Jarry, Vanguardas, Ubus-Rei e Brasil – Marina Veshagem

Florianópolis, 06 de junho de 2011

JARRY, VANGUARDAS, UBUS-REI E BRASIL

Por Marina Veshagem*

Quem poderia imaginar que o precursor de tendências como surrealismo e dadaísmo e o teatro do absurdo morreu aos 34, após anos bebendo absinto, foi pobre e pouco reconhecido em vida? Ao que parece, todas essas condições atreladas à vida do escritor foram escolhas tomadas por ele próprio; quer dizer, sua vontade foi viver ao contrário do que previu para seu personagem Ubu Pai. O personagem central da peça de “Ubu Rei”, uma das precursoras do teatro do absurdo, foi criado por Alfred Jarry, aos 15 anos, para ridicularizar um professor. Ubu Pai tem como único objetivo atingir o poder e é a caricatura do poder arbitrário, vingativo, covarde, além de a figura alimentar uma enorme barriga, não tomar banho, mas ser extremamente popular. Os movimentos nascidos com a obra de Jarry foram vanguardas inspiradoras também no Brasil e suas marcas podem ser notadas ainda hoje.

“Ubu Rei” é uma compilação de diversos textos escritos por Alfred Jarry, a partir daquele primeiro elaborado ainda na adolescência. A peça conta a história do personagem que assassina o rei da Polônia e assume o poder, deixa o povo, num primeiro momento, livre dos impostos e liquida o que considera a oposição: acaba com os nobres, o poder judiciário e os financistas. Talvez o texto tenha se tornado referência para tantas tendências europeias, entre outras razões, principalmente pela mistura de estilos, numa verdadeira síntese dos gêneros teatrais. “Encontram-se na peça, conciliadas, as antíteses fundamentais da querela artística – a epopeia e a paródia, a farsa e a tragédia, o sério e o grotesco, numa espantosa antevisão de todos os caminhos do teatro moderno”, explica Sábato Magaldi em “O Texto no Teatro”. Magaldi ainda aponta indícios dessa colocação, como as características do teatro épico: a ausência de lugar privilegiado para a ação, com cenários múltiplos e personagens em várias situações. Outras evidências apontam para a farsa, como caricaturas shakespearianas, por exemplo quando Mãe Ubu instiga Pai Ubu a se apossar do trono, referência a Macbeth.

Otto Maria Carpeaux afirma no prefácio “Happening Ubu”, da peça “Ubu Rei” que “como mestre da negação agressiva, Jarry está menos perto do surrealismo do que de um outro movimento, eclipsado por este, talvez porque não nascera em solo francês: Jarry é, na verdade, o Grande Precursos de Dada”. Como grande vanguarda europeia, surgida em 1915 com o princípio de destruição dos valores burgueses e da arte tradicional, o dadaísmo teve grande influência no Brasil principalmente a partir da Semana de Arte Moderna, de 1922. Mais adiante, vimos influências diretas, como a montagem de “Ubu Rei” pelo grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, em 1975. Na encenação, os atores vestiam-se de palhaços, com figurinos coloridos e maquiagem desenhada e adotavam a linguagem circense. Já em 1985, Cacá Rosset monta “UBU, Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes”, baseado na mesma obra.

Outras influências que podem ser notadas no Brasil têm relação ainda com a ‘Patafísica, que seria a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções, também criada por Alfred Jarry. Trata-se se uma forma anárquica e nonsense de lidar com a realidade que contou inclusive com a criação de um Colégio em 1948. Saindo da vanguarda europeia no começo do século XX e chegando à literatura brasileira infantil nos anos dois mil, podemos ver o exemplo de Ruth Rocha. Em 2003, a escritora lançou dois livros “O rei que não sabia de nada” e “Sapo Vira Rei, Vira Sapo”. Ambos contam a história de reis bem próximos de Ubu e que parecem até serem exemplos da ‘Patafísica. O trecho de “O rei que não sabia de nada” exemplifica tal provocação: “A diversão do reizinho era fazer leis e mais leis. E as leis que ele fazia eram as mais absurdas do mundo. Olha só esta lei: ‘Fica terminantemente proibido cortar a unha do dedão do pé direito em noite de lua cheia! ’. (…) Outra lei que ele fez: ‘É proibido dormir de gorro na primeira quarta-feira do mês’”.

A partir de um exemplo não muito óbvio, podemos notar que a obra de Jarry nada mais reflete do que realidades que podemos observar no Brasil e em diversos países da América Latina, que viveram e vivem ditaduras ou falsas democracias. Jarry foi visionário tanto no formato e tendências, quanto na previsão de caricaturas de líderes que ainda vigoram até hoje.
* Jornalista, aluna do Curso de Artes Cênicas da UFSC