Ha Ha Ha! É Lobato! – Agnaldo Stein da Silva
Ha Ha Ha! É Lobato!
Agnaldo Stein da Silva*
Um humor inteligente, aquele gracejo no texto que pode subliminar críticas vorazes. Na obra Lobato Humorista, Lia Cupertino Duarte se propõe a investigar minuciosamente essa característica na obra considerada infantil de Monteiro Lobato. O livro é o resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2004.
João Luis C. T. Ceccantini, prefaciador do livro, aponta o crescente interesse de diversos estudiosos pela obra lobatiana nas últimas décadas, revalorização que distancia o vício de enquadrar o autor simplesmente no rótulo de “inimigo-número-um-do-Modernismo”. Esses estudos, de acordo com Ceccantini, presenteiam-nos com temáticas que passaram despercebidas ou foram pouco aprofundadas em relação ao escritor, como o Lobato editor e empresário, crítico das artes plásticas, ou mesmo seu gosto pelo humor, como é o caso do texto de Duarte.
Divide-se o livro em três grandes partes: Continuidade, Ruptura e Síntese. A última parte, Síntese, é a que será apresentada nesse trabalho, cujo foco acende-se sobre a questão central do livro, o humor na obra lobatiana, delimitação que nos obriga a deixar de lado outras questões bem interessantes abordadas no texto, como a história da literatura infantil no Brasil e o papel de Lobato no processo editorial brasileiro.
Segundo a autora, o humor tem papel inovador e decisivo para a consolidação da obra infantil do autor. Um dos recursos utilizados por ele, bastante característico da comicidade brasileira na Primeira República, foi a caricatura. Lobato acreditava que a caricatura, sem dissociar-se da sátira, era uma forma de punição, de prevenção social e moral, com grande poder de transformação. Também era um meio de expressar a alma nacional, espécie de resumo ou síntese do modo de pensar coletivo. Afirma Duarte:
Nesse sentido, a caricatura funciona na obra de Lobato como máscara que desmascara, como se pode observar pela personagem Jeca Tatu, que, com traços fortes, bem marcados, eminentemente caricaturescos, denuncia e revela uma forma de vida negligenciada, expressando verdades sobre o lado ignorado da nação e burlando a ignorância a respeito das questões nacionais. (DUARTE, 2006, p. 269)
A caricatura na produção lobatiana, além de um recurso satírico e um método corretivo, funciona como um registro, ao expressar um modo de ser ou de viver, uma opção estética, que facilita ao leitor a fixação de personagens, e também algo que instiga à reflexão, visando ao conhecimento.
Citando Alaor Barbosa, Duarte corrobora a ideia de que Lobato pincela suas histórias com um humor inteligente, “que focaliza e desnuda o ridículo das pessoas, das convenções sociais, do atraso mental, da hipocrisia, da opressão individual e de classe social” (BARBOSA apud DUARTE, 2006. p. 270). Para a autora, um humor cujo objetivo é surpreender a quem os olhos caminham sobre as páginas, prender sua atenção, diverti-lo e comprometê-lo com a história.
O trecho seguinte, retirado do livro Caçadas de Pedrinho, de Lobato, uma das ilustres histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, ilustra um pouco o que é abordado nesse trabalho. Depois de descobrirem, por meio do leitão Marquês de Rabicó, a hipótese de que existe uma onça rondando o capoeirão dos Taquaruçus, os meninos Pedrinho e Narizinho resolvem caçar o animal:
Saíram os dois em busca dos demais companheiros. O primeiro encontrado foi o Marquês de Rabicó, que estava na porta da cozinha, ocupadíssimo em devorar umas cascas de abóbora.
— Apronte-se, Marquês, para tomar parte na expedição que vai caçar a onça aparecida lá na mata.
Aquela notícia fez o leitão engasgar com a casca de abóbora que tinha na boca.
— Caçar a onça? Eu? Deus me livre!…
Pedrinho impôs energicamente:
— Vai, sim, ainda que seja para servir de isca, está ouvindo, seu covarde?
Rabicó tremia que nem geléia fora do copo.
— Um fidalgo! — prosseguiu Pedrinho, em tom de desprezo. — Um filho do grande Visconde de Sabugosa a tremer assim de medo! Que vergonha…
Rabicó não replicou. Bebeu um gole d’água para acalmar os nervos e voltou às suas cascas de abóbora com esta idéia na cabeça: “No momento hei de dar um jeito qualquer. Não tem perigo que eu me deixe comer cru pela onça”.
O luxo dos leitões é serem comidos assados ao forno, com rodelas de limão em redor e um ovo cozido na boca…
Rabicó se engasgando com as casas de abóbora, as respostas de Pedrinho ao animal, primeiro repressora, dizendo-lhe que servirá de isca, depois em tom de desprezo, ironizando sua situação de marquês e persuadindo-o por meio desta, o medo do leitão de ser devorado e o comentário do autor sobre o “luxo dos leitões”. Como este trecho, diversos podem representar o humor na obra lobatiana. Esse recurso, como afirma Duarte, ainda ajudou Lobato a se aproximar da essência de sua obra, de suas inovações, como a fusão do real e o maravilhoso, algo incomum na literatura infantil do momento. A autora afirma:
incorporado com naturalidade à narrativa e servindo, muitas vezes, como seu fio condutor com seu jogo de aproximações e afastamentos das contradições, o humor estimula o espírito lúdico, configurando-se como um desafio e, ao mesmo tempo, uma proposta de ruptura ao racionalismo dominante. (DUARTE, 2006, p. 276)
Analisar o humor na obra lobatiana especificamente é, em minha opinião, uma proposta bastante pertinente. Esse aspecto configura-se crucial à proposta do autor, peça integrante do quebra-cabeça pré-modernista que, como apontam os estudos literários, visava uma linguagem mais simples, acessível ao grande público, mas que não comprometesse o conteúdo do texto. Quanto à ânsia de expor os problemas sociais do país na literatura, a veia cômica consegue “dar conta do recado”, de uma maneira mais leve é possível se expressar sem amarras e levar os leitores à reflexão. No entanto, nem sempre o modo mais leve de se dizer algo passa despercebido ou não é vetado, como aconteceu há alguns anos, quando o Conselho Nacional de Educação (CDE) queixou-se sobre a entrada do livro Caçadas de Pedrinho nas escolas públicas e este foi excluído do Programa Nacional Biblioteca na Escola pela identificação de passagens racistas na obra. É uma pena que se considere o autor um ser totalmente desvinculado de uma época, período na qual se acreditavam em certas concepções que, atualmente, já nos são consideradas inviáveis. Que essa ditadura literária é algo prejudicial para arte, cuja bandeira é a liberdade de expressão, não há dúvida. Mas deixo esse assunto para uma próxima oportunidade e registro apenas que também me preocupa o novo estigma atribuído a Lobato, o de “preconceituoso”, substituído pelo de “inimigo-número-um-do-Modernismo”, citado no começo do texto. Isso delimita, rotula, coloca o autor dentro de apenas uma embalagem quando, na verdade, sua escrita é multifacetada, como os grandes trabalhos literários.
* Aluno do curso de artes cênicas da UFSC