Por uma tradução do teatro para o teatro – Marina Bento Veshagem
Por uma tradução do teatro para o teatro
Marina Bento Veshagem*
O teatro como “lugar de onde se vê”. Essa é a definição de teatro a partir do vocábulo grego Théatron, que implica que haja alguém que vê, algo para ser visto e um espaço determinado de onde se vê. Esse alguém que vê está na posição de espectador e, logo, estabelece uma interação “aqui e agora” com o que vê: a encenação. Essa relação entre personagem, espaço e tempo é sempre audiovisual e presencial, e se constrói pela técnica da representação. Assim, um texto dramatúrgico não possibilita somente um imaginário decorrente de sua leitura, ele contém uma potência de exteriorização imagética que se realiza no espetáculo, no aqui e agora, na relação com o espectador.
A relação entre texto e encenação mudou consideravelmente ao longo dos séculos. No surgimento do teatro grego, no século V a.C. a cena era a representação ritual dos mitos. Posteriormente a essa época, e durante muito tempo, o teatro foi o espaço de verbalização do texto teatral, e a função do diretor era basicamente determinar entradas e saídas de cena e marcar as posições das quais seriam ditos os textos. Desenvolve-se também ao longo desse período a figura do diretor dramaturgo, que escrevia e encenava seus textos, razão pela qual muitas obras dramatúrgicas na sua origem não possuíam didascálias (indicações cênicas para diretor e atores, como a listagem de personagens, nome de cada personagem antes da fala, rubricas, e outras). Shakespeare, por exemplo, escrevia e dirigia suas peças, concretizando-as exatamente como queria, sem se preocupar em orientar outro encenador sobre como gostaria que seu texto fosse colocado em cena.
A noção de encenação enquanto composição de elementos em cena, com espaço e tempo determinados, para um público, sobretudo em que há a figura de um encenador que coordena esses elementos, é muito recente. Foi no final do século XIX, a partir de 1860, que ela começou a se desenvolver, impulsionada pela revolução tecnológica. A utilização da iluminação elétrica permitiu o uso de novos recursos em cena, e o apagamento das fronteiras e das distâncias entre os países resultou que as teorias e práticas teatrais não estavam mais limitadas geograficamente, mas podiam circular e se difundir. Tais mudanças permitiram o desenvolvimento das estéticas naturalista e simbolista, e convencionou-se considerar André Antoine[1] (1858-1943) como o primeiro encenador, no sentido moderno da palavra.
Em outras palavras, as condições para uma transformação da arte cênica achavam-se reunidas, porque estavam reunidos, por um lado, o instrumento intelectual (a recusa das teorias e fórmulas superadas, bem como propostas concretas que levavam à realização de outra coisa) e a ferramenta técnica que tornava viável uma revolução desse alcance: a descoberta dos recursos da iluminação elétrica. (ROUBINE, pág. 20)
A partir de uma nova noção de encenação, advêm novas formas de relação entre texto e espetáculo. Contemporaneamente, qualquer tipo de texto pode resultar num espetáculo teatral: uma palavra, um tema, um gesto, uma obra, um fato, ou outras inúmeras possibilidades textuais. Mesmo quando se trata da montagem de um espetáculo a partir de uma obra dramatúrgica, não significa que todos os elementos serão levados à cena tais quais estão escritos. O encenador é soberano na composição do seu espetáculo, inclusive das palavras que serão oralizadas, então, o mesmo texto pode resultar em encenações completamente diferentes. “A encenação não tem que ser fiel ao texto dramático. Essa noção obsessiva do discurso crítico quanto à fidelidade é inútil, pois faria levar a que se dissesse, em primeiro lugar, no que se funda a comparação entre ponto de partida e resultado” (PAVIS, pág. 24). Por possibilitar múltiplas encenações, temos, já em meados do século XX, textos como o do dramaturgo Samuel Beckett, que indicava nas didascálias até mesmo a duração do silêncio entre as falas – o que na concepção do autor era primordial para a encenação.
Além da relação entre texto e espetáculo, para essa reflexão, também é importante considerar as interações entre texto e leitor. Se tomarmos um texto de Shakespeare como “Otelo”, por exemplo, podemos imaginar um leitor que leu o livro e jamais viu uma montagem da obra. Este leitor tem um texto de “Otelo” para si. Temos também aquele leitor que nunca leu a obra, mas viu uma montagem da peça. Esse leitor guarda outro texto consigo. E há aquele que leu a obra e também viu uma ou mais montagens dela. Esse leitor pode vislumbrar ainda outro texto, porém, não podemos negar que todos leram um “Otelo”.
A tradução teatral que será abordada neste artigo é aquela feita a partir de uma obra dramática escrita e traduzida para outra língua, mas em uma mesma materialidade, ou seja, se apresenta a tradução também como um texto escrito. Isso se dá por um tradutor/leitor privilegiado que traduz do teatro para o teatro, tendo como horizonte a encenação.
Dedicar-se a pensar essa tradução pode soar como tarefa ainda mais fugidia do que habitualmente já é a reflexão sobre qualquer tipo de tradução. Entretanto, vejo a tarefa desse tradutor como potência multiplicadora de sentidos, de textos singulares. A potencialidade textual começa com a obra original e termina na encenação – ou não se encerra, já que as possibilidades de montagens são diversas e infinitas. O tradutor pode estar no meio desse processo e participa da produção textual, ou seja, depara-se com um texto escrito para o teatro, na língua de partida e ali encena seu encontro. O texto que se produz nesse encontro será traduzido para a língua de chegada em palavras, frases, enfim, em uma obra escrita. Mas essa obra tem peculiaridades: ela tem indicações para o seu leitor de que pode ser encenada. O leitor da tradução pode simplesmente lê-la como texto literário, sem levar adiante sua potência teatral. Mas o tradutor que executa sua tarefa sobre uma obra dramática e destina seu texto para o teatro, deve levar em conta tal potência de encenação e preocupar-se com fazer chegar à tradução as características dessa vocação que ele lê no original.
Uma das tentações nesse processo é ver a tradução como uma maneira de interpretar o texto, mobilizar e apropriar-se dele para torná-lo legível para um leitor/espectador atual, como se a recepção desse texto dependesse de tal procedimento. A proposta aqui é de implodir esse trajeto, ampliando a noção de texto e refletindo a experiência da tradução teatral atenta à letra.
Texto, obra e encenação
Faz-se necessário então pensar no que se traduz quando se fala em tradução teatral. Partindo de uma noção geral de texto, segundo o conceito de Roland Barthes, podemos dizer principalmente duas coisas: trata-se de uma prática significante que também é produtividade. Tal concepção supera a ideia de texto enquanto obra que guardaria um significado único e sagrado, e possibilita ver o texto enquanto espaço polissêmico, em que se entrecruzam vários sentidos possíveis. A obra é computável e pode ocupar o espaço físico de uma estante, enquanto o texto é um campo metodológico que se segura na linguagem. “O texto é um fragmento de linguagem colocado numa perspectiva de linguagens” (BARTHES, p. 268).
Dessa forma, definimos que o que se traduz é o texto e não a obra. Mesmo que o texto se materialize como obra, o tradutor, enquanto leitor, pode traduzir apenas o texto que se faz para ele, que se faz com ele. Assim como no cinema o texto se faz pelo que é ouvido, escrito (legenda), o teatro também tem sua especificidade, como as definições do lugar de encenação e lugar da plateia, o gesto, a voz, o cenário e outras.
Tais relações singulares para o teatro se produzem num momento específico, que é o da encenação, que Patrice Pavis define como o ato de colocar em relação, num espaço e tempo determinados, materiais os mais diversos (sistemas significantes) em função de um público (p. 21). A encenação pode ser vista, então, como potencialidade de texto, como obra dramática que se entrega à plateia e, com isso, ser a produção de múltiplos textos.
Barthes ressalta que o texto é prática significante privilegiada pela semiologia, pois o trabalho por meio do qual ocorre o encontro entre sujeito e língua nele é exemplar: “é ‘função’ do texto ‘teatralizar de algum modo esse trabalho” (BARTHES, p. 269). Sobre o texto ser produtividade, ele ainda diz “isso não quer dizer que é o produto de um trabalho (…) mas sim o teatro de uma produção em que se reúnem o produtor do texto e seu leitor” (BARTHES, p. 271).
A teatralização no encontro entre sujeito e língua está muito próxima da noção de encenação teatral. Nesse sentido, a encenação acontece para qualquer texto, na relação de sua materialidade com seu leitor, público. O tradutor é também um desses leitores que vivenciam a encenação do texto no momento de contato com a língua e é apenas essa teatralização que ele pode traduzir.
Texto, tradução e especificidade teatral
Se há teatralização no encontro entre sujeito e língua, a encenação está no início de qualquer tradução. Uma especificidade da tradução teatral é que a encenação está no início, mas também está no fim do processo. Qualquer obra gera textos diversos, produz sentidos quando há contato com o leitor. A obra teatral, além de produzir textos múltiplos na leitura, nessa primeira encenação e depois na tradução, tem essa capacidade multiplicada na encenação final, em que diversos sistemas significantes pluralizam as possibilidades de textos, através das materialidades que são construídas, como os gestos, as entonações, os cenários, os figurinos e outros. A especificidade teatral está na preocupação daquele que escreve o original com certa vocação do texto, que se destina a essa última encenação. Por isso, o texto possui características internas dessa escrita, que o tradutor deve identificar, e que mostram essa vocação.
Assim, o tradutor que quer traduzir “para o teatro” também direciona seu texto de chegada (sua obra de chegada) para a encenação, levando em conta alguns dos pressupostos já citados: o que se pode traduzir é o texto e não a obra; o texto traduzido é o que se manifesta singularmente para o tradutor/leitor na primeira encenação/contato com a língua; a tradução em si mesma já pluraliza as possibilidades de produção de texto; e por último, há que se considerar as possíveis encenações no final desse processo, que vão produzir mais textos através de outras materialidades diversas.
Já que há de levar em conta esse caminho completo, alguns acreditariam que é preciso pensar no público, no espectador dessa encenação final. Mas considerar o grupo de espectadores como integrante do trajeto não o torna protagonista deste espetáculo, nem gera a pretensão de que a obra traduzida seja todo “compreensível” para ele. Tal visão vai de encontro à ideia de texto e encenação aqui apresentados. Patrice Pavis acredita que a encenação deve estar no horizonte de qualquer tradutor de teatro e para teatro. Ele, entretanto, pontua que o público deve compreender de maneira clara e imediata o texto de teatro traduzido no momento da encenação, o que permite ao tradutor, em diálogo com o encenador, a realização de adaptações e comentários, fornecendo informações de que o público necessite para compreender personagens e situações.
“Se o comentário é muito longo ou incompreensível, o tradutor-dramaturgo tem sempre a possibilidade de fazer cortes na sua versão para o público-alvo, se possível de acordo com o encenador, pois este pode, por seu lado, encontrar meios cênicos para fazer seus comentários. Este procedimento, que pode parecer uma solução de facilidade ou uma renúncia, é preferível do que manter alusões incompreensíveis que desconcertariam o público-alvo. Qualquer tradução – e sobretudo aquela para o teatro, que deve ser compreendida imediata e claramente pelo público – é uma adaptação e uma ‘apropriação ao nosso presente’” (PAVIS, p. 128)
Ao contrário do que acredita Pavis, na maneira como concebo a tradução teatral, não cabem procedimentos facilitadores para a compreensão do público. Existe uma diferença abismal entre o texto dramatúrgico conter indicações imagéticas que serão exteriorizadas no momento da encenação, e cortar, clarificar e facilitar o texto para a montagem. Tais tendências são opostas e se anulariam se colocadas em confronto, pois a última tende à diminuição da multiplicação de sentidos. Da mesma forma, ainda que o tradutor deva considerar que o texto teatral traduzido será levado a um segundo, ou mais, processos de encenação, isso não significa que ele precise ser um dramaturgo. O tradutor da obra de teatro para o teatro precisa estar consciente de todas as questões que foram pontuadas aqui, tais reflexões permitem que ele esteja imbuído do espírito de encenador.
No caso da tradução de “Le Piège de Méduse”, de Erik Satie, texto com o qual estou trabalhando no mestrado, algumas escolhas exemplificam a opção de não facilitação do texto para o público. No exemplo que se segue, o barão Méduse conversa com seu empregado doméstico Polycarpe.
POLYCARPE:
Tu sais?… Il faut que je sorte ce soir… IL LE FAUT. Impérieusement: TU ENTENDS?
MÉDUSE :
Craintif : Ce soir ?
POLYCARPE:
Oui, … ce soir…. d’une voix caverneuse : IL LE FAUT.
MÉDUSE, avec ennui :
Ce soir ?.. Impossible: Le general dîne ici… Où vas-tu ?
POLYCARPE:
Je vais à un match de billard… Quel beau match ! Napoléon y sera… Celui du billard, évidemment:…… LE VÉRITABLE.
Trata-se de um texto de 1913, caracterizado pelo uso de linguagem nonsense, uma vez que há na peça uma clara dificuldade de comunicação entre os personagens. Essa mesma característica pode também ser observada nos textos do denominado “teatro do absurdo”, inaugurado por Eugène Ionesco e Samuel Beckett, como pretendo demonstrar em trabalho futuro. No caso do trecho exemplificado, Polycarpe fala de Napoleão, mas enfatiza que se refere ao “verdadeiro”. A conclusão a qual pude chegar até este momento é que o trecho faz referência a Napoleão III, sobrinho do general Napoleão Bonaparte, que prezava muito pelo mobiliário de bilhar, já que o palácio real possuía inclusive uma sala dedicada especialmente ao jogo, La Salle de Billard. Contudo, ele era ridicularizado pelos franceses, quando comparado ao tio. Napoleão III tentou dar um golpe de estado como seu tio, mas fracassou e acabou virando uma “lenda negra”, difundida por diversas críticas de autores da época e posteriores.
Uma nota de rodapé poderia ser uma opção para o leitor que tem acesso à obra, mas tais informações escapariam àquele leitor que assiste à encenação final do texto. Isso, porém, não é uma perda, pois as diversas materialidades da encenação podem compor uma cena riquíssima de sentidos, com cenário, figurino, acessórios, sonoplastia, gestos, que complementem a cena, sem necessidade de ilustrá-la ou explicá-la. Aí é que se dá a potência de texto na encenação final, e que só é possível a partir de opções de tradução que não permitam a perda dessas potencialidades. A opção de tradução, por enquanto, se aproxima da seguinte:
POLICARPO:
Sabe?… É preciso que eu saia esta noite… É PRECISO. Imperativamente: Você me ouve?
MEDUSA:
Intimidado: Esta noite?
POLICARPO:
Sim,… esta noite…. com uma voz cavernosa: É PRECISO.
MEDUSA, aborrecido:
Esta noite?.. Impossível: o general janta aqui… Aonde você vai?
POLICARPO:
Eu vou a um jogo de bilhar… Que belo jogo!.. Napoleão estará lá… Aquele do bilhar, obviamente:…… O VERDADEIRO.
A partir disso podemos então pensar que não facilitar o texto na tradução para o leitor significaria traduzir simplesmente palavra por palavra. Não é simplesmente essa a proposta. O que mais se aproximaria da ideia de tradução contrária à explicação e clarificação é o conceito de “letra” de Antoine Berman (1942 – 1991). Para ele, “traduzir a letra de um texto não significa absolutamente traduzir palavra por palavra” (BERMAN, pág. 20). O autor enfatiza que o que chama de tradutologia, como reflexão sobre a experiência que é a tradução, se baseia na essência plural que é experiência de tradução. Por isso afirma que não há uma única teoria geral da tradução, totalizante, esse espaço é babélico por natureza. Para Berman, a tradução é “tradução-da-letra”, do texto enquanto letra.
Berman parte do exemplo da tradução de provérbios de uma língua para outra, que quase sempre teriam um equivalente em outra língua. O dilema do tradutor de provérbios é que ele teria duas opções: ou encontraria esse equivalente na outra língua, ou o traduziria “literalmente”, “palavra por palavra”. “No entanto, traduzir literalmente um provérbio não é simplesmente traduzir ‘palavra por palavra’. É preciso também traduzir seu ritmo, ou seu comprimento (ou sua concisão), suas eventuais aliterações etc. Pois um provérbio é uma forma” (BERMAN, pág. 20). Berman ainda acredita que o principal problema de traduzir encontrando equivalentes é que isso significaria a recusa por introduzir na língua para a qual se traduz a estranheza do provérbio original.
“Tenho a ideia de que sempre se pode traduzir um poeta, inglês, latino ou grego, exatamente palavra por palavra, sem acrescentar nada, e conservando inclusive até a ordem, até encontrar o metro e mesmo a rima. Eu, raramente, conduzi o experimento até esse ponto; é necessário tempo, digo, meses, e uma rara paciência. Chega-se inicialmente a uma espécie de mosaico bárbaro; os fragmentos estão mal juntados; o cimento os liga, mas não os harmoniza. Resta a força, o brilho, até mesmo uma violência, e provavelmente mais do que o necessário. É mais inglês que o inglês, mais grego que o grego, mais latim que o latim…” (Alain 1934: 56-7, in BERMAN, p. 33)
Assim como Berman considera a forma, a exemplo dos provérbios, quando fala de tradução, Walter Benjamin também dá importância a ela em “A Tarefa do Tradutor”. Benjamin vê a tradução como forma, quer dizer, mesmo que não se encontre um tradutor endividado para tal tarefa, há demanda e desejo de tradução na própria estrutura do original. Ampliando essa visão, o provérbio, o texto teatral e qualquer outro texto são formas que demandam a tradução em sua estrutura, e é essa tradução, enquanto forma, enquanto letra, que deve privilegiar o tradutor. Benjamin ainda afirma que as línguas não são tão diferentes entre si, e a finalidade da tradução é exatamente expressar “o mais íntimo relacionamento entre as línguas”, lembrando que afinidade para ele não é semelhança. Assim, a tradução que considera a afinidade entre as línguas é aquela em que se pode perceber a estranheza, por isso ela pode ser “mais inglês que o inglês, mais grego que o grego, mais latim que o latim”. Essas e todas as línguas, para Benjamin, visam à mesma coisa, que não se pode alcançar isoladamente, mas na totalidade de suas intenções, que é a pura língua.
Aqui percebemos que há uma proximidade entre as filosofias e a tradução, conforme pontuada por Berman, no sentido de mostrar o que o ato de traduzir tem em “comum” com o de “filosofar”. Nesse sentido, podemos ver que a língua pura de Benjamin[2] não é idealização, é a filosofia do acontecimento, do Messias que chega hoje, é a linguagem pura na qual o sentido e a letra não se dissociam mais.
Berman (2013) caracteriza a tradição da tradução como culturalmente etnocêntrica, literariamente hipertextual, e filosoficamente platônica. No entanto, para ele, a essência mais profunda da tradução é, simultânea e respectivamente, ética, poética e pensante. Não nos aprofundaremos nessas categorias, o principal é entender que para Berman, elas se definem em relação ao que ele chama de letra. “A letra é seu espaço de jogo” (BERMAN, p. 34, 2013). Em linhas gerais, a tradução etnocêntrica e a hipertextual estão interligadas, se uma acontece, a outra está obrigatoriamente presente. O etnocêntrico significaria o que traz tudo para sua cultura, suas normas e valores e vê o estrangeiro como bom para ser anexado e adaptado. O hipertextual é qualquer texto gerado por adaptação, imitação, paródia, ou outra transformação a partir de uma obra já existente. (BERMAN, p. 39-40, 2013).
Toda construção histórica que resulta nessas formas de ver a tradução advém, segundo Berman, filosoficamente, do “grande corte platônico”, que sanciona a possibilidade de traslação do sentido como um ser em si, como pura idealidade que a tradução pode passar de uma língua para outra deixando sua casca sensível, seu corpo. “Sim, a fidelidade ao sentido é obrigatoriamente uma infidelidade à letra. Mas esta infidelidade à letra estrangeira é necessariamente uma fidelidade à letra própria. O sentido é captado na língua para a qual se traduz” (BERMAN, p. 45, 2013). Daí advém a ideia da ética de tradução para Berman, e que se aplica à ideia de tradução teatral que defendo:
O objetivo ético do traduzir, por se propor acolher o Estrangeiro na sua corporeidade carnal, só pode estar ligado à letra da obra. Se a forma do objetivo é a fidelidade, é necessário dizer que só há fidelidade – em todas as áreas – à letra. Ser “fiel” a um contrato significa respeitar suas cláusulas, não o ‘espírito’ do contrato. Ser fiel ao “espírito” de um texto é uma contradição em si (BERMAN, p. 98, 2013).
Assim, a especificidade da tradução teatral não é simplesmente traduzir a letra – a oralidade, o ritmo, as aliterações, e outros -, essa é demanda de toda tradução ética. O que há de singular nessa tarefa é o fim a que se destina o texto produzido. O tradutor lê um texto e o traduz, atento à letra e atento à encenação futura. O texto traduzido materializa-se numa obra, que serve de base material para futuras leituras. Dessas leituras, uma delas o tradutor tem como guia: aquela que coloca o texto em cena, que faz essa prática significante e essa produtividade acontecerem no teatro, que dependam da encenação. Traduzir um texto teatral para o teatro é apostar que a obra sobrevive (porque se transforma) no texto que se produz lá, no lugar de onde se vê.
Referências bibliográficas
Benjamin, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages. São Paulo, Ed. 34, 2011.
Berman, Antoine. A Tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Antoine Berman/ tradução Marie-Helène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini; revisores Luana Ferreira de Freitas, Marie-Helène Catherine Torres, Mauri Furlan, Orlando Luiz de Araújo – 2. Ed. – Tubarão: Copiart; Florianópolis: PGET/UFSC, 2013.
Pavis, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas/ Patrice Pavis; [tradução Nanci Fernandes]. – São Paulo: Perspectiva, 2008. – (Estudos; 247 / dirigida por J. Guinsburg).
Roland, Barthes. Inéditos, I: teoria/ Roland Barthes; tradução Ivone Castilho Benedetti. – São Paulo: Martins Fontes, 2004. – (Coleção Roland Barthes).
Roubine, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Zahar, 1998.
Satie, Erik. Le piège de Méduse. Pantin : Le Castor Astral, 1988.
* Jornalista, mestranda da PGET.
[1] Jean Jacques Roubine apresenta André Antoine como o primeiro encenador no sentido moderno em “A Linguagem da Encenação Teatral”
[2] De “A Tarefa do Tradutor”, em BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages. São Paulo, Ed. 34, 2011.