uma peça que envolve sentimentos intensos, como amor, inveja, vingança, laços entre pai e filhas, traições e disputas por poder. Essas relações chamam a atenção dos cineastas que veem na história um grande ponto de início para tornar uma obra cinematográfica de forte apelo ao público.

Nos estudos da tradução, as adaptações fazem parte do campo da tradução intersemiótica em que se transpõe um texto verbal para um campo não verbal (JAKOBSON, 1969, p. 65) – no caso de King Lear, uma obra literária para o meio cinematográfico. Tal como toda a adaptação, a história está fadada a passar por modificações para se adequar ao novo meio em que será contada. A cultura é um dos fatores que influencia em algumas mudanças que ocorrerão na transposição de uma mídia para outra. Em Ran (乱), Akira Kurosawa (黒澤 明), diretor japonês, nascido em 1910 e falecido em 1998, utilizou elementos do Teatro Noh, Budismo, hábitos cotidianos e outros costumes e tradições que fazem parte da cultura do povo em que cresceu para compor a atmosfera fílmica. Com a visão que possui do mundo, Kurosawa reescreveu a obra de Shakespeare, adaptando-a aos costumes do público japonês e a adequando à história e tradição dos samurais, bastante conhecidas no Japão.

 

A PEÇA KING LEAR

King Lear é uma das obras de maior destaque de William Shakespeare. A peça é ainda hoje referência na dramaturgia pelo enredo que apresenta, bem como o modo do autor ter desenvolvido a narrativa e os personagens. A história, pertencente ao gênero tragédia, foi traduzida diversas vezes ao longo do tempo e com modificações significativas, contendo, em alguns casos, um final feliz, diferente da versão de Shakespeare, de 1606 (DINIZ, 2003, p. 45). King Lear foi encenada, narrada e transmitida oralmente para diversas culturas e gerações através dos séculos. Tal fato contribuiu para a difusão da história a inúmeros povos.

A narrativa é centrada no personagem que dá nome à peça. Nela, Lear, já idoso, resolve dividir o reino entre as três filhas – Goneril, Regane e Cordélia. Para reparti-lo justamente, pede que expressem o amor que sentem por ele. Goneril e Regane mentem enquanto Cordélia, a filha mais jovem, diz: “Nada”, afirmando, em seguida, que o ama apenas como o dever lhe impõe – nem mais, nem menos. Lear, inconformado, deserda-a e a expulsa do reino, repartindo-o para as outras duas que mais tarde o desprezarão e o expulsarão das terras que agora lhes pertence. O conde de Gloucester é enganado por Edmundo, o filho bastardo, que seduz Goneril e Regane, a fim de possuir o reino que antes pertencera a Lear. Este fica desolado com a rejeição das duas filhas e, pouco a pouco, enlouquece.

Para René Girard (2010, p. 348), King Lear assemelha-se, em alguns momentos, a uma recapitulação e condensação de tudo o que Shakespeare escreveu acerca de reis e do tema destino, mais especificamente do triste destino dos pais e reis, simbolizado de forma mais intensa no personagem Lear. O autor conduz a história evidenciando a devastação causada pelas relações entre os personagens. A narrativa apresenta de forma explícita as consequências causadas pelos desentendimentos e o desejo de poder. O amor é o que provoca todos os problemas e tragédias em King Lear (BLOOM, 1998, p. 483). Esse sentimento, atrelado à falta de controle e à vaidade, interrompe a harmonia que existia entre todos, culminando em revelar o lado sombrio dos personagens e comprometendo todo o reinado de Lear.

 

KUROSAWA

Akira Kurosawa foi um diretor cinematográfico japonês que ainda na atualidade influencia as novas gerações de profissionais do cinema. Dos cineastas orientais é o que possui maior prestígio no Ocidente, tanto pela crítica quanto pelo público (INOKUCHI, 2010, p. 19). Dirigiu 30 filmes, dentre eles Os Sete Samurais (七人の侍), de 1954, Trono Manchado de Sangue (蜘蛛巣城), de 1957 e Ran, de 1985. É conhecido pelo perfeccionismo que concede aos detalhes que compõe a obra fílmica, como fotografia e cenários. Tal zelo fez com que Kurosawa enfrentasse dificuldades para obter recursos financeiros com a indústria cinematográfica japonesa que alegava falta de controle nos gastos das produções (DINIZ, 2003, p. 52). É importante ressaltar que aqui se está discutindo um cinema que não possui o mesmo poder econômico quanto o hollywoodiano e nem o mesmo alcance de público, o que faz o diretor ter de planejar toda a obra fílmica de modo diferente em razão das inúmeras limitações que existem para a produção de um filme japonês.

Figura 1 – Akira Kurosawa

Fonte: https://imagens.papodecinema.com.br/file/papocine/2016/03/20160322-tumblr_m6s64sudqg1qgpddwo1_1280.jpg

 

No caso de Ran, Kurosawa demorou dez anos para captar recursos. Durante esse tempo, ilustrou os storyboards do filme com diversos desenhos (LEITE, 2014, p. 4). Eles representam as cenas do filme, evidenciando a localização dos personagens nos cenários, bem como características físicas deles e as ações. Os storyboards auxiliam na composição do quadro fílmico, indicando os enquadramentos, luz e até mesmo objetos que aparecerão na cena. Em geral, são utilizados em grandes produções cinematográficas que contam com um elevado orçamento. Em Ran, eles foram essenciais para que os assistentes de Kurosawa preparassem as cenas, pois o diretor estava com a visão debilitada na época das gravações (SOBRINHO, 2006, p. 68-69).

Figura 2 – Storyboards ao lado esquerdo e frames do filme Ran ao lado direito

Fonte: http://thescriptblog.com/kurosawa-rules/

 

Durante as filmagens, Akira fez a equipe de produção esperar por horas para obter a luz que havia idealizado nos storyboards (LEITE, 2014, p. 4). O olhar minucioso possibilitou que ele reescrevesse a peça de Shakespeare para o cinema, transformando-a em uma obra fílmica em que as imagens apresentam forte apreensão e impacto. Susan Bassnett e André Lefere (1990) chamam a atenção no prefácio do livro Translation, History and Culture para o fato de o tradutor reescrever e manipular a nova obra derivada de um texto. Eles mencionam que a tradução pode refletir determinada ideologia, reprimir inovações e distorcer dados. Tal como o tradutor, o adaptador que transpõe uma história literária ou teatral para o cinema também confere à adaptação a visão que possui do mundo. Kurosawa através do olhar, da experiência e da cultura que o influenciou e o moldou compôs Ran, valendo-se da peça King Lear como texto de partida. Além dessa obra, adaptou para o meio cinematográfico diversos textos literários e teatrais do Ocidente (INOKUCHI, 2010, p. 19). Macbeth e Hamlet também foram obras escritas por Shakespeare que o diretor japonês adaptou para o cinema. A primeira recebeu o título de Trono Manchado de Sangue, em 1957; e a segunda, O Homem mau dorme bem, lançada em 1960.

 

RAN – A ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE KING LEAR

Em 1985, Akira Kurosawa lançou o filme Ran, adaptado da obra King Lear, de William Shakespeare. O filme é uma coprodução entre Japão e França, possui 162 minutos de duração, é colorido e sonoro. O título da adaptação pode ser traduzido como “caos”, o que denota a atmosfera que o diretor empregou à narrativa. Ran é considerado um jidai-geki, gênero de filme japonês em que a história é centrada no destino dos samurais e lordes do passado (DINIZ, 2003, 94). Na época, a produção foi anunciada como o último filme de Kurosawa. No entanto, dirigiu ainda três longas-metragens: Sonhos (1990), Rapsódia em agosto (1991) e Madadayo (1993).

Kurosawa baseou-se na tragédia de King Lear para dirigir Ran, aproximando a narrativa ao público japonês por meio da cultura daquele povo. A reescrita do texto de Shakespeare ganhou novas perspectivas com a leitura do diretor japonês. Roland Barthes (1988, p. 5), no ensaio A Morte do Autor, chama a atenção para a multiplicidade que existe em um texto e que esta pode ser reunida não no autor, mas no leitor Kurosawa, sendo leitor de Shakespeare, conferiu novas dimensões à história por meio da cultura, do repertório e da visão de mundo que possui, fazendo com que o texto emergisse na tela com uma nova unidade. Afinal, a literatura não destrói a liberdade do leitor, do escritor e daquele que reescreve o texto (LEFEVERE, 2007, p. 31). Ela é um ponto de partida para a composição de um enredo que floresce com as concepções que lhe serão dadas.

Assim como qualquer adaptação de um meio de comunicação para outro, mudanças ocorrem com a história transposta de uma peça teatral para o cinema, pois ela precisa ser repensada e reconceituada (SEGER, 2007, p. 18). É necessário adequá-la aos anseios do público do campo audiovisual que, em geral, está acostumado com narrativas que apresentam ritmo diferente, por vezes mais rápido. Em muitos casos, pode-se alterar até mesmo a focalização ou o ponto de vista da história (HUTCHEON, 2011, p. 34). Para isso, faz-se necessário eliminar personagens e situações da trama, a fim de que o tempo da obra seja ajustado ao cinema. É nesse ato de redução que a linguagem cinematográfica transforma em segundos uma descrição ou narração do livro através de imagens (FILHO & SWARNAKAR, 2008, p. 5).  Elas têm a capacidade de condensar diálogos e passagens literárias em instantes devido ao potencial de comunicabilidade pelo fato de expor a história visualmente.

É importante ressaltar que, assim como as demais artes, o cinema possui ferramentas que são utilizadas para contar uma história e, consequentemente, modificam a narrativa em uma tradução intersemiótica. Enquadramentos, luz, tonalidades, cenários, trilha sonora, maquiagem, figurino, efeitos especiais, cenários e edição são algumas. Através delas o enredo é potencializado, conferindo-lhe a atmosfera fílmica e, em muitos casos, metáforas visuais que reescrevem o que está obscuro no texto de partida. Afinal, como afirma Robert Stam (2008, p. 468), a adaptação pode se tornar uma nova forma de ver, ouvir e pensar uma obra literária, tornando-a compreensível, por meio de imagens, o que antes não era possível. Além disso, não se deve esquecer a influência do diretor sobre a reescrita da obra e o olhar técnico e crítico da equipe de filmagem que o ajudará no processo de adaptação para o cinema. O trabalho coletivo, reunido com o repertório de cada um dos envolvidos, constrói uma nova narrativa, dando-lhe outros dimensionamentos que não constavam no texto de partida.

Em Ran, o personagem Rei Lear é representado pelo Samurai Hidetora Ichimonji (Tatsuya Nakadai), que também é um homem idoso. A figura do Samurai é bastante frequente nos filmes japoneses em razão da influência que teve na construção da identidade e na história desse povo. Os samurais se dividiam entre os deveres e os interesses pessoais de almejar o poder por meio de guerras e disputas, além de terem um rígido código de conduta que lhes fazia parte do estilo de vida (INOKUCHI, 2010, p. 20). É notável, no filme de Kurosawa, o comportamento dos samurais e das pessoas envolvidas ao redor deles. Há sempre um profundo respeito representado por meio de gestos, olhares e postura de obediência em relação aos samurais, como o fato de muitas pessoas ficarem sentadas diante deles, que estão de pé, sendo uma forma de reverência enquanto os ouvem atentamente.

Em contraste com a peça de Shakespeare em que Lear era pai de três filhas, Ran apresenta Hidetora sendo pai de três filhos – Taro (Akira Terao), Jiro (Jinpachi Nezu) e Saburo (Daisuke Ryû). Os nomes significam respectivamente: primeiro, segundo e terceiro filho, representando o hábito de conceder à prole nomes numéricos (INOKUCHI, 2010, p. 30). Na obra fílmica, o Samurai pretende entregar o comando do clã ao filho mais velho, Taro, seguindo o costume japonês (SOBRINHO, 2006, p. 69). A mudança que o diretor realizou pode parecer algo inesperado, mas na sociedade japonesa dos samurais a mulher não podia ser proprietária e, menos ainda, usufruir do poder de liderança (DINIZ, 2003, p. 34-35). Sendo assim, Kurosawa reescreveu a história adequando a narrativa ao contexto da época, pois se mantivesse o fato de Lear ser pai de três filhas que teriam o poder do reino o público japonês consideraria inverossímil a história em virtude de ser uma situação impossível para a sociedade japonesa daquele período.

 

Figura 3 – Hidetora fala aos três filhos e aos sogros deles sobre os planos para o futuro.

Fonte: Printscreen do filme Ran, de Akira Kurosawa

 

A mudança que Kurosawa realizou na versão cinematográfica da peça de King Lear é bastante significativa. Além dos dados já expostos, segundo Sobrinho (2006, p. 69), ele faz uma alusão à lenda japonesa dos irmãos Mouri. A tradição popular conta que Mōri Motonari, chefe de um clã, entregou a cada um dos três filhos uma flecha e pediu para quebrá-las. Eles o obedeceram e as quebraram. Mais tarde, entregou três flechas para eles e pediu para que cada um tentasse quebrá-las juntas. Eles não conseguiram, o que consideraram uma indicação de que seriam invencíveis se permanecessem unidos contra os inimigos. Tal como Motonari, Hidetora faz o mesmo gesto com os filhos. Porém, Saburo, o terceiro filho, consegue quebrar as três flechas e afirma que é loucura a decisão do pai de entregar o clã ao irmão mais velho. Hidetora, então, deserda-o e o expulsa do reino tal como Lear fez com Cordélia.

Tanto na obra de Shakespeare quanto na de Kurosawa, os filhos caçulas possuem grande apreço pelos pais. Cordélia, provavelmente, não teria se recusado em expor o amor que sente por Lear se ele não a tivesse pedido da mesma forma que as irmãs em uma competição para saber quem o ama mais (GIRARD, 2010, p. 347). Para ela, expressar o que sente não poderia ser feito de uma forma tão fria, calculista e competitiva. O mesmo acontece com Saburo que percebe que Hidetora não está agindo de forma sã. O filho teme pela decisão do pai, sabendo que ele está a ponto de cometer grandes equívocos. A vaidade de Lear o faz ser disputado como um objeto de desejo (Ibid, 2010, p. 345), fato que Cordélia desaprova. Assim como ela, Saburo percebe que o modo como o pai está pretendendo dividir o reino não é adequado. A revolta dos filhos tão amados pelos pais é evidente, mas a vaidade de ambos – Lear e Hidotora – não os permite ver a insensatez dos atos que cometeram.

Lear é muito amado por Cordélia, mas odiado por Goneril e Regane; ele é sentimental, ao passo que Edmundo, aquele que irá tramar contra todos, é antítese dele (BLOOM, 1998, p. 478). Em King Lear, Edmundo tenta possuir o reino que fora deixado a Goneril e Regane, ao passo que em Ran, Kaede (Mieko Arada) planeja a vingança contra Hidetora que roubou o reino dos pais dela, levando-lhes à morte. Casada com Taro, primeiro filho do Samurai, ela o manipula para afastar o sogro do reino. Kaede seduz o cunhado, Jiro, depois da morte do marido, ocorrida em uma batalha, tornando-se amante dele, a fim de prosseguir com a vingança. Enquanto tem almejado a queda do Império de Hidetora e a destruição do clã, a esposa de Jiro, Sue (Yoshiko Miyazaki) perdoou-o por ter cegado o irmão, Tsurumaru (Mansai Nomura), e se apoderado das propriedades da família, sendo, a personagem que representa o budismo na adaptação de Kurosawa (LEITE, 2004, p. 4). Sue expressa ter uma paz tão intensa que é admirável possuí-la depois de tanto mal que lhe foi feito. Há uma docilidade nos gestos e no modo como fala. Ela acolhe e trata as pessoas com ternura e carinho.

De fato, a religião budista possui no Oriente mais adeptos que no Ocidente. No Japão, é notável a influência da religião sobre uma porcentagem significativa da população. Essa é uma das razões do diretor ter explorado alguns fundamentos dessa crença na construção da narrativa. Afinal, faz parte da história e tradição do povo japonês. Apesar de Kurosawa ter se declarando ateu, pode-se reconhecer elementos herdados da tradição budista na obra fílmica: o código de honra dos Samurais; as cenas com os castelos em chamas, simbolizando o inferno de Azura, local destinado aos que lutam em batalhas; e a recusa ao ódio em que o perdão, a compaixão são alternativas para a violência, tal como Sue, Tsurumaru e Saburo praticam (DINIZ, 2007, p. 94 – 95).

 

Figura 4 – Acima, Kaede ameaça Jiro; abaixo, à esquerda, Tsurumaru próximo ao precipício, à direita, Sue faz reverência a Hidetora.

Fonte: Montagem realizada pelo autor deste ensaio com base em cenas do filme Ran, de Akira Kurosawa

 

O budismo também ganha notoriedade no final da narrativa de Ran. Segundo Teixeira (2004, p. 9), a maior diferença de perspectiva entre o texto de Shakespeare e o filme de Kurosawa está nessa sequência, pois não há restauração da ordem, apenas destruição causada pelo caos absoluto. Em King Lear, Edgar, o filho do conde de Gloucester, pode ser considerado o indivíduo que provavelmente conseguirá trazer a harmonia ao reino mesmo após a morte de Lear e Cordélia. No entanto, tal esperança não existe na obra de Kurosawa. Ela é marcada pelo caos que domina as pessoas através de intensas batalhas evidenciadas ao longo da narrativa. Muitas delas são brutalmente assassinadas pela sede de poder e pelos conflitos até culminar na sequência final em que Hidetora morre após Saburo ser atingido por uma bala. O fiel bobo (Shinosuke Peter Ikehata), que acompanhou Lear desde quando fora expulso do próprio reino, revolta-se contra Buda, dizendo que ele e os outros deuses não existem ou que usam os humanos como mera diversão. Além disso, nessa sequência ocorrem outros fatos que reforçam a atmosfera de catástrofe que existe na obra fílmica:

A decapitação de Kaede/Edmundo tinge as paredes do zashiki (quarto japonês) e jorram barulhentamente […] A bondosa Sue também foi decapitada, mas, não nos é permitido ver a cena: a lente nos permite apenas enxergar seu corpo, sem a perspectiva dos ombros, isto é, não conseguimos vê-la sem a cabeça. Essa cena apresenta o único local onde ainda há um solo verdejante, como se, com a morte de Sue, morresse também a natureza. Mais adiante, Tsurumaru, seu irmão cego, soprará uma flauta triste à beira dum penhasco rochoso, envolvido num amplo crepúsculo vermelho já à beira de deixar o mundo envolvido em trevas (SOBRINHO, 2006, p. 74).

 

A referida sequência termina com Tsurumaru deixando cair o pergaminho com a figura de Buda no abismo. Teixeira (2004, p. 11) salienta que não pode haver imagem mais tocante que o cego desamparado ao pôr do sol, próximo ao precipício, sem alguém à volta dele e sem o conforto espiritual do deus para quem ora. Ali não há esperança. O final da narrativa é consequência de tantas guerras e intrigas que exterminaram diversas vidas. O caos absoluto reina com a escuridão que vai se aproximando pouco a pouco.

Figura 5 – Tsurumaru à beira do abismo na cena final de Ran

Fonte: Printscreen do filme Ran, de Akira Kurosawa

 

Outra grande influência cultural japonesa na composição de Ran é o Teatro Noh. Ele possui cerca de seiscentos anos de história, sendo uma das mais significativas modalidades artísticas do referido povo (INOKUCHI, 2010, p. 23). Em muitos casos, quando se fala no Japão, logo se lembra desse teatro que tanto o tem influenciado nos costumes do dia a dia. Os japoneses possuem um vínculo emotivo com o Teatro Noh que desperta a contemplação pelas tradições. O Noh possui elegância e sofisticação, é uma cerimônia ritual, formal e rígida, quase sempre se restringe a um relação homem-cosmos (SAKAI, 2017, p. 137 – 138). Ele está profundamente arraigado às paixões, à esperança, à crença e tradição daquele povo. Há uma mística recorrente nas histórias, exigindo do espectador uma profunda atenção e conexão para se unir ao enredo apresentado pelos atores.

No teatro Noh, os papeis femininos são representados por homens e, em muitos casos, a encenação é marcada por uma ênfase exagerada de submissão, gentileza e sofrimento (DINIZ, 2003, p. 132). A escolha de Kurosawa por transformar as personagens filhas de Lear em personagens masculinos pode ter sido influenciada também por essa característica do Teatro Noh. Além disso, percebe-se que as ações dos personagens de Ran são por vezes exageradas e possuem as demais características mencionadas acima. Mas esse exagero também é representado na passividade de alguns movimentos dos personagens. Segundo Sakai (2017, p. 144), a passividade do Teatro Noh deriva, em parte do Budismo por causa de uma noção de passividade externa e atividade interna, o que faz com que nas peças os movimentos dos personagens sejam apresentados de forma pausada, porém significando grandes ações. Kurosawa utilizou esse e demais aspectos do Teatro Noh na composição da adaptação cinematográfica para a esculpir a história de Shakespeare valendo-se da cultura do qual estava inserido.

A transformação facial de Hidetora ao longo do filme, por exemplo, é inspirada no Teatro Noh – a maquiagem muda de tonalidade, passando de um tom corado para um quase fantasmagórico à medida que a tragédia se intensifica (SOBRINHO, 2006, p.70). Percebe-se ao longo do filme um trabalho meticuloso para que essa maquiagem exprimisse ao público a sensação interior do samurai. Além disso, Kaede pede que lhe tragam a cabeça de Sue, porém entregam-na a cabeça de uma raposa. Tal fato tem associação com o teatro Noh, especificamente com a lenda da raposa que se transforma em ser humano para conseguir enganar as pessoas e obter alimento (INOKUCHI, 2010, p. 23). Essa é mais uma evidência que Kurosawa utiliza elementos da cultura japonesa para criar o universo de Ran e conferir verossimilhança ao enredo, situando o espectador naquele universo e naquele período histórico por meio das crenças, tradições e cultura daquele povo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas adaptações da peça King Lear, de William Shakespeare, têm sido realizadas para o cinema. Ran, de Akira Kurosawa, lançada em 1985, é um exemplo desse fenômeno. As adaptações, ou reescritas como podem ser denominadas, apresentam novas obras que são distintas uma das outras. No caso de Kurosawa, a reescrita feita pelo diretor não é uma mera transposição, pois a ambivalência cultural reorganiza e conceitua a história (FILHO & SWARNAKAR, 2008, p. 2). Um dos fatores que mais impacta nas diferenças entre as adaptações baseadas em uma mesma obra é a cultura em que a produção foi realizada e, evidentemente, ao público a qual se destina. Com elementos do Teatro Noh, Budismo e da tradição japonesa, o diretor compôs a atmosfera de Ran, valendo-se da visão que possui do mundo e do repertório cultural que apresenta.

A tradução, seja de uma língua para outra ou entre mídias, envolve tudo o que circunda um texto, inclusive o contexto da produção e o fato de que o sentido é criado pela leitura (DINIZ, 2003, p. 28). Desse modo, Akira Kurosawa transpôs King Lear para o cinema com a interpretação que teve ao ler o texto de Shakespeare e almejando atrair a audiência do público com fatos que lhes são conhecidos. É evidente que os dados expostos neste artigo acerca da influência japonesa na reescrita de Ran são apenas o início para uma reflexão sobre as modificações que ocorrem nas adaptações cinematográficas. Pode-se pensar no figurino, aprofundar questões referentes à maquiagem dos personagens, dos gestos, do modo como falam, agem e até mesmo da fotografia. Afinal, a cultura está intrínseca no ser humano, provavelmente mais do que se percebe e tenha se problematizado ao longo da história.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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REFERÊNCIA FÍLMICA

RAN. Produção: Serge Silberman e Masato Hara. Direção: Akira Kurosawa. Roteiro: Akira Kurosawa, Hideo Oguni e Masato Ide. Intérpretes: Tatsuya Nakadai, Akira Terao, Jinpachi Nezu, Daisuke Ryû,
Mieko Harada e outros. Japão, Toho Company, 1985. 162 min. Son, Color. Legendado. Produzido por Greenwich Film Productions.

 

[1] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em Cinema pela referida universidade.