O Acaso na Arte – Breves notas de Sócrates a nossos dias – Aurora Bernardini
O Acaso na Arte – Breves notas de Sócrates a nossos dias
Aurora Bernardini*
“ De maneira semelhante a dos magnetos que imantam os anéis de ferro que atraem outros anéis de ferro, a Musa inspira os homens, ela mesma; a partir dessas pessoas inspiradas, outra cadeia de pessoas recebe a inspiração. Isso, porque todos os bons poetas, épicos ou líricos, compõem seus belos poemas não pela Arte, mas porque eles são inspirados e possuídos. Como os foliões coribantes que quando dançam não estão em seu juízo, assim os poetas líricos não estão no deles quando estão compondo seus belos cantos: mas eles, sob o impacto da música e do metro, são inspirados e possuídos; como as bacantes que tiram leite e mel do rio quando sob o poder de Dioniso, mas não quando em sã consciência.
Assim a alma do poeta lírico faz o mesmo, como eles próprios dizem ; pois eles nos dizem que tiram cantos das fontes de mel que saem dos jardins e dos vales das Musas. Eles, como as abelhas, abrem seu caminho de flor em flor (… )e não há invenção para eles até que estejam inspirados e fora de seus sentidos e de sua mente.
Se não atingirem esse estado, não terão como pronunciar seus oráculos (…)Não é pela arte que canta o poeta, mas por poder divino”.
( “Sócrates falando a Íon “ – W.J. Bate , Criticism, The Major Texts – H.B.J., N.York> 1970).
A isso, em parte, o pintor contemporâneo Francis Bacon ( David Sylvester Entrevistas com Francis Bacon – Cosacnaify, 2007), que mereceu um livro inteiro de Gilles Deleuze ( Francis Bacon – Logique de la sensation , Seuil,Paris, 2002), chama de acaso; ao resto, talvez, de instinto.
Senão, vejamos alguns trechos retirados de suas Entrevistas:
“ a pessoa possivelmente se aperfeiçoa ao manipular marcas que foram feitas ao acaso, marcas que ela faz de forma totalmente irracional. Quando nós nos condicionamos através do trabalho e da constância, ficamos mais atentos para aquilo que o acaso nos propõe. No meu caso, sempre que um resultado me agrada, sinto que ele foi conseqüência de um acaso sobre o qual pude trabalhar.” (…) “ Fazendo aquelas manchas sem saber como elas vão se comportar, surge alguma coisa que de repente o instinto apreende como sendo aquilo que você poderia começar a desenvolver.”
E ainda:
“ Quando se deixa o acaso agir, certos níveis mais profundos da personalidade vêm à tona. Eles vêm à tona inevitavelmente.Eles vêm à tona sem que o cérebro interfira na inevitabilidade de uma imagem. Isso parece provir diretamente do que resolvemos chamar inconsciente, com a espuma do inconsciente circundando a imagem – é isso que lhe dá vigor” . “ A imagem sensorial começa acidentalmente a formar-se”.
Cuidado, porém , com a psicanálise e a literalidade que achata, adverte o pintor. Além do mais, ela não leva em conta o estilo do artista. Só se interessa por como surgiram temas e conflitos e não por como foram absorvidos. Isso sem falar em Ricardo Piglia e em seu Laboratório do escritor , excepcional e esgotado : “ela investe como um touro sobre as zonas obscuras, manancial do artista”.
Voltando a Bacon e a seu entrevistador:
“ Não é em torno disso que gira toda a arte? Que uma coisa seja tão factual quanto possível e, ao mesmo tempo, tão sugestiva ou reveladora às áreas da sensação, em vez de parecer simples ilustração do objeto que se pretendeu fazer”.
“ É na estrutura artificial que a realidade do tema será aprisionada, e a armadilha, a fechar-se sobre o tema , deixará à mostra somente a realidade”.
“Sempre se inicia o trabalho pelo tema, por mais vago que ele seja, para depois construir um a estrutura artificial em que se aprisionará a realidade do tema com que se começou a trabalhar.
O tema é uma isca. A gente criará um realismo equivalente ao tema, que passará a ocupar o lugar do tema. Sem um tema você automaticamente cairá na decoração.”
“E acho que tem que se conhecer, mesmo que precariamente,a história da arte. Da pré-história à época atual”
“ No trabalho artístico você entra numa espécie de transe mediúnico; melhor, você age pelo instinto enraizado na cultura, na prática, no saber”.
“ O mistério da realidade só poderá ser apreendido se o pintor não souber como está procedendo (…).”
“Como reproduzir a aparência? É um método ilógico de proceder, um meio ilógico de tentar fazer aquilo que , se espera, virá a produzir um resultado lógico – no sentido de haver a esperança de que , subitamente, se possa fazer uma coisa totalmente ilógica, mas totalmente real; como no caso de um retrato onde essa coisa fosse reconhecida como a pessoa retratada”
“ Acho que a arte verdadeira é profundamente ordenada. Mesmo que dentro da ordem possam ocorrer coisas demasiadamente instintivas e acidentais, acho que elas brotam de um desejo de ordem e também de reconduzir o fato ao sistema nervoso, de uma maneira mais violenta….De geração em geração, através daquilo que os artistas fizeram, os instintos se modificam. E com a mudança dos instintos, [ou será a expressão dos instintos?] surge uma renovação da sensibilidade que me leva a perguntar de que maneira, mais uma vez, refazer determinada coisa para que ela fique mais clara, exata e violenta.”
“A arte é uma obsessão pela vida. Nossa maior obsessão somos nós mesmos ”
“ As pessoas gostam de achar um enredo escondido. Elas sentem falta de uma espécie de ficção na Arte .”
….
Já Fayga Ostrower em seus livros e, particularmente, em Acaso e criação artística ( Campus, 1995), onde estabelece a relação aproximada entre cor=som; imagem=palavra;linha=sílaba;espaço=período; comenta que um dos elementos mais invocados na criação artística é o do acaso significativo.( Crianças não têm acasos significativos, diz a autora: para elas tudo é natural, tudo é acaso).
Apresentamos, a seguir, uma síntese dos trechos que mais se ligam à questão do acaso, tal como é visto pela autora:
Qualquer ato pode ser significativo, mas cuidado, isso não quer dizer que seja artístico.
Ato significativo, o que vem ele a ser?
Mera coincidência?
Sincronicidade?
Catalizador que potencializa a criatividade?
Sugestão de um tema?
Exacerbação de algum mito pessoal?
Até aqui vai a psicanálise – não além , diz a autora, pois não se preocupa com o estilo da obra feita.
Além desse início é, entretanto, indispensável o envolvimento por uma ambiência que propicie a eclosão da semente ( nos 46 cromossomas) e seus desenvolvimentos por meio da linguagem verbal e não verbal.
Esses desenvolvimentos, na psicanálise são reduzidos a meras ilustrações – ilustrações de casos clínicos. Assim as formas visuais não apontam para dentro de seu próprio conteúdo e sim para fora, para algum significado alheio – que existe sem elas também, – para um simbolismo intelectualizado pré-estabelecido.
“ A psicanálise ignora na arte a existência de uma linguagem própria, constituída por termos de alto teor sensual que permeia os significados criados”.
“Há inocência ou indiferença, por parte da psicanálise, frente a questões de estilo” diz E. Kris, citado pela autora.
O estilo representa a experiência da personalidade adulta dentro do contexto de determinada cultura. Obras são respostas a uma vida vivida: a linguagem artística ( de forma, de palavra, de estilo, de condensação de experiência),consegue expressar a fluidez dos sentimentos e integrar os vários níveis acima.
De acordo com a formulação de Eisenstein – (veja-se Dos diários de Serguei Eisenstein e outros ensaios , de V.V. Ivanov, Edusp 2009) – a obra de arte deve conter desde a camada dos pterodátilos até a camada da forma mais elevada de consciência. Abuso de um lado: demência. Abuso do outro: robotização.
Continuando, agora, com a síntese de Fayga Ostrower:
Na experiência artística sempre existem tensões. Já este ponto demonstra o quanto, ao recorrer à simples descarga de tensões, a arte-terapia se afasta da arte.
O sentido da arte é ampliar o viver e torná-lo mais intenso, nunca diminuí-lo ou esvaziá-lo. Conhecer sua experiência por dentro: síntese dos sentimentos; síntese da linguagem. Equilíbrio dinâmico que absorve as tensões, não as anula. As da geometria são formas estáticas.
As formas visuais são seu próprio conteúdo.
As formas (imagens) se transformam em conteúdos e vice-versa.; as formas sensoriais comunicam significados.
Na poesia, as palavras dentro da forma adquirem densa significação. As linguagens simbólicas se fundamentam pela conversão formas/significados e por meio dela, por objetivar vivências subjetivas, dando-lhes forma.
Na ciência, parte-se de um modelo, formula-se hipóteses ( referencial, o )que já é meio caminho para a resposta.
VALORES NA ARTE
Segundo Giulio Carlo Argan ( em Arte Moderna– Cia das Letras, 1993 ):
A arte cria valores pois a cada passo pergunta pelo sentido do agir e do operar, de modo a ampliar seus próprios fundamentos.Ético=fazer; estético = projetualidade.
A consciência que apreende uma obra de arte realiza uma redução fenomenológica que leva a uma “epoché” ( colocação entre parênteses do mundo objetivo).
Ocorre uma ampliação da consciência através da sensibilidade.
O estético encerra o ético.
Hoje os valores são contestados.
Falta uma unidade de medida.
O (a)caso de José Ortega y Gasset
Alguns conceitos sobre a arte de Ortega y Gasset, merecem uma comparação com as teorias mais contemporâneas.
O primeiro deles é o conceito de estilo e de maneira,( veja-se o ensaio sobre o pintor Zuloaga) que confrontaremos respectivamente com as teorias sobre “ estilo” e “ maneira” de Giorgio Agamben , desenvolvidos no prefácio “ Desapropriada maneira” à poesia completa de Giorgio Caproni.
A conceituação de Ortega ( ou mediação entre as coisas e nós, como ele diz à p.30) exprime-se por uma proporção: “ o estilo está para o caráter, assim como a maneira está para a mania”. O estilo estaria, portanto, para Ortega, associado à estrutura do indivíduo, enquanto que a maneira ( mania) seria mais um ornamento, um maneirismo, um viés, um modismo ( positivo ou negativo) acrescido ao fazer do artista.
Vejamos o que diz Agamben.
Esses dois conceitos ( estilo e maneira) nomeiam duas realidades correlacionadas, mas irredutíveis: se o estilo representa, para o artista, seu traço mais próprio, a maneira registra um processo inverso de desapropriação e de não pertencimento. É como se o artista velho que encontrou seu estilo e nele atingiu a perfeição, o deixasse de lado agora, para validar a pretensão curiosa de caracterizar-se unicamente por meio de uma impropriedade. Nos âmbitos em que o conceito de maneira foi definido com maior rigor ( a história da arte e a psiquiatria), ele designa, com efeito, um processo polar: ao mesmo tempo que é uma adesão exagerada a um uso ou a um modelo ( estereotipia, repetição), é absoluta excedência em relação a ele ( extravagância, unicidade). Assim, na história da arte, o maneirismo “ pressupõe o conhecimento de um estilo ao qual se pensa estar aderindo e que, ao contrário, se tenta inconscientemente evitar” (Pinder) e, para os psiquiatras, o modo de ser dos maneiristas implica “ a impropriedade, no sentido de não se ser si próprio” e, ao mesmo tempo, a vontade de ganhar, com isso, um terreno e um status próprios ( Binswanger).( Trecho da p. 36 de A coisa perdida , Editora UFSC, 2011).
Voltando a Ortega:
Difícil descobrir o que é estilo e o que e maneira em Ziloaga, sem se conhecerem todas as pinturas dele, para ali descobrir a destoante.
Há, em outras concepções de Ortega, um quê da filosofia oriental. Chinesa, para sermos mais precisos.
Exemplos:
(p. 25): Resolver cada coisa nas demais; (p. 27): a virtude necessita dos vícios e neles se alimenta;
O símbolo, infunde-se numa coisa e faz com que nela vivam as demai s (p. 31)
As tendências tendem para as idéias ( p. 34)
A arte é a conquista da forma( p. 37)
Os três componentes da vida humana: vocação, circunstância, acaso; a sorte, ou a fortuna, é o elemento inorgânico da vida (p.64)
O artista pinta a mitologia às avessas ( a realidade é vista como fantasma): qual situação real corresponde à alegórica, ideal?)( p. 78)
Se , agora, confrontamos os conceitos acima de Ortega com as propostas de o Tratado da eficácia ( Ed. 34, 1998) elaborado pelo sinólogo François Jullien ficaremos surpresos com as analogias encontradas.
Vejamos algumas delas.
p. 15: Há dois modelos, o que projetamos (e o que realizamos, com os olhos postos acima. ( a realidade é o fantasma!)
p.43:A dissociação das opiniões permite compará-las; a eficácia é a adequação entre fins e meios e situação/conseqüência
p.60: O que importa não é a ação, é o modo de transformação: as figuras se convertem uma na outra
p.68: O acaso é aquilo que, nas lacunas da ação divina, ( nas lacunas do Ser, segundo Heidegger) permite à iniciativa humana insinuar-se.
p.71:O acaso é efeito da contingência, não devido à inspiração de um Deus, mas sim à indeterminação da matéria. Na falta da providência, o que importa é a prudência e a virtù.
p. 81: arte ( techné), acaso ( tyché) e ocasião ( circunstância- kairós):
A ocasião situa-se entre a arte e o acaso.
A ocasião vale-se da circunstância e do acaso. A ocasião é o início da ação
A ocasião é o instante da chance.
A ocasião é o desencadear-se do potencial e não deve ser perdida ( é o impulso fulminante da ave de rapina) É o momento mais adequado para se intervir no processo já iniciado.
(Confrontar com a máxima de Maquiavel: per fortuna o per virtù.
Confrontar com Agamben: as coisas que acontecem per fortuna ( magia) são muito mais valorizadas no ocidente. ( cf. o livro dele Profanação))
p. 110:O agir bloqueia o real
Não agindo deixamos brotar a planta
p. 102 : A virtude enquanto eficiência se exerce sem transcender
p. 119:O sábio, na China, rende-se à naturalidade do processo e espreita a tendência do mesmo.
Com isso faz com que o mundo se-lhe renda, obrigatoriamente.
* Professora da Universidade de São Paulo.