O teatro de Gertrude Stein e a tradução de Augusto de Campos – Vanessa Gerônimo

O teatro de Gertrude Stein e a tradução de Augusto de Campos

Vanessa Geronimo*

 

 

Quatro santos em três atos, Gertrude Stein

 

http://www.youtube.com/watch?v=sXINp5iuUyw

A escritora norte-americana Gertrude Stein (1874-1946) começou a escrever peças de teatro em 1913. Também escreveu livros de prosa, autobiografias e contos. Em 1922 publicou o livro Geography and Plays, com peças teatrais que marcaram seu estilo; único na época e rejeitado devido às dificuldades para a encenação. Conforme afirma Amarante (2013, p.7), “as peças da escritora americana foram e são talvez ainda hoje consideradas impossíveis de levar ao palco, uma vez que nos seus textos não existem rubricas, quase não se encontra indicação de personagens nem pistas que auxiliem a sua encenação.” Essa rejeição às suas peças ocorreu devido à leitura destas na visão do teatro dramático, no qual, segundo Lehmann (2007) existem ações, personagens e uma estrutura de acontecimentos, representadas pelos personagens dramáticos.

O teatro de Stein, como veremos aqui, vai além do drama. Na época (1913-1922), ela teria escrito o que hoje é chamado por Lehmann (2007) de teatro pós-dramático, em que o texto “quando (e se) é encenado, é concebido sobretudo como um componente entre outros de um contexto gestual, musical, visual, etc” (LEHMANN, p.75). É por isso, também, que Stein foi dificilmente compreendida. O autor Augusto de Campos (1989), na introdução da obra Porta-retratos, de Gertrude Stein, por ele traduzida, revela aos leitores a dificuldade que teve em entender a autora: “hoje, menos impaciente com o irracionalismo e a prolixidade que por muitos anos me afastaram dos textos de Gertrude, sinto-me mais capaz de aumentar o escasso número das tentativas de aclimatação das suas invenções em nossa língua” (CAMPOS, p. 6, 1989). Na obra Axel’s Castle, de Edmund Wilson (1931), nota-se que o autor também não compreendeu Gertrude, ao dizer que a maioria de suas obras aparentemente permanecem inteligíveis. O autor afirma: “she has outdistanced any of the Symbolists in using words for pure purposes of suggestion she has gone so far that she no longer even suggests” (WILSON, p.243, 1931).

Segundo Gertrude Stein, suas peças deveriam ser como todas as artes podem ser; não só podendo expressar o passado ou o futuro, mas também o presente. A intenção da autora, por exemplo, em sua primeira peça “What happened: a five act play”, escrita ainda em 1913, era não contar o que aconteceu, mas fazer dela a essência do acontecimento. Nesse sentido, segundo Farfan (2010), Stein mostrou a peça teatral como uma “paisagem”, colocando, dessa forma, o papel do público como central no teatro, pois a “paisagem” existe na experiência perceptiva do público em relação à peça. As sensações que Stein desejava causar no público através do teatro assemelham-se às sensações que alguém teria ao observar um quadro, uma pintura ou mesmo uma paisagem, onde não existe uma hierarquia: a árvore é tão importante quanto a montanha, quanto ao rio etc. Não se trata de uma história com começo, meio e fim. É o que ocorre, por exemplo, na peça “Four Saints in Three Acts”, escrita em 1927. Nela, a autora desloca a atenção do texto ao expectador, sendo a peça e o público elementos interdependentes. Com isso, surge uma nova forma de teatro marcando, com antecedência, a estética pós-dramática. Conforme afirma Lehmann (2007),

desenvolvem-se novas formas de teatro que só contém narração e referência à realidade de um modo distorcido, em rudimentos: a “peça-paisagem” de Gertrude Stein, os textos de Antonin Artaud para seu “teatro da crueldade”, o teatro da “forma pura” de Witkiewicz. Essas modalidades textuais “desconstruídas” antecipam literariamente elementos da estética pós-dramática do teatro. (LEHMANN, p. 80, 2007)

Essas novas formas de teatro são características do que o autor denomina de teatro pós-dramático. Segundo Lehmann (2007), as formas textuais criadas por Gertrude Stein encerram a tradição do teatro dramático e sua estética tem muita importância no teatro pós-dramático. Nessa visão de “peça-paisagem”, a autora utiliza técnicas de linguagem, “técnicas de variação repetitiva, de desagregação de conexões semânticas imediatamente evidentes, de arranjos formais segundo princípios sintáticos ou musicais” (LEHMANN, p.249, 2007), que fazem com que suas peças sejam comparadas a objeto sem exposição. Nelas, prevalece o tom lírico, a peça como poesia, então não há uma história dramática, não há nem a possibilidade de identificar personagens protagonistas. Sendo assim, pode-se dizer que Stein foi precursora do teatro pós-dramático.

No Brasil, há pouquíssimas traduções das obras de Gertrude Stein. As mais conhecidas são: A autobiografia de todo mundo, traduzida por Julio Castañon Guimarães e José Cerqueira Cotrim Filho em 1983, Porta-Retratos, traduzida por Augusto de Campos em 1989, Três Vidas, traduzida por Vanessa Barbara em 2008 e A autobiografia de Alice B. Toklas, traduzida por José Rubens Siqueira em 2009. As únicas e poucas peças de teatro até então traduzidas encontram-se na obra O que você está olhando: teatro (2013), ainda no prelo, de Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collins. E da peça “Four Saints in Three Acts” (1927) tem-se apenas um fragmento – cena X, traduzido por Augusto de Campos (1931) em sua obra O Anticrítico (1986). Segundo Campos (1986), Gertrude Stein

é uma chata genial

a única q pegou o outro lado da questão

inglês básico mais repetições

it is it is it is it is.

if it and as if it

if it or as if it

and it is as if it and as if it.

or as if it.

repetições

q no monstruoso the making of Americans

ultrapassam o limite da legibilidade (CAMPOS, p.180, 1986)

 

A sonoridade é uma característica de extrema relevância na peça Four Saints in Three Acts (Quatro Santosem Três Atos). Gertrude Stein utiliza repetições monossilábicas que constroem um jogo de ritmos e rimas. Na cena X, algumas palavras bastante repetidas, por exemplo, são: “Saint”; “When”; “Then” e “Ten”, as quais, respectivamente, na tradução de Campos, são: “Santo (a)” ou “São”; “Se” e apenas uma vez “São”; “Quer” e “Dez”. Augusto de Campos, ao traduzir a cena X, foi além da questão da fidelidade ao conteúdo e buscou recriar a forma, fazendo uma tradução que ora valoriza o sentido e ora valoriza o som:

 

FROM FOUR SAINTS IN THREE ACTS

Scene X

 

When.

Saint Therese. Could Four Acts be when four acts could be ten Saint Therese. Saint Therese Saint Therese Four Acts could be four acts could be when when four acts could be ten.

Saint Therese. When.

Saint Settlement. Then.

Saint Genevieve. When.

Saint Cecile. Then.

Saint Ignatius. Then.

Saint Ignatius. Men.

Saint Ignatius. When.

Saint Ignatius. Ten.

Saint Ignatius. Then.

Saint Therese. When.

Saint Chavez. Ten.

Saint Plan. When then.

Saint Settlement. Then.

Saint Anne. Then.

Saint Genevieve. Ten.

Saint Cecile. Then.

Saint Answers. Ten.

Saint Cecile. When then.

Saint Anne.

Saint Answers. Saint when.

Saint Chavez. Saints when ten.

Saint  Cecile. Ten.

Saint  Answers. Ten.

Saint Chavez. Ten.

Saint Settlement. Ten.

Saint. Plan. Ten.

Saint Anne. Ten.

Saint Plan. Ten.

Saint Plan. Ten.

Saint Plan. Ten.

(CAMPOS, p. 186)

DE QUATRO SANTOSEM TRÊS ATOS

 

Cena X

 

Se.

 

Santa Teresa. Poderiam ser Quatro Atos se quatro atos pudessem ser dez Santa Teresa. Santa Teresa Santa Teresa Quatro Atos poderiam ser quatro atos poderiam ser se se quatro atos pudessem ser dez.

Santa Teresa. Se.

São Fundamento. Quer.

Santa Genoveva. Se.

Santa Cecília. Quer.

Santo Inácio. Quer.

Santo Inácio. Se.

Santo Inácio. São.

Santo Inácio. Dez.

Santo Inácio. Quer.

Santa Teresa. Se.

São Chavez. Dez.

São Plano. Quer se.

São Fundamento. Quer.

Santana. Quer.

Santa Genoveva. Dez.

Santa Cecília. Quer.

Santa Resposta. Dez.

Santa Cecília. Quer.

Santana.

Santa Resposta. Santos se.

São Chavez. Santos se dez.

Santa Cecília. Dez.

Santa Resposta. Dez.

São Chavez. Dez.

São Fundamento. Dez.

São Plano. Dez.

Santana. Dez.

São Plano. Dez.

São Plano. Dez.

São Plano. Dez.

(CAMPOS, p. 187)

 

Ao observarmos a tradução de Augusto de Campos, é possível perceber que, assim como Stein, o autor optou pela utilização de monossilábicos, recriando, na língua portuguesa, o mesmo jogo de ritmos e rimas que Stein teve a intenção de causar em língua inglesa. Segundo o autor, “o uso dominante de monossilábicos cria verdadeiros blocos de moléculas sonoras” e “certos trechos parecem mais a decupagem de uma partitura onde a miúda permutação de palavras-sílabas entre personagens induz a uma melodia de timbres” (CAMPOS, p.182, 1986). Sendo assim, vale ressaltar que “mesmo a literalidade em relação à sintaxe atropela qualquer restituição de sentido e ameaça, por vezes, conduzir-nos ao incompreensível” (BENJAMIN, p.9, 1923). Em relação a isso, Campos levou em consideração que na peça de Stein o jogo de palavras utilizando ritmos, rimas e a forma, uma vez que se tem a peça vista como “paisagem”, é o que dá sentido. Isso significa que a literalidade somente em relação à sintaxe já não caberia para tal tradução. Não é apenas uma tradução quanto à disposição das palavras, pois ao passar da língua inglesa para a língua portuguesa, já não são as mesmas palavras que mantém a mesma sonoridade e, por vezes, é o ritmo que Stein teve a intenção de transmitir. É por isso que Campos ora valoriza o sentido e ora valoriza o som; para fazer “ressoar uma obra de língua estrangeira na sua própria língua” (BENJAMIN, p.8, 1923).

Para citar um exemplo da tradução de Campos, temos a tradução de “men” para “se”, no trecho: “Saint Ignatius. Men”, o qual foi traduzido para “Santo Inácio. Se”. Se na tradução de Campos fosse literal ao sentido, ao mesmo significado da palavra solta “men – homens” esse jogo intencional com monossilábicos seria perdido. É também por isso que Collin (2013, p.16) afirma que “a prática da tradução do texto steiniano é também uma prática eminentemente combinatória, que deve se esforçar para manter um equilíbrio entre semântica e sintaxe.” A autora ainda explica que Gertrude Stein considerava alguns sinais, como, por exemplo, o ponto de interrogação, desinteressantes. Para Stein, não teria a necessidade de utilização desse sinal já que no inglês existem os auxiliares indicando a interrogação. Segundo Collin (2013), Stein é

Contrária ainda aos pontos de exclamação e às aspas, por serem “feios” e por estragarem a linha escrita e também às vírgulas, que são “servis”, Stein terá uma predileção por pontos finais, já que estes têm vida própria, necessidades, sentimentos e tempos próprios. (COLLIN, p.17, 2013)

Percebe-se que, no fragmento traduzido por Augusto de Campos, o autor manteve todos os pontos finais utilizados por Stein e, em sua tradução, escolheu muito bem traduzir a palavra “when” para “se”, pois, com isso, conseguiu manter a forma interrogativa no início do fragmento, que na língua portuguesa torna-se mais difícil já que não temos auxiliares interrogativos como no inglês. No entanto, Campos a fez mesmo sem a utilização do ponto de interrogação, assim como prefere a autora norte-americana. Pode-se verificar um exemplo claro da interrogação no seguinte trecho: “Saint Therese. Could Four Acts be when four acts could be ten Saint Therese. Saint Therese Saint Therese Four Acts could be four acts could be when when four acts could be ten.”, traduzido por “Santa Teresa. Poderiam ser Quatro Atos se quatro atos pudessem ser dez Santa Teresa. Santa Teresa Santa Teresa Quatro Atos poderiam ser quatro atos poderiam ser se se quatro atos pudessem ser dez.” Nesse trecho também é possível notar as repetições mantidas “Saint Therese Saint Therese” – “Santa Teresa Santa Teresa”, “Four Acts could be four acts could be when when” – “Quatro Atos poderiam ser quatro atos poderiam ser se se”. E também a utilização de ponto final e não vírgula, logo depois de “Saint Therese”, que intensifica e encerra a chamada à Santa. Augusto de Campos conseguiu manter a essência da “paisagem” que Gertrude Stein criou, recriando com cores diferentes, ou seja, em língua portuguesa, a mesma “paisagem”.

 

Referências:

 

AMARANTE, Dirce Waltrick do. Uma paisagem sob a névoa: o teatro de Gertrude Stein. In: O que você está olhando: teatro. / Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin. Editora Iluminuras Ltda. São Paulo, 2013.

 

BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor (Die Aufgabe des Übersetzers, Gesammelte Schriften, IV.1, 1923. p. 9 -21). Trad. Maria Filomena Molder. Texto digitalizado, 13 p. Consulta out./2013. In http://www.c-e-m.org/wp-content/uploads/a-tarefa-do-tradutor.pdf.

 

CAMPOS, Augusto de. O anticrítico / Augusto de Campos. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

 

COLLIN, Luci. Um jazz que não é e está: traduzindo Gertrude Stein. In: O que você está olhando: teatro. / Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin. Editora Iluminuras Ltda. São Paulo, 2013.

 

FARFAN, Penny. Women`s modernism and performance. In: Modernist women writers / Maren Tova Linett (Org.). Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

 

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

STEIN, Gertrude. Porta-Retratos / tradução e introdução de Augusto de Campos. Editora Noa Noa: Ilha de Santa Catarina, 1989.

 

STEIN, Gertrude. Quatro Santos em Três Atos – Cena X / tradução de Augusto de Campos. In: O Anticrítico / Augusto de Campos. – São Paulo: Companhia das Letras, p.187, 1986.

 

 

WILSON, Edmund. Axel’s castle: a study in the imaginative literature of 1870-1930. Charles Scribner’s sons: New York, 1931.

 

* Mestranda em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada em Licenciatura em Letras Português-Inglês pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).