O SILÊNCIO EM “PLAY”, DE SAMUEL BECKETT – Fellipe Cosme de Oliveira

O SILÊNCIO EM PLAY, DE SAMUEL BECKETT

 

Fellipe Cosme de Oliveira*

"Play", de Samuel Beckett

“Play”, de Samuel Beckett

“Assim, todo o teatro de vanguarda é um ato teatral essencialmente precário, e por assim dizer, falseado: ele quer significar um silêncio, mas não pode fazê-lo senão falando, ou seja, retardando-o: ele se torna verdadeiro quando se cala.” (Rolland Barthes)

 

A busca de um vazio que me preenche, de uma voz muda que se entrelaça no meu ouvido, e dita sílabas ao inconsciente; a presença da saudade quando já a saudade não tem mais memória em si; o cintilar brilhante de um inseto, que enxergo, antes do minuto exato de apagar os olhos para o sono; a presença enigmática de um outro, dentro de mim, inexplicável, insólito, ilógico, que me mostra não mostrando, que me diz, não dizendo, que me enxerga não vendo. Em Play, de BECKETT, o olhar está distante, inexpressivo, opaco, inerte. A boca se move apenas feito uma máquina de produzir sentenças em áudio, digitadas, ou datilografadas ao vento, jorradas ao vento, explodidas tal pequenas bombas sem propósito emotivo-sensitivo. Uma visão de um humano sem face, com perda da qualidade de sorrir, de chorar, de ter ira, de ter medo, ou qualquer outra possível expressão facial que remeta a um sentimento ou condição humana. As únicas oscilações expressivas e vocais, durante a pronúncia do texto, ocorrem nos soluços, silêncios, gritos, e quando a voz se tranca durante a pronúncia de alguma silaba especifica. O restante é a condição humana imóvel, o rosto trancado por um corpo trancado num grande jarro de cinzas funerárias. Os jarros, trancados numa realidade inóspita, contêm as cabeças humanas de um marido, uma esposa, e um amante – confessando as suas memórias de infidelidade, ciúmes, amor, traição, remorso, e outras experiências angustiantes.

 

Escrita entre 1962 e 1963, a peça estreia pela primeira vez no Teatro de Ulm, na Alemanha, com o nome de Spiel. Influenciado por James Joyce e pela linguagem de poetas, que cunham na sonoridade uma busca além da semântica da palavra, Beckett, Nobel de literatura em 1969, traz ao teatro a visão pessimista quanto à condição humana, em peças como Play, Esperando Godot, Dias Felizes … . Nasceu de família burguesa e protestante, na Irlanda, depois mudou-se para Paris, onde continua seus estudos literários.

A peça foi vanguardista, segundo Barthes, por apresentar os conceitos de: contra argumentar uma arte conformista burguesa estabelecida durante a estreia da peça, ao mesmo tempo estar atrelada a uma época de livre expressão artística; radicalizou a expressão humana, propondo assim como Artaud, no teatro da crueldade, novas experiências além do real, através de metáforas do real, e simbolismo na ficção; rompeu com a familiaridade do espaço cênico e do tempo fictício, dentro da cena; distorceu a relação entre homem e objeto, fazendo objeto ter formas humanas, e homem ter função de objeto; fez a palavra ter função em si mesma e não somente função do texto narrativo, ou dialógico – a palavra como pulsão, como jato ao espaço, como bomba sonora; subverteu a lógica da linguagem, como também fez Ionesco, em algumas de suas peças; trouxe ao teatro o absurdo da condição humana, dilacerada, sem rumo, amargurada pelas barbáries do pós guerra; e mostrou o silêncio, além da expressão, além da palavra, o silêncio que diz, no vazio da existência, sem fé, sem esperança, numa espera incessante por um futuro, que é passado, e que nos torna desesperados em aceitar ou não aceitar nossa própria condição, diante da possibilidade da extinção em massa – um silêncio diante do caos, um silêncio no meio do ensurdecedor barulho de uma explosão nuclear.

*Acadêmico de Artes Cênicas – UFSC