Pirandello: O humor e a Obra – Aurora Bernardini

Florianópolis, 06 de junho de 2011

PIRANDELLO: O HUMOR E A OBRA

Por Aurora Bernardini*

O ensaio sobre O Humorismo que abre a trilogia, publicada pela Editora Pespectiva de S. Paulo em 1999, “Pirandello: Do Teatro no Teatro” – assim caracterizada por Sábato Magaldi no significativo texto introdutório: “Princípios Estéticos Desentranhados Das Peças De Pirandello Sobre O Teatro”— , curiosa e reciprocamente entranha, em suas diversas considerações e em seus numerosos exemplos, não apenas os princípios estéticos que regem as peças metateatrais do dramaturgo mas, de uma maneira mais ampla, as características gerais de sua poética . Escrito um pouco à moda de “O que é a arte” de Tolstói (talvez por isso a Editora Experimento de São Paulo tenha incluído em 1996, na mesma coleção em que figura o trabalho do russo, o ensaio de Pirandello ), “O Humorismo” começa como uma ampla pesquisa, publicada primeiramente em 1908, mas retomada e republicada em 1920, destinada aos alunos da Universidade de Magistério de Roma , onde Pirandello (1867-1936) lecionava na época. Dissemos “começa” porque o autor, após estudar a fortuna do termo “humor” desde a antiguidade greco-latina, passando pela Alemanha, França, Inglaterra e necessariamente pela Itália – e aqui o texto se impõe como subsídio didático, extremamente atual e passível de ser comparado ao “Le rire” (1899), de Bergson, ou à “Comicidade e riso” de Propp (Ed. Ática, 1992) – , desemboca na nossa época e na conclusão de que “é a natureza do homem moderno a que melhor o caracteriza”.
A essa altura a discussão torna-se sobremaneira interessante, arejada por saborosas digressões (Taine e o vinho francês ), acirrada por polêmicas ( Croce e a obra de arte como receita de bolo) e secundada pela tradução ágil que J. Guinsburg fez para a edição da Perspectiva, atenta em manter inclusive o tom “humorístico” do ensaio com uma série de vocábulos insólitos: “acutilar”, “empachado”,”manipresto”, “escalinata” etc, que aqui podem ter função estilística.
Deixando de lado a possibilidade de se tomar o humorismo no sentido amplo, abarcando diacronicamente todas as espécies de comicidade, mas focalizando-o em seu sentido restrito, como uma série de expressões artísticas resultantes de um processo psicológico específico que tende a provocar o estado de espírito definido por Giordano Bruno como “in tristitia hilaris, in hilaritate tristis” (“na tristeza alegre, na alegria triste”), Pirandello explica como ele se dá: enquanto na concepção de uma obra de arte qualquer a reflexão — responsável pela transformação da percepção da obra em “sentimento” – permanece invisível, só aparecendo à medida que a obra se faz, para criticá-la, na concepção da obra de arte humorística a reflexão não se esconde; ela enfrenta continuamente o sentimento e o decompõe. Desta decomposição emana o “sentimento do contrário”. Note-se que para Pirandello todas as “ficções da alma” ( fingimentos) são matéria do humorismo. Mas o fingimento deve ser criação do sentimento e não apenas criação verbal ou retórica, senão se transforma em “ironia”, que é a inimiga do humorismo.
Embora fator dominante do humorismo, o sentimento do contrário não o resume. Há outros elementos correlacionados, alguns dos quais vamos exemplificar aqui em função de seu aparecimento nas peças da trilogia escolhida: “Seis Personagens à Procura de um Autor” (encenada pela primeira vez em 1921, em Roma),  “Esta Noite se representa de Improviso” (Turim, 1930) e “Cada Um a Seu Modo” (Milão, 1924). Em uma de suas últimas entrevistas (parcialmente publicada no J. T. de 13/5/95) Leonardo Sciascia, siciliano e escritor como Pirandello, ao perguntarem-lhe qual seria segundo ele o traço característico da obra do ilustre conterrâneo, respondeu sem pestanejar: ” o ‘imponderável’!” Pois é justamente o tratamento dado ao imponderável um dos traços que ligam as três obras entre si, interpretado por Pirandello como ” o imprevisto que há na vida” e ” o abismo d’alma” – o imprevisto que há no homem.
Ambos os tipos estão circunstanciados nas últimas duas páginas do ensaio. Imprevisto na vida, é o resultado daquelas pequenas” vicissitudes ordinárias, materialidades da vida, particularidades comuns”, em geral postas de lado ou simplificadas pelos autores não humoristas e que o humorista “entesoura”, que depois obrigam a ações , engendram pensamentos e sentimentos contrários àquela lógica harmoniosa dos fatos e dos caracteres por eles proposta. E o abismo que há na alma? “Acaso nós não sentimos deslizar dentro de nós, por vezes, pensamentos estranhos, quase relâmpagos de loucura, pensamentos inconsequentes, inconfessáveis inclusive a nós mesmos, como surgidos deveras de uma alma diversa daquela que reconhecemos como nossa? (…) daí aquilo que tem de decomposto, de desligado, de caprichoso, todas aquelas digressões que se notam na obra humorística, em oposição à estrutura ordenada, à ‘composição’ da obra de arte em geral”.
Em “Seis Personagens à Procura de um Autor”, por exemplo, onde, como sugere o título, seis personagens recusadas por seu autor querem representar seu drama, sem mediação dos atores, uma delas, o “Pai”, quando sobe ao palco, tenta explicar o “azar” que o persegue: “…quando em alguns de nossos atos, por um caso infelicíssimo, ficamos de repente como que enganchados e suspensos; apercebemo-nos, quero dizer, do fato de não estarmos por inteiro naquele ato, e que portanto seria uma injustiça atroz sermos julgados só por aquilo, mantendo-nos enganchados e suspensos, no pelourino, por uma existência inteira (…)” . Isso faz com que o “Pai”, premido pela “injustiça” do acaso, desvele o drama: “O drama para mim, está todo aí, senhor , na consciência que tenho de que cada um de nós – veja – julga ser ‘um’ mas na verdade é ‘muitos’, senhor, ‘muitos’, segundo todas as possibilidades de ser que estão em nós — ‘um’ com este, ‘um’ com aquele — diversíssimos! E com a ilusão, no entanto, de ser sempre ‘um para todos’, e sempre este ‘um’ que acreditamos ser, a cada ato nosso (…).”
Em “Cada Um a seu Modo”, há a mesma consciência de se ser “muitos”, tanto para os que falam quanto para os que ouvem ( incomunicabilidade?), e há a mesma variabilidade de juízo, mas o acaso , levando o drama representado no palco para junto das pessoas reais, como que as contaminando, põe em evidência um outro elemento-chave de Pirandello: o que Sábato Magaldi chamou de “binômio vida-arte” e que Adriano Tilgher, o mais importante crítico do dramaturgo nos anos 1919-26, chamou de antítese ( não dialética) “Vida-Forma”.
Na peça “Esta Noite se Representa de Improviso”, ao mesmo tempo em que as duas filhinhas pensam que se trata da peça que a mãe está representando para elas e o imponderável — desta vez, fatal — quer que ela morra de verdade, transformando-a de atriz em personagem, trava-se, no entanto, como nas outras duas peças , um conflito entre os diferentes “actantes” envolvidos no teatro: entre o ator transformado em personagem e o diretor do espetáculo, nesta; entre os espectadores, as personagens , os atores e o autor em “Cada Um a seu Modo”; entre personagens, atores e diretor em “Seis Personagens”. “A escritura teatral de Pirandello sempre me pareceu uma armadilha para atores” – diz Giorgio Albertazzi numa entrevista de 1981 — : ” todas aquelas rubricas minuciosas, repletas de vírgulas, travessões, parênteses, querendo delimitar as tiradas já pré-digeridas teatralmente são uma armadilha do autor para condicionar o ator à ‘simples leitura’ do texto, impedindo qualquer possibilidade de interpretação (…). Comecei então uma operação de desmonte da linguagem, sem alterar nem a situação nem os signos, mas trabalhando o vocabulário e o som para tentar sair da armadilha.”   Tendo encontrado o jeito de salvar o ator, como fica então a equação do binômio texto/espetáculo? Talvez nos termos propostos pelo dr. Hinkfuss, o diretor do espetáculo que, no início de “Esta Noite se Representa de Improviso”, explica : ” a obra do escritor, ei-la aqui. ( Mostra o rolo de papel.) O que faço com ela? Tomo-a como matéria de minha criação cênica e dela me sirvo, como me sirvo da competência dos atores escolhidos para representar os papéis de acordo com a interpretação que terei feito deles (…). Em outro teatro, com outros atores e outros cenários, com outras disposições e outra iluminação, vocês devem admitir que a criação seria certamente outra. (…). A obra do escritor termina no ponto exato em que ele acaba de escrever a última palavra.”
Curioso e aparentemente contraditório é o fato que já desde 1925, antes portanto da criação de “Esta Noite se Representa de Improviso”, Pirandello tenha sentido a necessidade de intervir diretamente na realização cênica da obra teatral: em 1930 ele já era Diretor Artístico da “Compagnia del Teatro d’Arte”, fundada por seu filho e um grupo de jovens autores. Um último comentário, também contraditório, sobre um episódio da vida de Pirandello (aludido no meritório trabalho de Annateresa e Mariarosaria Fabris, “Presença de Pirandello no Brasil”, que fecha o volume), no qual o dramaturgo, como o injustiçado pai das Seis Personagens, volta e meia se arrisca a ficar “enganchado”: se é verdadeiro o fato de sua adesão em 1924 ao partido fascista, são também verdadeiras suas inquietações, dúvidas e mesmo sua revolta posterior em relação ao regime ( Sciascia, em “Pirandello e a Sicilia” de 1968, sugere que se leia, a este respeito, a novela “Há alguém que ri” de 1934 ou , do mesmo ano, a peça “A fábula do filho trocado”). “Last but not least”, sua morte paupérrima (” O carro, o cavalo, o cocheiro, nada mais”), lembrada por Gianni Ratto em seu prefácio a “Henrique IV e Pirandello” ( EDUSP 1990), decepcionando mais uma vez “o Partido, que perdia a oportunidade de lucrar com um defunto daquela dimensão”.

*Professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP