História como mito: argentinos e as Ilhas Malvinas — Alexandre Fernandez Vaz

História como mito: argentinos e as Ilhas Malvinas[1]

Alexandre Fernandez Vaz*

Malvinas

 

Cristina

Avanti Morocha! – algo como Dá-lhe Morena! – dizia um cartaz pregado, em fevereiro último, na fachada de uma quitandaem La Boca, Buenos Aires, antigo bairro portuário e boêmio, costumeiramente coalhado de turistas brasileiros em busca do “autêntico” tango. A imagem trazia a presidente argentina Cristina Elisabet Fernández de Kirchner de perfil, elegantemente vestida, passando em revista uma sequência de bandeiras de países membros da ONU. O slogan é título de uma canção bastante popularizada pela interpretação do grupo Caballeros dela Quema e foi tema da campanha de Cristina à presidência. Éem La Boca, aliás, que fica o mítico estádioLa Bombonera, do Boca Juniors, time de futebol mais popular do país, cuja torcida leva a campo, jogo após jogo, uma bandeira peronista, a do Partido Justicialista, de Cristina, mas também de uma parte de seus opositores, o que dá mostra da complexa cultura política local.

Como costuma acontecer, o clima na Argentina tem sido efervescente nas ruas, nos movimentos sociais, na imprensa, no debate intelectual. O forte apoio de várias entidades à Cristina combina-se com a enorme oposição que os grandes conglomerados jornalísticos fazem a ela. A presidente tem o suporte, por exemplo, da Central Geral dos Trabalhadores e da Associação das Mães da Praça de Maio, mas recebe fortíssimos e contínuos ataques dos jornais El Clarín eLa Nación.

No campo intelectual, as forças se dividem em clima de superclássico entre Boca Juniors x River Plate, pendendo a força, no entanto, para os kirchneristas do Espacio Carta Abierta, como Horacio González, diretor da Biblioteca Nacional. Ele é um “intelectual K”, ao qual se opõe, por exemplo, Beatriz Sarlo, uma das grandes ensaístas da América Latina e colunista do diário Clarín, signatária do movimento Plataforma 2012. Todos – ensaísta, jornal e movimento – são notadamente “anti-K”.

Malvinas em disputa

Foi também durante o mês de fevereiro que a diplomacia argentina, sob a ostensiva liderança da presidente, elevou o tom da disputa que o país há quase dois séculos trava com a Grã-Bretanha pela soberania das Ilhas Malvinas. Em meio ao fogo cruzado de acusações mútuas, os britânicos chamaram a pretensão argentina de “colonialista” – o que soou ridiculamente tolo, vindo de quem veio – enquanto nossos vizinhos denunciavam que o Atlântico Sul estaria sendo militarizado pelos ingleses, com a possível instalação de armamentos capazes até mesmo de alcançar o Brasil.

A ofensiva retórica portenha recolocava na agenda internacional o traumático tema, nas vésperas do aniversário de trinta anos da ocupação argentina das Falklands, completados há pouco mais de dois meses. Não deixa de ser irônico que a disputa tenha se reaquecido no momento em que estreava nos cines bonaerenses o filme A Dama de Ferro,em que Meryl Streepinterpreta Margaret Thatcher, a primeira-ministra inglesa que mandou responder duramente à ofensiva, assim que a bandeira argentina foi hasteadaem Port Stanley, capital do arquipélago, logo rebatizada de Puerto Argentino. Ironia que se completa porque a Inglaterra é, para a aristocrática burguesia dos vizinhos, um modelo, seja na relação que seu maior escritor, Jorge Luis Borges, teve com a língua inglesa, seja na presença de artefatos culturais como o rúgbi e o hóquei na grama, esportes britânicos muito praticados na margem direita do Prata.

Se há divergências quanto à Cristina e seu governo, uma quase unanimidade argentina é, sem sombra de dúvida, a opinião sobre a legitimidade da reclamação de soberania sobre as Malvinas. Horácio González, o “intelectual K”, esteve recentemente na UFSC, em atividade conjunta da chancelaria argentina com a Secretaria de Cultura e Arte, o Núcleo de Estudos Literários e Culturais e o Núcleo Onetti de Estudos Literários Latino-americanos. Na conferência, intitulada Literatura e política: a partir de Malvinas – parte da série Malvinas, mar e meio-ambiente – ele, conclamando a solidariedade sul-americana, afirmava simultaneamente a disposição em discutir politicamente com a Inglaterra e a comunidade internacional os destinos do Arquipélago, e o caráter inquestionável do direito argentino sobre ele. Por paradoxal que seja, trata-se de uma posição da qual dificilmente os argentinos podem abrir mão. Se uma disputa armada está completamente fora do atual horizonte de possibilidades – a Argentina renunciou, na década retrasada, à recuperação das Ilhas pela força –  a presença simbólica – e mesmo mitológica – das Malvinas no imaginário do país é enorme, impedindo qualquer tipo de ponderação ao que se supõe ser um direito nato.

Tornar a contenda pelas Malvinas um problema de soberania continental é uma das estratégias importantes dos argentinos. De fato, o Brasil tem agido diplomaticamente a favor da causa, ainda que discretamente. De qualquer forma, junto com o Uruguai e outros vizinhos, não permite que atraquem em seu território embarcações com bandeira das Falklands.

Mito

Las Malvinas siempre fueron, son y siempre serán argentinas! Eso aprendí en la escuela! dizia, não sem boa dose de ironia, uma velha senhora que morava no centro de Florianópolis, naqueles primeiros dias de abril de 1982, pouco depois do discurso de Leopoldo Fortunato Galtiere, general que liderava a junta ditatorial argentina, que anunciou do balcão da Casa Rosada a reconquista das Ilhas. Vivendo havia muitos anos no Brasil, mas tornada adulta no país natal, minha avó foi formada na escola pública argentina, dispositivo que criou uma nação e incorporou levas e levas de imigrantes em um projeto modernizador. Formou-se ainda Maestra, o que seria hoje professora dos anos inicias do ensino fundamental, uma das máquinas culturais da nação, como disse Beatriz Sarlo. Opositora ferrenha da ditadura, crítica severa da maneira com que as Ilhas voltavam para o domínio argentino, repetia, no entanto, como uma prece, que as Malvinas son nuestras.

Não há razões históricas que possam sustentar, em definitivo, o direito sobre as Ilhas, ainda que a proximidade territorial e a forma como se deram as disputas seculares entre Espanha e Inglaterra, e mais recentemente entre esta e a Argentina, sejam argumentos importantes em favor dos reclamantes. Interessa, no entanto, o enorme caráter de mobilização em torno delas, que aparece substantivado na forma de um mito nostálgico de algo que teria sido perdido. Na escola se ensina que as Ilhas são parte do território nacional, compondo a província Tierra del Fuego, Antártida y Islas del Atlántico Sur; na imprensa diária, a previsão do tempo anuncia as condições climáticas de todas as províncias, sem esquecer de dizer das nevascas e ventanias no arquipélago.

Recentemente, o governo argentino divulgou uma peça publicitária de um minuto e meio, aludindo os Jogos Olímpicos que proximamente se realizarão em Londres. Nelaaparece um importante atleta do país, Fernando Zylberberg, destaque da equipe olímpica de hóquei sobre a grama, treinando nas Ilhas. Em estilo que lembra um pouco Rocky, o Lutador, Zylberberg exercita-se junto a vários dos marcos da presença inglesa, como o pub, a sede do único jornal, a cabine telefônica vermelha. Ao atleta fatigado, que acariciara entre as mãos a areia provinda do solo (pátrio), sucedem-se três quadros em que despontam as seguintes frases: Para competir en suelo inglés, entrenamos en suelo argentino.; Homenaje a los caídos y ex combatientes de Malvinas. A peça publicitária, que evidentemente foi interpretada pelos ingleses como provocação, ainda mais porque obviamente não tivera sua produção autorizada, retoma o esporte como representação simbólica da guerra.

Também no documentário de Emil Kusturika sobre Diego Maradona (Maradona by Kusturika) a representação do conflito entre nações por meio do esporte no contexto beligerante entre argentinos e britânicos, é extensamente desenvolvida. Em meio a ironias diversas e caricaturas de Margareth Thatcher, são relembrados os dois gols do ex-jogador contra a equipe da Inglaterra na Copa do Mundo de 1986, quando os países estavam com relações diplomáticas rompidas. Um dos tentos, erroneamente confirmado pela arbitragem, ficou conhecido por ter sido feito, segundo Maradona, com la mano de Diós; o outro foi o mais bonito jamais vistoem um Mundial, com o grande futebolista superando cinco oponentes antes de alcançar a meta.

Trinta anos

Três décadas depois da contenda militar, há um duplo mal-estar entre os argentinos. Pela óbvia perda do território, claro, mas também pela forma com que o êxtase tomou conta de quase todos, naquele abril, em pleno declínio da ditadura militar que dominava o país desde 1976. A massa que recebeu com júbilo o discurso de Galtieri foi a mesma que poucos dias antes havia marchado pelo centro da capital manifestando-se contra a ditadura. A ocupação do arquipélago pegou não apenas a comunidade internacional de surpresa, mas os próprios argentinos, que ficaram eufóricos com a boa nova. Amigos meus que faziam a colimba, como lá é chamado o serviço militar, preparavam-se para uma guerra contra o Chile, prometida desde as escaramuças na fronteira sul dos dois países. Dormiram com um inimigo, acordaram com outro, aquartelados para um possível deslocamento a Comodoro Rivadavia, caserna mais avançada em território continental, e dali possivelmente para as Ilhas. Por sorte, não chegaram a viajar. Quem visita o Parque Malvinas,em La Plata, capital da província de Buenos Aires, onde ficava o regimento daquela cidade que forneceu soldados para a guerra, ou qualquer outro dos monumentos que lembram os mortos nas Ilhas, não fica menos que estarrecido com as centenas de rostos juvenis que surgem nas fotos. Meninos imberbes, com cara de que iam ao cinema ou ao futebol, namorar, não fosse pelo pânico ou pelo imbecil nacionalismo estampados em cada rosto. Não eram soldados preparados para enfrentar, sob o frio antártico, o poderio bélico britânico.

O governo de Cristina não fez ainda a devida crítica à desastrada e criminosa aventura dos militares, embora se esmere, com toda a razão, em fazer não esquecer os muitos crimes contra a humanidade perpetrados por eles. O atual governo faz gestos no sentido de valorizar a memória daqueles que combateram nas Ilhas, mas não pode criticar duramente, em bloco, a ação daquele momento, já que isso soaria como desacordo à aspiração pelas Malvinas. É uma pena.

Esse papel tem sido feito pela literatura e pelo cinema. Como no delicado filme Um cuento chino, de Sebastián Borensztein. Nele a obsessão torna-se a única resposta possível para o trauma da guerra, apenas superado pela insubstituível experiência da amizade. É também o caso, entre tantos, de romances de Martín Kohan, em que o tema aparece discretamente, mas com ironia e amargor, na forma de um mal-estar algo difícil de ser pronunciado. Em Dos veces junio, o fim da Guerra das Malvinas atualiza o horror de quatro anos antes, quando também em junho a Argentina sediou o Mundial de Futebol; em Cuentas Pendientes é de desespero contido o sentimento da mãe que recebe cartões postais em branco, ou quase assim, do filho aquarteladoem Rivadavia. Se da guerra se volta calado, como disse Walter Benjamin, o garoto que não chega a ir para as Malvinas antecipa a mudez dos incapacitados de narrar.

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Supõe-se que Galtieri estava embriagado quando pronunciou o discurso de “reconquista” das Malvinas, como já acontecera outras vezes em ocasiões oficiais. Não sei se estava, mas, final das contas, não era preciso o consumo de álcool para tamanho desvario e obscenidade, se considerarmos o caráter criminoso, inominável, terrorista, do regime que os militares instalaram na Argentina. O crime de levar o país a uma guerra estúpida foi apenas o corolário da insanidade que durou sete anos. Os argentinos, no entanto, levaram vários dos seus ditadores ao julgamento e à condenação. Poderíamos, nós, brasileiros, tomá-los como exemplo.

*Professor da UFSC; pesquisador do CNPq – alexfvaz@uol.com.br


[1] Uma versão resumida deste texto foi publicada no suplemento Anexo Ideias, de A Notícia, em 15.02.2012.