“A palavra inicial era um delírio”: traduzindo A mitificação da realidade, de Bruno Schulz – Luiz Henrique Budant

“A palavra inicial era um delírio”: traduzindo A mitificação da realidade, de Bruno Schulz

 

Luiz Henrique Budant*

 

Rozmowa Józefa z dr Gotardem [Conversa de Józef com o dr Gotard], 1936, lápis, papel, 14,5 x 15

Rozmowa Józefa z dr Gotardem [Conversa de Józef com o dr Gotard], 1936, lápis, papel, 14,5 x 15

I

Publicado em 1936, o ensaio fundamental de Bruno Schulz (1892-1941), A mitificação da realidade, ainda é pouco conhecido no universo acadêmico brasileiro. Há, atualmente, três traduções para a língua portuguesa: uma para o português europeu, de Aníbal Fernandes (1983) e duas traduções para português brasileiro, ambas levadas a cabo por Henryk Siewierski[2], professor de literatura da Universidade de Brasília.

Entendemos que, até recentemente, as traduções eram pouco acessíveis e pouco divulgadas, de modo que nos propusemos a enfrentar o desafio de traduzir esse ensaio que cumpre função importantíssima para quem se dedique ao estudo da obra de Schulz.

Sendo assim, o presente artigo investigará questões relativas à lide tradutória de A mitificação da realidade, bem como proporemos nova tradução e analisaremos alguns tópicos da tradução de Fernandes e da primeira tradução de Siewierski (1997).

 

II

 

Já no início de seu ensaio, Schulz faz tonitruante afirmação: “o sentido é a essência da realidade”. Em sua língua materna, tal sentença soa “istotą rzeczywistości jest sens. Trata-se de uma inversão da ordem “natural” das sentenças em polonês: o predicativo “istotą rzeczywistości” (a essência da realidade) está anteposto ao verbo jest (é); o verbo, por sua vez, está anteposto ao seu sujeito, sens (sentido). A língua polonesa dispõe de uma marcação específica para o predicativo do sujeito, o que não ocorre em português; dessa maneira, mantivéssemos a inversão e a própria sentença seria entendida de maneira diversa: o sentido deixaria de ser sujeito, passando a ser predicado, atributo da realidade, quando é justamente o oposto que Schulz defende ao longo de seu ensaio. É verdade que a inversão cumpre função de enfatizar os termos iniciais (istotą rzeczywistości), o que apenas revela o desafio que é traduzir Schulz.

Seguindo o primeiro parágrafo do curto ensaio, deparamo-nos com outra dificuldade tradutória bastante traiçoeira: “velhas cosmogonias exprimiam-no sentenciando que no princípio era a palavra”. Ora, aqui temos de lidar com citação ao Novo Testamento, ao Evangelho de João. Reconhecemos que mais corriqueira seria a opção “no princípio era o verbo”, não a palavra. Todavia, a tradição tradutória polonesa prefere que se traduza λόγος (lógos; não ousaremos propor tradução)[3] por słowo (palavra), termo que cumpre papel fundamental no ensaio schulziano (repete-se słowo vinte e cinco vezes ao longo do ensaio e há uma ocorrência do adjetivo derivado słowny, o qual traduzimos como “da palavra”). Nosso entendimento é de que o autor não reduz o sentido de λόγος, mas amplia as possibilidades de compreensão que se encerram em słowo. Não nos aprofundaremos na discussão a respeito do λόγος, pois tal discussão excede os modestos limites desse trabalho.

Ainda no mesmo parágrafo, e na mesma linha, deparamo-nos com a preocupação com a sonoridade dos textos que marca a prosa schulziana. Propusemos a tradução “o não-nomeado não existe para nós”, com aliteração do som nasal alveolar representado pela letra n, para “nienazwane nie istnieje dla nas” [ɲe.naz.ʹva.nɨ.ɲe.ist.ʹɲe.je.ʹdla.nas], trecho em que verificamos aliteração do som nasal palatal (representado pelo dígrafo ni), do som nasal alveolar, além de assonância da vogal anterior semifechada não-arredondada (representada por e) e da vogal anterior aberta não-arredondada (representada por a). Também é digno de nota que, em uma frase com tantas negações, a forma verbal istnieje (existe) cumpre papel de termo mais enfatizado, porém o acento tônico da palavra recai, justamente, sobre a sílaba nie, a qual, isoladamente, significa “não”: a inexistência dentro da existência.

Na frase seguinte, propusemos “a palavra primordial era um delírio girante ao redor do sentido da luz” para “pierwotne słowo było majaczeniem, krążącym dookoła sensu światła”. Aqui, Siewierski, em sua tradução, faz, em nota de rodapé, interessante observação: “é provável que a palavra luz (światła) seja resultado de um lapso na primeira edição deste texto, e que deveria ser mundo (świata)”[4]. Concordamos com Siewierski e acrescentamos que, na língua polonesa, há grande semelhança fonética entre świat ([ʹɕfʲat], mundo)[5], święty ([ʹɕfʲe͂.tɨ], santo) e światło ([ʹɕfʲa.two], luz). Schulz, de certa maneira, explora tais semelhanças, como ocorre no conto O Livro, que inicia o ciclo O Sanatório (1937). O narrador reflete sobre a vida que tinha junto a seu pai antes do “surgimento” da mãe:

To było bardzo dawno. Matki jeszcze wówczas nie było. Spędzałem dni sam na sam z ojcem w naszym, wielkim wówczas jak świat, pokoju.

[…] Potem przyszła matka i wczesna ta, jasna idylla skończyła się. Uwiedziony pieszczotami matki, zapomniałem o ojcu, życie moje potoczyło się w nowym, odmiennym torem, bez świąt i bez cudów, i byłbym może na zawsze zapomniał o Księdze, gdyby nie ta noc i ten sen.

Obudziłem się raz w ciemny świt zimowy […][6]

Aos trechos selecionados, propõe Siewierski:

Foi há muito tempo. A mãe ainda não existia ainda. Eu passava os dias só com meu pai, no nosso quarto, naquele tempo grande como o mundo.

[…] Depois chegou a mãe, e aquele prematuro e sereno idílio se acabou. Seduzido pelas carícias de minha mãe, esqueci-me do pai, e minha vida tomou um novo rumo, diferente, sem feriados e sem milagres, e talvez eu esquecesse para sempre o Livro, não fosse essa noite e esse sonho.

Certa vez, acordei numa madrugada escura de inverno. […][7]

Nos excertos apresentados, o autor joga com a semelhança fonética entre jak świat ([jak. ʹɕfʲat] como o mundo), bez świąt ([bes.ʹɕfʲõt] sem feriados; aqui proporíamos “sem dias santos”) e świt ([ʹɕfʲit], madrugada). Parece-nos haver um paralelismo entre como o mundo e sem feriados (ou “sem dias santos”) que nos permite inferir ser o mundo (świat) do pai é um mundo santo (święty). Além disso, no mundo (świat) sem pai a madrugada (świt, termo etimologicamente relacionado a świat e światło, podendo também significar aurora) é escura, isto é, “sem luz”.

Aqui e acolá encontramos dificuldades tradutórias inerentes ao processo de tradução entre polonês e português, mas esses de menor interesse. Para além de reflexões relativas à tradução, caberia dar nota da grande semelhança imagética e vocabular entre o trecho schulziano

“esquecemo-nos, operando com a palavra coloquial, de que elas são fragmentos de antigas e eternas histórias, que construímos, tal bárbaros, nossas casas de destroços de esculturas e estátuas de deuses […] Não há nenhum estilhaço entre nossas ideias […] Ela o procura nos cumes de seus amontoados e andaimes artificiais […] Mas os elementos dos quais ela faz uso para a construção já foram uma vez usados, são originários das “histórias” esquecidas e destroçadas”

e a famosa TESE IX de Walter Benjamin, na qual descreve o Angelus Novus, de Paul Klee: “Ele [o anjo da história] tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés”. Apontar tal semelhança se justifica além dos limites da mera curiosidade, tendo em vista a coincidência de vários pontos entre o autor, conforme é apontado em vários estudos[8].

Porém, há, entre ambas as descrições, uma diferença fundamental: o anjo benjaminiano é incapaz de construir qualquer coisa, pois “do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las”, ao passo que, em Schulz, a visão é mais otimista: a palavra hodierna é feita dos escombros da palavra antiga; e se o anjo da história é impelido pela tempestade ao futuro, sem que nada possa fazer pelo passado, a palavra schulziana é condenada a “sentir saudades” da unidade inicial, sem poder a ela retornar.

Dentro do trecho acima citado, ainda encontramos a sentença nie była przeobrażoną, okaleczoną, przeistoczoną mitologią” à qual propusemos “que não seja uma mitologia transformada, mutilada, transubstanciada”. Novamente, podemos perceber o trabalho com a sonoridade que marca a arquitetura verbal schulziana; notemos o eco causado pela terminação oną, e, ainda, a assonância dos sons representados pelas vogais e e o. Também é curiosa a escolha lexical: transubstanciada (przeistoczona) é a essência do pão e do vinho pela consagração, tornando-se carne e sangue de Jesus Cristo, de acordo com o catolicismo, mantendo, assim, o uso de termos característicos à mitologia judaico-cristã para refletir acerca da palavra (ressonância do tema judaico-cristão da Palavra de Deus?) e da poesia.

Um dos grandes desafios tradutórios encontrados em A mitificação da realidade, se não o maior,foi a tradução da sentença “mowa jest metafizycznym organem człowieka”, desafio ao qual respondemos com “a fala é o órgão metafísico do homem”. O problema, aqui, não reside em questões de estilo, de arquitetura literária ou de sintaxe; trata-se do sentido de mowa (fala). O Współczesny słownik języka polskiego (Dicionário do polonês contemporâneo) dedica à palavra mowa três entradas e sete sentidos, dos quais trazemos apenas um, pois acreditamos ser o que mais se encaixa no ensaio de Schulz: “capacidade de entendimento com outras pessoas com ajuda da língua; ação de expressão de pensamentos através de palavras, da língua”. Em traduções a que tivemos acesso, encontramos: “la parole est l’organe métaphysique de l’homme” (tradução de Thérèse Douchy), “speech is the methaphysical organ of man” (tradução de John Bates), “el habla es un órgano metafísico del hombre” (tradução de Elżbieta Bartkiewicz e Juan Pablo Vidal), “la palabra es un órgano metafísico del hombre” (tradução de Jorge Segovia e Violetta Beck), “a palavra é o órgão metafísico do homem” (tradução de Aníbal Fernandes) e “a fala é o órgão metafísico do homem” (primeira tradução de Henryk Siewierski)[9].

Aqui, a questão do λόγος tangencia a lide tradutória: speech, por exemplo,é o termo usado para traduzir trechos aristotélicos[10]. Escreve Aristóteles: “λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων”[11] [lógon dè mónon ánthrōpos ékhei tōn zōōn]. Em língua inglesa, esse trecho fundamental da Política é traduzido como “and man alone of the animals possesses speech” (tradução de H. Rackman, grifo nosso).

Ao termo mowa, como Siewierski, propusemos “fala”. Para tomar tal decisão, levamos em conta a coerência interna do texto e a proximidade entre mowa e o verbo mówić (falar).

Traduzir Schulz, mesmo um texto curto como A mitificação da realidade, é arriscar-se em uma poética muito particular, que faz uso vigoroso de metáforas, que, no dizer de Jerzy Jarzębski, grande teórico polonês da literatura polonês, é “pintura com palavras”[12]. Schulz, ao encerrar seu ensaio, afirma que “a filosofia é precisamente filologia, é profunda e criativa pesquisa da palavra”; sobre traduzir sua obra, também fazemos reflexão semelhante: traduzir Schulz é profunda e criativa pesquisa da palavra e de seus sentidos.

 

III

 

Nesse terceiro momento, faremos alguns apontamentos em duas das três traduções de que temos conhecimento para a língua portuguesa: aquela feita por Aníbal Fernandes e aquela levada a cabo por Henryk Siewierski em 1997.

A tradução de Henryk Siewierski, também tradutor da obra ficcional de Schulz, foi feita a partir do idioma original, com base na edição Opowiadania. Wybór esejów i listów [Contos. Seleção de ensaios e cartas], de elaboração de Jerzy Jarzębski. Siewierski publicou sua tradução na extinta revista literária brasiliense Gárgula (1997), em sua única edição.

Por vezes, o trabalho tradutório leva a soluções semelhantes e, em alguns casos, iguais. É o que será encontrado caso se faça um cotejo entre a tradução que propusemos e a versão mais antiga de Siewierski. Algumas soluções se aproximam, outras são iguais e ainda outras são diferentes, como é o caso da passagem “velhas cosmogonias o exprimiam sentenciando que no princípio era a palavra”, a que Siewierski propõe “as velhas cosmogonias o exprimiam com a sentença de que no princípio era o verbo”. Pelos motivos já expostos (longe de estarem expostos exaustivamente), optamos por palavra, indo em sentido diverso à tradução de 1997 de Siewierski.

A outra tradução, mais antiga (1983), é de autoria de Aníbal Fernandes e foi publicada na coletânea Tratado dos manequins ou o segundo génesis. Tivemos acesso a pouquíssima informação sobre a tradução, e é diretamente sobre o texto traduzido que trabalharemos e teceremos comentários.

O título proposto por Fernandes é A mistificação da realidade. Ora, soa-nos inadequada tal opção. A palavra mistificação possui um campo semântico distinto de mitificação – pode ser aproximada de termos como “engodo” ou “fraude”. Não é absolutamente de engodo ou fraude de que se trata no ensaio.

Tudo leva a crer que a tradução proposta por Aníbal Fernandes é indireta; mais especificamente, parece ser baseada na tradução francesa de Thérèse Douchy. Fomos levados a tal juízo por conta de uma série de escolhas tradutórias que, postas em paralelo, parecem mostrar que Fernandes traduz as escolhas de Douchy, algumas das quais consideramos equivocadas. Citamos:

  1. “Pierwotne słowo było majaczeniem krążącym dookoła sensu światła, wielką uniwersalną całością” (original de Bruno Schulz);
  2. “Le mot primitif était divagation tournant autor du sens de la lumière, il était un grand tout universel” (tradução de Thérèse Douchy);
  3. “A palavra primitiva era divagação, à volta da luz, um grande todo universal” (tradução de Aníbal Fernandes) e;
  4. “A palavra primordial era um delírio girante ao redor do sentido da luz” (nossa proposta)

Com relação a esse trecho específico, acreditamos que devemos deitar nossos olhos à tradução do termo majaczeniem [a que propomos delírio]. Ora, o sentido de “delírio” e “divagação” pode se aproximar, mas parece-nos inadequada a opção, levando-se em consideração a existência de uma palavra que dá conta dos mesmos significados.

Outro fato que fortaleceu nossa crença na “gênese francesa” da tradução de Aníbal Fernandes é o trecho a que propomos “[…] a essa tendência ao seu berço, sua saudade regressiva, sua saudade da arqueopátria da palavra damos o nome de poesia”. Procederemos de maneira semelhante, apresentando o original, a tradução francesa e a tradução para o português europeu:

  • […] i tę dążność słowa do matecznika, jego powrotną tęsknotę, tęsknotę do praojczyzny słownej, nazywamy poezją” (original de Bruno Schulz);
  • “il tend alors à se compléter, à retrouver ses liens anciens, son sens, son état primordial dans la patrie originelle des mots – et c’est alors que naît la poésie” (tradução de Thérèse Douchy)
  • “tende assim a completar-se, a reencontrar antigos laços, o seu sentido, o seu primordial estádio na pátria de origem das palavras. Só então nasce a poesia.” (tradução de Aníbal Fernandes)

 

Observemos que a tradução francesa e a tradução de Aníbal Fernandes modificam da mesma forma o texto. No texto schulziano a poesia não nasce, dá-se o nome de poesia a uma tendência, a um sentimento da palavra, à saudade da palavra de sua arqueopátria da palavra, onde o sentido verdadeiro podia existir.

 

IV

 

A mitificação da realidade[13]

(Bruno Schulz)

 

O sentido é a essência da realidade. O que não tem sentido não é real para nós. Cada fragmento da realidade existe graças a tomar parte em algum sentido universal. Velhas cosmogonias exprimiam-no sentenciando que no princípio era a palavra. O não-nomeado não existe para nós. Nomear algo significa ligá-lo a algum sentido universal. A palavra mosaico, isolada é um produto tardio, já é resultado da técnica. A palavra primordial era um delírio girante ao redor da luz, era uma grande totalidade universal. A palavra no significado coloquial de hoje já é rudimento, fragmento de alguma antiga mitologia, oniabrangente e integral. Por isso nela há uma tendência a brotar novamente, à regeneração, a completar-se no pleno sentido. A vida da palavra consiste em ela estirar-se, flectir-se para mil ligações, como o corpo esquartejado da cobra da lenda, cujas partes procuram-se mutuamente na escuridão. Esse organismo de mil partes mas integral da palavra foi dilacerado em expressões particulares, sons, fala coloquial e, nessa nova forma, aplicado às necessidades da prática, veio ele a nós como um órgão do entendimento. A vida da palavra, seu desenvolvimento foi posto em novos trilhos, nos trilhos da prática da vida, entregue a novas regras. Mas quando, de alguma maneira, as ordens da prática reduzem seus rigores, quando a palavra, libertada dessa coação, é deixada à sua própria sorte e retorna às próprias leis, então ocorre nela uma regressão, uma corrente inversa, e a palavra então tende às antigas relações, a completar-se no sentido – e a essa tendência ao seu berço, sua saudade de retorno, saudade da arqueopátria da palavra damos o nome de poesia.

Poesia são curtos-circuitos de sentido entre as palavras, súbita regeneração dos mitos primordiais.

Esquecemo-nos, operando com a palavra coloquial, de que são elas fragmentos de antigas e eternas histórias, de que construímos, tal bárbaros, nossas casas de destroços de esculturas e estátuas de deuses. O mais sóbrio de nossos conceitos e definições é distante derivado dos mitos e antigas histórias. Não há nem um estilhaço entre nossas ideias que não tenha vindo da mitologia – que não seja uma mitologia transformada, mutilada, transubstanciada. A função mais primordial do espírito é fabular, é criar “histórias”. A força motora do conhecimento humano é a convicção de que ele encontrará, ao final de suas pesquisas, o sentido último do mundo. Ele o procura nos cumes de seus amontoados e andaimes artificiais. Mas os elementos dos quais faz uso para a construção já foram uma vez usados, são originários das “histórias” esquecidas e destroçadas. A poesia reconhece esses sentidos perdidos, devolve às palavras seu lugar, liga-as de acordo com os antigos significados. No poeta, de alguma maneira, a palavra se rememora de seu sentido essencial, floresce e se desenvolve espontaneamente consoante suas próprias leis, reconquista sua integralidade. Por isso, toda a poesia é mitologização, tende à recriação dos mitos sobre o mundo. A mitificação do mundo ainda não está terminada. Esse processo foi apenas freado pelo desenvolvimento da ciência, empurrado para um canal lateral, onde vive sem entender seu sentido essencial. Mas também a ciência nada mais é que a construção de um mito sobre o mundo, posto que o mitojá está em seuspróprioselementos e para além do mito não podemos de forma alguma sair. A poesia chega ao sentido do mundo antecipando, dedutivamente, tendo por base corajosos atalhos e grandes aproximações. A ciência tende ao mesmoindutivamente, metodicamente, considerando todo o material da experiência. No fundo, uma e outra confluem para o mesmo fim.

O espírito humano é infatigável em glosar a vida com ajuda dos mitos, em “sentidificar” a realidade. A palavra solitária, deixada à sua própria sorte, gravita, inclina-se em direção ao sentido.

O sentido é a unidade que ergue a humanidade ao processo da realidade. Ele é um dado absoluto. Não se pode extraí-lo de outros dados. Por que algo nos parece ter sentido – não há como explicar. O processo de sentidificação do mundo está estritamente ligado à palavra. A fala é o órgão metafísico do homem.

Contudo, a palavra, com o passar do tempo, enrijece, estabiliza-se, deixa de ser condutora de novos sentidos. O poeta restitui à palavra a condutibilidade através de novos curtos-circuitos, que surgem da acumulação. Os símbolos matemáticos são uma expansão da palavra em novas áreas. Também a imagem é derivada da palavra primordial, da palavra que ainda não era signo, mas mito, história, sentido.

Vulgarmente consideramos a palavra como a sombra da realidade, como seu reflexo. Mais adequada seria a afirmação contrária: a realidade é a sombra da palavra. A filosofia é precisamente filologia, é profunda e criativa pesquisa da palavra.

 

* Bacharel em Letras-Polonês pala UFPR.

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*Bacharel em Letras-Polonês pela UFPR.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem I

 

(Autoportret ze złożonym dłońmi [Autorretrato com as mãos entrelaçadas], cerca de 1938, carvão, papel, 21,1 x 16,1).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem II

 

 

(Rozmowa Józefa z dr Gotardem [Conversa de Józef com o dr Gotard], 1936, lápis, papel, 14,5 x 15)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Disponível em: < http://www.brunoschulz.org/mistificacao.htm>, acesso em 01/09/2014.

[2] SCHULZ, B. Mitificação da realidade. Trad. de Henryk Siewierski in Gárgula: revista de literatura. Nº 1. Brasília, 1997. A segunda tradução, mais recente, encontra-se disponível em <http://catedranorwid.unb.br/index.php/oficina-de-traducao> e intitula-se Mitificação do real.

[3] Uma breve análise da entradaλόγος em um dicionário de língua grega mostrará o quão amplo é o leque semântico dessa palavra.

[4] SCHULZ, B. Mitificação da realidade. Trad. de Henryk Siewierski in Gárgula: revista de literatura. Nº 1. Brasília, 1997.

[5] De acordo com BRÜCKNER, Aleksander, em seu Słownik etymologiczny języka polskiego(1985, Varsóvia), o termo świat significava, em princípio, “luz”. Para um estudo mais detalhado do termo święty nas línguas eslavas, ver BENVENISTE, Émile e seu O vocabulário das instituições indo-européias: II. Poder, direito, religião.

[6] SCHULZ, B. Sklepy cynamonowe. Sanatorium pod Klepsydrą, p. 82. (Grifos nossos)

[7] _________. Ficção completa, p. 120-121. (Grifos nossos)

[8] Ver UNDERHILL, Karen: Ecstasy and Heresy: Martin Buber, Bruno Schulz and Jewish Modernity in DE BRUYN, D.; VAN HEUCKELOM, K. (Edição). (Un)masking Bruno Schulz: new combinations, further fragmentations, ultimate reintegrations; ou, ainda, trabalho apresentado na 41ª conferência da Association for Jewish Studies por Karen Underhill intitulado Into the now: Post-Theological Adaptations of the Messianic in Bruno Schulz and Walter Benjamin.

[9] Todos os grifos são nossos.

[10] Há, aqui, duas considerações centrais a serem feitas: o grego dos textos aristotélicos (grego ático) difere sensivelmente do grego do evangelista (grego koiné), que é de um período bastante posterior; também é preciso levar em conta que o λόγος de João dará início a uma nova interpretação do sentido filosófico dessa palavra, tradição distinta da aristotélica e com a qual, entendemos, Schulz dialoga. Para maiores informações sobre λόγος, consulte-se PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico.

[11] O grifo é nosso. Traduções desse trecho há várias, das quais citaremos uma: “e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala”, de Mário da Gama Kury (grifo nosso).

[12]Malowanie Słówin JARZĘBSKI, Jerzy. Prowincja centrum: przepisy do Schulza.(p.26-50)

[13] Tradução feita por Luiz Henrique Budant a partir do texto disponível em <http://www.brunoschulz.org/mifolog>.