As vítimas de Ionesco – Bruno Brandão Daniel
AS VÍTIMAS DE IONESCO
Bruno Brandão Daniel*
Em meados dos anos 50, logo após o fim da 2ª Guerra Mundial, nomes como o irlandês Samuel Beckett (1906-1989), o russo Arthur Adamov (1908-1970), o francês Jean Genet (1910-1986) e Eugène Ionesco (1909-1994), este um romeno radicado na França, criaram o que Martin Esslin definiu como Teatro do Absurdo.
Tal movimento dramatúrgico caracteriza-se por ter rompido padrões tanto estéticos quanto temáticos na retratação da existência humana, porém “desistiu de falar sobre o absurdo da condição humana; ele apenas o representa tal como existe”. (ESSLIN, 1968, p.21).
Deste modo, o teatro do absurdo refletia o contexto histórico, já que a população vivia uma época traumática e isso seria refletido nas artes, por serem consideradas elementos de expressão.
Em termos de um novo conceito de arte, o teatro do absurdo revela-o como uma expressão da falta de explicação sobre o mundo, tal como mostra Esslin:
“Ele encara corajosamente o fato de não ser mais possível àqueles para quem o mundo perdeu sua explicação e significação central continuar a aceitar formas de artes baseadas na preservação de critérios e conceitos que perderam sua validade, isto é, baseadas na possibilidade de se conhecer leis de conduta e valores absolutos decorrentes de uma firme base de certeza revelada sobre o objetivo do homem no universo. ” (ESSLIN, 1968, p.346)
Apesar de cada dramaturgo possuir sua individualidade, eles contêm muitos elementos comuns em suas obras, como: a falta de enredo, o desenvolvimento, a caracterização dos personagens, o suspense e a presença do nonsense.
Um dos maiores destaques do Teatro do Absurdo é a obra A Cantora Careca, do romeno Eugène Ionesco, cuja estreia ocorreu em 11 de maio de 1950 no teatro francês Théâtre des Noctambules. A reação do público causou surpresa a Ionesco, pois o público pôs-se a rir do que ele mesmo considerava como “Tragédia da linguagem e da condição humana”.
Nascido em Slatina, Romênia, aos 26 de novembro de 1912, de pai romeno e mãe francesa, foi ainda bebê para a França, tendo como sua primeira língua o francês. Após viver com a mãe e a irmã, foi forçado, por volta dos 13 anos de idade, a mudar-se para a Romênia com o pai, que havia conseguido sua guarda.
Licenciou-se em Letras pela Universidade de Bucareste, passando posteriormente a lecionar em um liceu naquela cidade. Já em 1938, obteve um subsídio do governo para ir à França a fim de fazer uma pesquisa sobre “os temas do pecado e da morte na poesia francesa desde Baudelaire (ESSLIN, 1968, p.121).
Diz-se que ele jamais escreveu qualquer linha sobre este estudo e acabou radicando-se na França quando desta ida. Durante a Segunda Guerra Mundial, consta que mudou-se de Paris para o sul da França, onde permaneceu com a família até o fim da mesma. De volta à Paris, o máximo que conseguiu viver de seu sonho com as letras foi trabalhar no setor de produção de uma editora, o que lhe afastava cada vez mais das palavras. O amante das letras e apaixonado por escrever poesia via sua situação financeira ficar cada dia pior, pois sentia na pele as dificuldades e a escassez do cenário pós-guerra.
Segundo Esslin, sua noção não expressa a ideia da absurdidade da vida, mas a maneira pela qual os autores a apresentam:
“Uma sensação similar de falta de sentido da vida, da desvalorização inevitável de valores, puridade e propósito é também o tema de muitos dos trabalhos de dramaturgos como Giraudoux, Anouilh, Salacrou, Sartre e Camus. Ainda assim, estes escritores se diferem dos dramaturgos do Absurdo em um importante aspecto: apresentam seu senso da irracionalidade da condição humana na forma de uma razão altamente lúcida e logicamente construída, enquanto o Teatro do Absurdo busca expressar seu senso de uma abordagem racional através do amplo abandono…” (ESSLIN, 1968, p.24)
Ionesco extrapola as linhas de nosso cotidiano em suas obras, atingindo os limiares da insanidade, como em “A Lição”, na qual um aluno imita o discurso de um professor, ou em “As Cadeiras”, onde um personagem conta todos os dias a mesma história, ou ainda em “Rinocerontes”, onde os cidadãos da cidade repetem clichês populares sem julgar seu significado. O que dizer ainda de um conto no qual existe uma família em que todos os personagens chamam-se Jaqueline, independentemente de seu gênero?
Nas palavras do próprio dramaturgo, seu teatro “é um teatro da irrisão. Não uma determinada sociedade que parece irrisória. É o homem” (2006, p.190) . O conceito de absurdo encontra críticas, porém, a absurdidade vem do fato da oposição de suas obras às peças realistas da época. Ionesco diferencia-se de outros colegas daquela época como Samuel Beckett e Jean Genet, visto que estes dois escreviam material bem semelhante entre si, apesar de cada um ter estabelecido seu próprio caminho. O próprio Ionesco chega a nomear seu teatro de anti-teatro.
E da sua iniciativa de aprender inglês veio sua primeira peça, A Cantora Careca, baseada em sua análise textual das lições do manual de inglês que havia adquirido para tais estudos chamado L’Anglais Sans Peine (O Inglês Sem Esforço), do método Assimil. Foi o título do manual que Ionesco primeiramente utilizou para a peça, passando para L’Heure Anglaise (A Hora Inglesa) e posteriormente A Cantora Careca. Ao ler a peça a amigos, Ionesco ficou surpreso, pois eles acharam engraçada a obra, embora ele achasse ter escrito algo bem mais sério, algo sobre a “tragédia da linguagem”.
Seu estudo consistia em transcrever frases inteiras com o objetivo de decorá-las, sendo que tal atividade foi aos poucos estimulando Ionesco a refletir e constatar fatos do cotidiano tão banais e presentes em nosso dia a dia que, porém, ele não dera conta antes. Tais características tão pitorescas lhe chamaram a atenção, de modo que o levou a escrever a peça.
A indignação de Ionesco com este tipo de linguagem vazia de seu manual de estudos serviu tanto para o bem – dando-lhe inspiração para o drama – quanto para o mal – desmotivando o aprendizado do idioma. Ao longo das lições, à medida que tornavam-se ainda mais complexas, o casal que surge – Mr. e Mrs. Smith – é o claro exemplo das situações que Ionesco julgava cômicas, nas quais os casais informavam-se mutuamente sobre fatos óbvios e conhecimento de todos. Aquelas frases feitas acabavam transformando-se em caricaturas e paródias, com o esfacelamento da linguagem por meio de fragmentos de palavras. (ESSLIN, 1968, p.123)
Destas situações, originou-se A Cantora Careca, bem como a própria carreira do dramaturgo, que dedicou-se até praticamente o final da vida, em 28 de março de 1994, às letras. Sua irreverência esconde um pouco de toda sua vivência marcada por guerras mundiais e uma guerra familiar, o que o fez conceber que todo poder é despótico.
A obra “Vítimas do Dever” (Victimes du Devoir) consiste em apenas um ato, tendo sido criada em 1953 no teatro do Quartier Latin, em Paris, vindo a ser publicada no ano seguinte.
Ionesco utiliza vários recursos de repetição, que são uma de suas características mais tangentes. Tal artifício caracteriza os comportamentos bizarros de seus personagens, contradizendo a vida e seus rituais. Podemos ver isso através do velho em “As Cadeiras”, que repete sempre a mesma história; do professor em “A Lição”, que faz o mesmo, não variando o conteúdo de sua aula. Já em “Vítimas do Dever”, o Policial persegue Chubert de modo quase que involuntário, porém insistente, repetitivo, reticente. Nestas obras, os comportamentos descritos pelo dramaturgo ganham uma natureza praticamente patológica.
Para muitos estudiosos, essa obra é considerada a mais autobiográfica de Ionesco. Ele costumava dizer que o processo de escrever essa peça consistia em rasgar suas entranhas e tornar públicos todas suas mais profundas dúvidas e medos. Começando pela obsessão de Chubert pelo teatro e a imagem que ele retrata de ter sua mãe pela mão enquanto caminhava pela Rua Blomet. O abandono por parte do pai e, consequentemente, sua ausência na vida, estão refletidos no jeito paternal como ele encara o detetive. A relação conturbada de seus pais também tem lugar, como a tentativa de envenenamento de Madeleine, que remonta a um fato semelhante, quando a sua mãe fez o mesmo para tentar sensibilizar seu pai.
Ionesco abandona todos os pudores e faz essa viagem ao seu passado, como o que poderia ser tanto uma autoanálise quanto uma tentativa de exorcizar esses medos e angústias. Quem está acostumado a não segurar o riso logo nos primeiros trechos de “A Cantora Careca”, ao participar deste processo de regressão, o leitor/espectador encontrará uma passagem para conhecer um lado menos cômico, porém notório para conhecer este gênio da dramaturgia.
Referências :
BESSON-LEAUD, Danièle, LAGARDE, André et MICHARD, Laurent. Collection littéraire Lagarde et Michard – XXe siècle. Paris: Bordas, 1993.
ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
IONESCO, Eugène. Notes et contre-notes. Paris: Gallimard, 2006. Collection Folio Essais.
________________. Victimes du Devoir. Paris: Gallimard, 1991.
*Mestrando na PGET/UFSC