VÍTIMAS DO DEVER – Eugène Ionesco – Tradução: Bruno Brandão Daniel

 

VÍTIMAS DO DEVER

Eugène Ionesco

Tradução de Bruno Brandão Daniel

 

PERSONAGENS

 

CHUBERT

MADELEINE

O POLICIAL

NICOLAS D’EU

A DAMA

MALLOT COM UM T

 

O pseudodrama Vítimas do Dever foi criado no Teatro do Quartier Latin, em fevereiro de 1953, numa apresentação de Jacques Mauclair.

Música de Pauline Campiche. Cenário de René Allio.

Nas reapresentações de 1954,e então de 1959, no Teatro de Babylone e Studio de Champs-Élysées, os cenários foram de Jacques Noël. Um vermelho carmesim foi a cor dominante.

Interior no estilo da pequena-burguesia. Chubert, sentado numa poltrona próxima à mesa, lê seu jornal. Sua mulher, Madeleine, em uma cadeira diante a mesa, remenda as meias. Silêncio.

MADELEINE, interrompendo sua atividade: O que há de novo no jornal?

CHUBERT: Nada demais. Cometas, uma mudança cósmica em algum lugar do universo. Quase nada. As multas para os vizinhos por seus cães fazerem sujeira na calçada…

MADELEINE: Bem feito! É muito desagradável quando se pisa em cima.

CHUBERT: E para as pessoas que moram no térreo, quando abrem suas janelas de manhã, elas acabam vendo isso e ficando nervosas o dia inteiro.

MADELEINE: Elas são sensíveis demais.

CHUBERT: É a nervosidade da época. O homem moderno perdeu sua serenidade de outrora. (Silêncio). Ah, há também um comunicado.

MADELEINE: Que comunicado?

CHUBERT: É bem interessante. A administração preconiza, para os habitantes das grandes cidades, o desprendimento. Dizem que este é o único meio que nos resta para remediar a crise econômica, o desequilíbrio espiritual e as vergonhas da existência.

MADELEINE: Todo o resto já foi tentado. Nada foi dado. Não é talvez a culpa de alguém.

CHUBERT: No momento, a Administração não faz nada mais do que recomendar amigavelmente esta solução suprema. Não sejamos tolos: sabemos perfeitamente que a recomendação sempre se torna uma ordem.

MADELEINE: Você sempre se apressa em generalizar!

CHUBERT: Sabemos que as sugestões bruscamente tomam a forma de regulamento, de leis severas.

MADELEINE: O que você deseja, meu pobre amigo? A lei é necessária, sendo necessária e indispensável, ela é boa, e tudo que é bom é agradável. É de fato muito agradável obedecer às leis, ser um bom cidadão, cumprir com seu dever, possuir uma consciência pura!

CHUBERT: Sim, Madeleine. No fundo, é você quem tem razão. A lei tem seu lado bom.

MADELEINE: Evidentemente.

CHUBERT: Sim, sim. A renúncia traz a importante vantagem de ser, ao mesmo tempo, política e mística. Ela dá frutos nos dois planos.

MADELEINE: Isto permite matar dois coelhos com uma cajadada só.

CHUBERT: É o que a faz interessante.

MADELEINE: Você consegue ver?

CHUBERT: Aliás, se me lembro das aulas de história, este sistema administrativo, o sistema do desapego, já foi testado já há três séculos, e então há cinco séculos, e também há dezenove séculos, e também no ano passado…

MADELEINE: Não há nada de novo debaixo do sol!

CHUBERT: … Com sucesso, sobre populações inteiras, nas metrópoles, nos campos (ele se levanta), sobre as nações, as nações como a nossa!

MADELEINE: Sente aí!

 

  Chubert se senta.

 

CHUBERT, sentado: Porém a verdade é que isto demanda o sacrifício de certas comodidades individuais. De todo modo, ainda é chato.

MADELEINE: Ah, não necessariamente!… O sacrifício nem sempre é difícil. Há o sacrifício e o sacrifício. Ainda que seja chato, no começo, uma vez desfeito, desfeito estará, ninguém pensa mais nisso de maneira séria!

Silêncio.

 

CHUBERT: Você, que vai com frequência ao cinema, gosta muito do teatro.

MADELEINE: Como todo mundo, claro.

CHUBERT: Mais que todo mundo.

MADELEINE: Sim, bem mais.

CHUBERT: O que você acha do teatro de hoje em dia? Quais são suas concepções teatrais?

MADELEINE: De novo seu teatro! Você está obcecado, isso vai virar uma psicose.

CHUBERT: Você acha, de verdade, que podemos fazer algo novo no teatro?

MADELEINE: Vou repetir a você que não há nada de novo debaixo do sol. Mesmo quando não há sol.

Silêncio.

 

CHUBERT: Você tem razão. Sim, você tem razão. Todas as peças que já foram escritas, desde a antiguidade até os dias de hoje, só foram policiais. O teatro nunca foi mais do que realista e policial. Toda peça é uma investigação feita para uma conclusão. Existe um enigma que é revelado na última cena. Às vezes antes. Se procurarmos, encontraremos. Seria melhor revelar desde o início.

MADELEINE: Você deveria dar exemplos, meu amigo.

CHUBERT: Penso no milagre da mulher que o Nosso Senhor impediu que queimassem viva. Se não nos dermos conta da intervenção divina, que não tem nada a ver com isso, resta um fato diferente: uma mulher assassinar o genro por dois matadores e por motivos ambíguos…

MADELEINE: E inconfessáveis…

CHUBERT: … A polícia chega, faz uma investigação, descobre a culpada. Este é o teatro policial. O teatro naturalista. O teatro de Antoine.

MADELEINE: De fato.

CHUBERT: O teatro no fundo nunca evoluiu.

MADELEINE: É uma pena.

CHUBERT: Você vê, é o teatro enigmático, o enigma é policial. Isto tem sempre sido assim.

MADELEINE: Mas, e o classicismo?

CHUBERT: É o teatro policial distinto. Como todo o naturalismo.

MADELEINE: Você tem ideias originais. Elas são talvez justas. Você deveria ainda procurar aconselhamento de pessoas autorizadas.

CHUBERT: Que pessoas?

MADELEINE: Você as encontra entre os amantes do cinema, os professores do Collège de France, os membros influentes do Instituto Agronômico, os noruegueses, alguns veterinários…. Os veterinários certamente devem ter muitas ideias sobre isto.

CHUBERT: Todo mundo tem ideias. Não é isso que falta. Mas são os fatos que contam.

MADELEINE: Os fatos, nada mais que os fatos. Poderíamos ainda perguntar-lhes.

CHUBERT: É preciso perguntar-lhes.

MADELEINE: É preciso dar-lhes tempo para refletir. Você tem tempo…

CHUBERT: A dúvida me fascina.

 

Silêncio.

Madeleine reacomoda suas meias.

Chubert lê seu jornal.

Ouvem-se batidas numa porta que não é a do cômodo onde Chubert e Madeleine se encontram. Contudo, Chubert levanta a cabeça.

 

MADELEINE: É ao lado, na zeladora. Ela nunca está em casa.

 

Ouve-se novamente batidas na porta da zeladora sendo, provavelmente, no mesmo andar.

 

VOZ DO POLICIAL: Zeladora! Zeladora!

 

Silêncio. Ouve-se bater de novo e de novo:

 

VOZ DO POLICIAL: Zeladora! Zeladora!

MADELEINE: Ela nunca está em casa. Como somos mal servidos!

CHUBERT: Deveríamos amarrar os zeladores à suas casas. Talvez estejam procurando por alguém da casa. E se eu fosse ver?

 

Ele se levanta, volta a sentar-se.

 

MADELEINE, sem violência: Não é da nossa conta. Não somos zeladores, meu amigo. Na sociedade cada um tem sua missão social bem determinada.

 

Silêncio curto. Chubert lê seu jornal. Madeleine reacomoda suas meias.

Batidas tímidas na porta da direita.

 

CHUBERT: Agora é aqui em casa.

MADELEINE: Você pode ir ver, meu amigo.

CHUBERT: Vou abrir.

 

Chubert se levanta, dirigindo-se à porta da direita e a abre. Aparece o Policial na soleira da porta. Ele é bem jovem, tem uma pasta debaixo do braço. Ele traja um sobretudo bege, sem chapéu, ele é louro, tem um ar dócil, excessivamente tímido.

 

POLICIAL, na soleira da porta: Boa noite, Senhor. (Em seguida à Madeleine, que por sua vez já se levantou e se dirige também em direção à porta.) Boa noite, Senhora.

CHUBERT: Boa noite, Senhor. (À Madeleine:) É o Policial.

POLICIAL, avançando num passo um pouco tímido: Com licença, Senhora, Senhor, eu gostaria de pedir uma informação à zeladora, a zeladora não está em casa…

MADELEINE: Naturalmente.

POLICIAL: … Os senhores sabem onde ela está, ou se ela deve retornar em breve? Ah, perdoem-me, perdoem-me, eu… eu não teria certamente batido na porta dos senhores se tivesse encontrado a zeladora, eu não teria ousado perturbá-los.

CHUBERT: A zeladora deve retornar em breve, Senhor. Ela só sai, a princípio, aos sábados à noite para ir ao baile. Ela tem ido ao baile todo sábado à noite desde que sua filha se casou. Como hoje é uma noite de terça-feira…

POLICIAL: Agradeço-lhe infinitamente, senhor, e vou-me embora. Vou esperar lá fora. Fico honrado pela recepção. Senhora, receba minhas saudações com muito respeito.

MADELEINE, a CHUBERT: Que jovem rapaz tão bem-educado! Ele é de uma polidez requintada. Pergunte a ele de onde vem, você poderia talvez dar a informação que ele precisa.

CHUBERT, ao Policial: O que deseja, senhor? Talvez eu possa lhe ajudar.

POLICIAL: Sinto muito por incomodá-lo.

MADELEINE: O senhor não nos incomoda de forma alguma.

POLICIAL: Trata-se, de fato, de algo simples…

MADELEINE, a CHUBERT: Faça com que ele entre.

CHUBERT, ao Policial: Queira entrar por gentileza, senhor.

POLICIAL: Senhor, eu de fato, eu…

CHUBERT: Minha esposa lhe roga que entre, senhor.

MADELEINE, ao Policial: Meu esposo e eu insistimos que entre, caro Senhor.

POLICIAL, consultando seu relógio de pulso: Percebo que não tenho mais tempo, já estou atrasado.

MADELEINE, à parte: Ele tem um relógio de ouro!

CHUBERT, à parte: Ela já percebeu que ele tem um relógio de ouro!

POLICIAL: … enfim, por cinco minutos, pela insistência dos senhores… mas não poderei… breve…vou embora, se assim o querem, com a condição de que me deixarão partir posteriormente…

MADELEINE: Fique tranquilo, caro Senhor, não vamos segurá-lo à força… venha descansar por um instante.

POLICIAL: Muito obrigado. Eu sou forçado, pois a senhora é bem amável.

O Policial entra no cômodo, para, abre seu casaco.

 

MADELEINE, a CHUBERT: Que lindo terno marrom, e novinho!

CHUBERT, à Madeleine: Que sapatos magníficos!

MADELEINE, a CHUBERT: Que belos cabelos louros! (O Policial passa a mão em seus cabelos).  Ele tem lindos olhos, seu olhar é doce. Você não acha?

CHUBERT, à Madeleine: Ele é simpático, inspira confiança. Tem um rosto infantil.

MADELEINE: Não fique de pé, Senhor. Queira por gentileza sentar-se.

CHUBERT: Pegue uma cadeira.

O Policial avança um pouco mais. Ele não se senta.

 

POLICIAL: Os senhores são o casal CHUBERT, certo?

MADELEINE: Mas é claro, senhor.

POLICIAL, a CHUBERT: Tenho a impressão que o senhor gosta de teatro…

CHUBERT: Ah…é…ah…sim, me interesso bastante.

POLICIAL: Que razão o senhor tem! Eu também, senhor, eu gosto de teatro. Infelizmente não tenho tempo de ir.

CHUBERT: As peças nas quais atuamos!

POLICIAL, à Madeleine: O Sr. Chubert é também, creio eu, um partidário da política do “sistema de desapego”?

MADELEINE, surpresa: Sim, senhor, de fato.

POLICIAL, a CHUBERT: Tenho a honra de compartilhar com a mesma opinião que o senhor tem. (Aos dois: ) Sinto muito em tomar-lhes o tempo. Eu gostaria somente de saber se os moradores que precederam os senhores se chamavam Mallot, com um tno final, ou Mallod, com um d. É só isso.

CHUBERT, sem hesitar: Mallot, com um t.

POLICIAL, mais friamente: É bem o que eu pensava. (Sem falar, o Policial avança firmemente pelo cômodo, seguido a meio passo por Madeleine e Chubert, que contudo, deram um meio pequeno passo para trás. O Policial se dirige à mesa, pega uma das duas cadeiras, senta-se, enquanto Madeleine e Chubert permanecem de pé, lado a lado. O Policial coloca sua pasta na mesa, a abre. Tira do seu bolso um maço grande cigarros, não o oferece aos seus anfitriões, acende um sem pressa, cruza as pernas, dá uma nova tragada, e então: ) Os senhores conheceram os Mallot?

 

Ele pronunciou esta frase levando seu olhar à Madeleine, e em seguida a Chubert, fixando-o longamente.

 

CHUBERT, um pouco intrigado: Não. Eu não os conheci.

POLICIAL: Então como o senhor sabe que o sobrenome deles tem um t no final?

CHUBERT, muito surpreso: Ah, sim, está certo… Como eu sei? Como eu sei?… Como eu sei?… Eu não sei como eu sei!

MADELEINE, a Chubert: Você é extraordinário! Responda. Quando ficamos sozinhos, você não fica de bico calado. Você fala rápido, fala demais, uma linguagem feroz, você grita. (Ao Policial:) O senhor não o conhece neste aspecto. Ah, na intimidade ele é bem mais atrevido que isso.

POLICIAL: Estou notando.

MADELEINE, ao Policial: No entanto, eu gosto muito dele. É meu esposo, não é verdade? (a Chubert:): Vamos, vejamos, conhecemos os Mallot ou não? Fala! Faça um esforço, tente se lembrar…

CHUBERT, após um esforço silencioso de memória, que durou alguns instantes e que insatisfizeram visivelmente Madeleine, enquanto a figura do Policial permanecia impassível: Eu não consigo me lembrar! Tenha eu os conhecido ou não.

POLICIAL, à Madeleine: Retire a gravata dele, senhora. Talvez seja isto que o incomoda. Ele vai ficar melhor depois.

CHUBERT, ao Policial: Obrigado, Senhor. (À Madeleine que lhe retira a gravata: ) Obrigado, Madeleine.

POLICIAL, à Madeleine: O cinto também, seus cadarços!

 

Madeleine os retira.

 

CHUBERT, ao Policial: Isto estava me apertando demais. Como o senhor é amável!

POLICIAL, a Chubert: Então, senhor?

MADELEINE, a Chubert: Então?

CHUBERT: Estou respirando bem melhor. Sinto-me mais livre em meus movimentos. Mas ainda não consigo me lembrar.

POLICIAL, a Chubert: Vejamos, meu velho, o senhor não é uma criança.

MADELEINE, a Chubert: Vejamos, você não é uma criança. Você está ouvindo o que te dizem? Você acaba com minhas esperanças!

POLICIAL, balançando-se na cadeira, à Madeleine: A senhora poderia dar-me um café?

MADELEINE: Com prazer, caro Senhor, já vou preparar. Cuidado, não se balance, pois o senhor poderá cair.

POLICIAL, continuando a se balançar na cadeira: Não se preocupe com isso, Madeleine. (Com um sorriso ambíguo para  Chubert::) É assim que ela se chama?  (À Madeleine: ) Não se preocupe com isso, Madeleine, já tenho o costume. Faça o café bem forte, bem doce!

MADELEINE: Três colheres de açúcar?

POLICIAL: Doze colheres! E um licor, um grande.

MADELEINE: Está bem, senhor.

 

Madeleine deixa o recinto pela porta da esquerda. Ouve-se o barulho do moedor de café vindo da coxia, bem alto no início, quase encobrindo as vozes do Policial e de Chubert, e que depois vai ficando cada vez mais baixo.

 

CHUBERT: Então o senhor também é um partidário convicto como eu do “sistema de desapego” na política e mística? Fico feliz em saber que, no plano artístico, temos os mesmos gostos, desde que o senhor se beneficiou dos princípios de uma arte dramática revolucionária!

POLICIAL: Não devemos tratar disto neste momento! (O Policial tira uma foto de seu bolso, mostrando-a a Chubert: ) Trate de refrescar a memória, veja esta foto, é o Mallot? (O tom do Policial vai ficando cada vez mais duro; depois de um instante: ) É o Mallot?

 

Um refletor faz surgir de repente da sombra, no lado extremo-esquerdo do palco, um grande retrato no qual pode-se ver sem o projetor e que representa, de maneira aproximada, um homem tal como lhe descreveu Chubert, de acordo com a foto que ele contempla, em sua mão; os personagens não dão atenção nenhuma, naturalmente – eles atuam como se ele não estivesse ali –o retrato iluminado, desaparece na escuridão, assim que a descrição tiver sido feita; talvez seria preferível substituir o retrato iluminado por um ator de pé, imóvel, no lado extremo-esquerdo do palco, cujas características físicas correspondessem à descrição; talvez poderia ainda haver o retrato e o ator nas duas extremidades do palco.

 

CHUBERT, após ter examinado, com muita atenção, a foto por um longo tempo, descrevendo a figura do homem: É um homem nos seus cinquenta anos… sim…consigo ver… Ele não se barbeava há dias… Ele trazia no peito uma placa com o número 58.614… Sim, é isso, 58.614.

 

O refletor se apaga, não vemos mais o personagem ou retrato no palco.

 

POLICIAL: É o Mallot? Eu sou muito paciente.

CHUBERT, no começo de outro momento de silêncio: O Senhor Inspetor sabe, eu…

POLICIAL: Principal!

CHUBERT: Perdão, o Senhor Inspetor Principal sabe, eu não consigo me dar conta. Assim, sem gravata, com o pescoço rasgado, a imagem toda machucada, inchada, como reconhecê-lo? Contudo, sim, me parece que… parece que poderia ser ele… sim, sim… deve ser ele…

POLICIAL: Quando você o conheceu e o que ele te dizia?

CHUBERT, largando sua cadeira: Desculpe-me, Senhor Inspetor Principal, estou extremamente cansado!

POLICIAL: Eu te pergunto: quando você o conheceu e o que ele te dizia?

CHUBERT: Quando que eu o conheci? (Ele pega sua cabeça com as mãos.) O que ele me dizia? O que ele me dizia?

POLICIAL: Responda!

CHUBERT: O que ele me dizia?… O que ele… Mas quando eu realmente o conheci? Quando o vi pela primeira vez? Quando eu o vi pela última vez?

POLICIAL: Não cabe a mim dar a resposta.

CHUBERT: Onde foi? Onde?… onde?… No jardim?… A casa de minha infância? A escola?… No regimento?… O dia de seu casamento?… Do meu casamento?… Eu fui sua testemunha?… Ele foi a minha testemunha? … Não.

POLICIAL: Você não consegue se lembrar?

CHUBERT: Não consigo… Eu me lembro, contudo… de um lugar à beira mar, no crepúsculo, estava úmido, há muito tempo, rochas escuras… (Girando sua cabeça para o canto de onde Madeleine sai: ) Madeleine! O café do Senhor Inspetor Principal.

MADELEINE, entrando: O café pode se moer sozinho.

CHUBERT, à Madeleine: Vejamos, Madeleine, você deveria se ocupar.

POLICIAL, dando batendo na mesa: Você é bem gentil, mas isso não lhe diz respeito. Ocupe-se de suas coisas. Você me falava de um lugar à beira mar… (Chubert se cala.) Você está me ouvindo?

MADELEINE, impressionada, numa mistura de medo e admiração pelo gesto e autoridade do Policial, a Chubert): O senhor está te perguntando se você o ouve? Responda, vamos!

CHUBERT: Sim, senhor.

POLICIAL: Então? Então?

CHUBERT: Sim, eu devo tê-lo conhecido neste lugar. Devíamos ser jovens!…

 

Madeleine, que retornando, tinha já mudado a aparência e a voz, trocou o vestido velho e apareceu usando um modelo decotado; ela é outra pessoa, sua voz também mudou; ela se tornou dócil e melodiosa.

 

CHUBERT: Não, não, não o vejo aqui…

POLICIAL: Você não o vê aqui! Você não vê aqui! Vejamos isso! Mas onde então? Nos bistrôs? Beberrão! E se diz um homem casado!

CHUBERT: Refletindo bem, suponho que Mallot com um t deve estar lá embaixo, embaixo…

POLICIAL: Então desça.

MADELEINE, com sua voz melodiosa: embaixo, embaixo, embaixo, embaixo…

CHUBERT: Deve estar escuro, não se poderá ver nada.

POLICIAL, duramente: Não é o suficiente!

MADELEINE: Não é o suficiente, querido, meu amor, não é! (Ela encanta Chubert de uma maneira lânguida, quase obscena; então ela se ajoelha diante dele, obrigando-o a dobrar os joelhos.) Não fique com as pernas retas! Atenção, não deslize! Os degraus estão molhados… (Madeleine está levantada.) Veja bem o corrimão… Desça… desça…se você me deseja!

 

Chubert se apoia no braço de Madeleine, como se fosse um corrimão de uma escada; ele faz como se estivesse descendo pelos degraus; Madeleine retira seus braços, Chubert não percebe, ele continua a se apoiar num corrimão imaginário; ele desce os degraus, em direção à Madeleine. A expressão de sua figura é lasciva; de repente, ele para, estende um braço, olha o chão, agora ao seu redor.

 

CHUBERT: Deve estar aqui.

POLICIAL: Por enquanto.

CHUBERT: Madeleine!

MADELEINE, andando para trás, em direção ao sofá dizendo, melodiosamente: Eu estou aqui… eu estou aqui… Desça… Um passo… Um não… Um passo… Um não… Um passo… Um não… um passo… um não… um passo… Olá!… Olá!… (Ela se alonga pelo sofá.) Querido…

 

Chubert vai em direção a ela rindo de maneira nervosa. Em alguns instantes, Madeleine no sofá, sorridente, erótica, com os braços suaves em direção a Chubert, canta:

MADELEINE: Lá, lá lá lá lá lá…

Chubert, bem próximo do sofá, de pé, com os braços em direção a Madeleine como se ela estivesse muito distante; ele ri, solta um riso estranho, se balança ligeiramente no local; a cena dura alguns segundos, enquanto Madeleine interrompe seu canto com risos irritantes, enquanto Chubert a chama, com uma voz sufocada:

 

CHUBERT: Madeleine! Madeleine! Estou chegando… Sou eu, Madeleine! Sou eu… agora… agora…

POLICIAL: Ele desceu bem os primeiros degraus, mas é necessário continuar descendo. Você deve chegar ao presente.

A intervenção do Policial interrompe esta cena erótica; Madeleine se levanta, conserva ainda durante um tempo sua voz melodiosa, com sensualidade comedida, até tornar-se de novo, às vezes, mais tarde, rabugenta como o usual. Madeleine, após estar de pé, se dirige ao fundo da cena, aproximando-se, contudo, do Policial; Chubert deixa cair os braços ao longo de seu corpo e, a figura inexpressiva, caminha lentamente, de passos automáticos, em direção ao Policial.  

 

POLICIAL, a Chubert: Você deve descer ainda mais.

MADELEINE, a Chubert: Desça, meu amor, desça… desça… desça…

CHUBERT: Está escuro.

POLICIAL: Pense no Mallot, escancare os olhos. Procure pelo Mallot.

MADELEINE, quase que cantando: Procure pelo Mallot, Mallot, Mallot…

CHUBERT: Estou caminhando pela lama. Ela está grudando nas minhas solas… Como meus pés estão pesados! Estou com medo de escorregar.

POLICIAL: Não tenha medo. Desça, elimine os obstáculos, vire à direita, vire à esquerda.

MADELEINE, a Chubert: Desça, desça, querido, meu querido, desça bem…

POLICIAL: Desça, direita, esquerda, direita, esquerda. (Chubert se deixa guiar pelas palavras do Policial e continua sua marcha sonâmbula. Durante este tempo, Madeleine fica de costas para a sala, coloca um xale nos ombros; ela fica meio corcunda bruscamente, de costas ela parece ser mais velha. Seus ombros tremem por conta de lágrimas silenciosas.) Vá direto diante de ti…

 

Chubert se direciona à Madeleine e com ela fala. Ele tem uma expressão dolorosa, traz as mãos cruzadas.

 

CHUBERT: É você, Madeleine? É você, Madeleine? Que aflição! Como isso aconteceu? Como isso é possível? Isto não foi notado… Pobre velhinha, pobre bonequinha apagada, ainda é você. Como você mudou! Mas quando isso aconteceu? Como não o evitamos? Nesta manhã ainda havia flores em nosso caminho. O sol preenchia o céu. Seu riso era límpido. Tínhamos roupas novinhas em folha, estávamos rodeados de amigos. Ninguém tinha morrido, você nunca tinha chorado. O inverno veio subitamente. Nossa estrada está deserta. Onde estão os outros? Nas tumbas, ao longo da estrada. Eu quero nossa alegria, fomos roubados, fomos despojados. Infelizmente! Infelizmente, nos encontraremos novamente a luz azul. Madeleine, acredite em mim, te juro que não fui eu que te envelheci! Não… eu não desejo, eu não creio, o amor é sempre jovem, o amor nunca morre. Eu não mudei. Nem você, você finge. Ah, ainda que eu não possa mentir a mim mesmo, você está velha, e como está velha! O que te fez envelhecer? Velha, velha, velha, velha, velhinha, boneca velha. Nossa juventude, na estrada. Madeleine, minha queridinha, te comprarei um vestido novo, joias, flores. Seu rosto encontrará seu frescor, eu te quero, eu te amo, eu te quero, eu te suplico, quando se ama não se envelhece. Eu te amo, rejuvenescido, jogue sua máscara, olhe para mim bem nos olhos. É preciso rir, ria, minha queridinha, para apagar as rugas. Ah! Se nós pudéssemos sair correndo e cantando. Eu sou jovem. Nós somos jovens.

 

Virando de costas para a sala, ele pega Madeleine pela mão e, com uma voz de aparência idosa, fazem de conta que estão correndo e os dois cantam. Suas vozes estão quebradas, misturadas com soluços.

 

CHUBERT, acompanhado vagamente por Madeleine: As fontes primaveris… As novas folhas… O jardim encantado afundou na noite, escorregou na lama… Nosso amor na noite, nosso amor na lama, na noite, na lama… Nossa juventude perdida, as lágrimas se tornam fontes puras… fontes de vida, fontes imortais… As flores florescem na lama…

POLICIAL: Não é isso, não é isso. Você perde seu tempo, você esquece do Mallot, você para, você demora, preguiçoso… e você não está na direção certa. Se você não vir o Mallot nas folhagens ou na água das fontes, não pare, continue. Não temos tempo. Ele, enquanto isso, está correndo não se sabe para onde. Você se dá conta, você dá conta de si mesmo e acaba parando. Não se deve jamais desanimar, não se pode parar. (Logo das primeiras palavras pronunciadas pelo Policial, Madeleine e Chubert pouco a pouco paravam de cantar. À Madeleine que retornou e se recompôs:) Quando ele se dá conta, ele para.

CHUBERT: Eu jamais vou me compadecer, Senhor Inspetor Principal.

POLICIAL: É isto que veremos. Desça, vire, desça, vire.

 

Chubert retoma sua caminhada e Madeleine volta ao seu estado da cena anterior.

 

CHUBERT: Eu desci tão baixo assim, Senhor Inspetor Principal?

POLICIAL: Ainda não. Continue descendo.

MADELEINE: Força!

CHUBERT, com os olhos fechados: os braços estendidos: Eu caio, eu me levanto, eu caio, eu me levanto…

POLICIAL: Nãose levante mais.

MADELEINE: Não se levante mais, meu querido.

POLICIAL: Procure pelo Mallot, Mallot com um t. Você está vendo o Mallot? Você está vendo o Mallot?… Você se aproxima dele?

MADELEINE: Mallot… Mallo-o-o-o…

CHUBERT, sempre com os olhos fechados: É melhor eu abrir bem meus olhos…

POLICIAL: Eu não te pedindo que leia com os olhos.

MADELEINE: Desça, deixe-se deslizar, querido.

POLICIAL: Trata-se de tocá-lo, de agarrá-lo, abra bem os braços, vá tateando… tateando… Não tenha medo…

CHUBERT: Estou procurando…

POLICIAL: Não é nem mesmo mil metros sob o mar.

MADELEINE: Desça, vejamos, não tenha medo.

CHUBERT: O túnel está obstruído.

POLICIAL: Desça até o local.

MADELEINE: Afunde-se, meu querido.

POLICIAL: Posso ainda falar contigo?

CHUBERT: A lama está chegando até o meu queixo.

POLICIAL: Ainda não é o suficiente. Não se afunde na lama. Você ainda está longe do Mallot.

MADELEINE: Afunde-se, meu querido, na densidade.

POLICIAL: Afunde seu queixo, isso… a boca…

MADELEINE: Também a boca. (Chubert começa a emitir grunhidos sufocados). Vamos, enterre-se… mais baixo, mais baixo, sempre…

 

Gemidos de Chubert

 

POLICIAL: O nariz…

MADELEINE: O nariz…

 

Enquanto isso, Chubert faz como se estivesse descendo até as profundezas, o sufocamento.

 

POLICIAL: Os olhos…

MADELEINE: Ele abriu um olho na lama… Um cílio passa… (a Chubert: ) Abaixe  ainda mais sua testa, meu amor.

POLICIAL: Grite mais alto, não conseguimos te escutar…

MADELEINE, a Chubert, bem alto: Abaixe ainda mais sua testa, meu amor!… Desça! (Ao Policial: ) Ele sempre foi meio surdo.

POLICIAL: Ainda se pode ver uma ponta da orelha.

MADELEINE, a Chubert, bem alto: Querido…afunde sua orelha!

POLICIAL, a Madeleine: Ainda se pode ver o cabelo.

MADELEINE, a Chubert: Ainda dá para ver o cabelo. Continue descendo. Coloque os braços na lama, separe os dedos, nada nas profundezas, alcance o Mallot a qualquer preço…Desça…Desça…

POLICIAL: Deve-se ir até o fundo. Claro. Sua esposa tem razão. É na profundeza que você pode encontrar o Mallot.

Silêncio. Chubert está de fato muito num lugar bem profundo. Avança com dificuldade e com os olhos fechados como se estivesse no fundo d’água.

 

MADELEINE: Já não conseguimos ouvi-lo.

POLICIAL: Já ultrapassou a parede do som.

Escuridão. Ouvem-se vozes dos personagems, mas não é possível vê-los neste momento.

 

MADELEINE: Oh! Meu pobre querido! Tenho medo por ele. Não voltarei a ouvir sua voz tão adorada…

POLICIAL, à Madeleine, com dureza: Voltaremos a ouvir sua voz. Não complica a situação com seus gemidos.

Luz. Em cena só aparecem Madeleine e o Policial.

MADELEINE: Não o vemos mais.

POLICIAL: Ele já passou da parede ótica.

MADELEINE: Ele está em perigo! Ele está em perigo! Não devia ter me sujeitado a este jogo.

POLICIAL: Ele voltará para ti, Madeleine, teu tesouro, talvez com atraso, mas voltará com certeza. Ele não terminou de fazer o que vemos. Isso tem a pele dura.

MADELEINE, chorando: Eu não deveria ter feito isso. Me fez mal! Em que estado deve estar meu pobre querido?

POLICIAL: Cale-se, Madeleine. Você tem medo de que, se está comigo? Estamos os dois sozinhos, minha linda. Ele a abraça vagamente e depois a solta.

MADELEINE, chorando: O que fizemos! Mas era necessário, não é? Tudo isso é legal?

POLICIAL: Claro, não tenha medo. Ele voltará a ti. Coragem! Eu também gosto dele.

MADELEINE: De verdade?

POLICIAL: Ele voltará a nós, por um desvio… Ele reviverá em nós. (Gemidos nos bastidores) Ouça… Sua respiração.

MADELEINE: Sim, sua respiração adorada.

Escuridão. Luz. Chubert atravessa o palco de um extremo ao outro. Os outros dois personagem desapareceram.

 

CHUBERT: Eu percebo…eu percebo…

 

Suas palavras são abafadas pelos gemidos. Ele sai pela direita enquanto Madeleine e o Policial retornam pela esquerda. Estes dois últimos se transformaram em dois personagens diferentes do que atuavam na cena seguinte:

MADELEINE: Você é um infame. Me humilhou, me torturou durante toda uma vida. Me desfigurou moralmente. Me envelheceu. Me destruiu. Não te aguentarei mais.

POLICIAL: E o que você pretende fazer?

MADELEINE: Eu me matarei, me envenenarei.

POLICIAL: Você é livre. Não vou te impedir.

MADELEINE: Você vai ficar bem livre, vai se sentir satisfeito! Quer se livrar de mim, não é? Eu sei! Eu sei!

POLICIAL: Não quero me livrar de ti a qualquer preço! Porém posso me esvair facilmente de ti e suas lamentações. Você é chata. Não entende a vida e perturba todos.

MADELEINE, soluçando: Monstro!

POLICIAL: Não chore, pois você fica mais feia do que de costume!

 

Chubert reaparece e, de longe, sem dizer uma palavra, como se fosse impotente, presencia a cena retorcendo as mãos; tudo que se pode ouvir balbuciar é: “Pai, mãe, pai, mãe…”

 

MADELEINE, fora de si:  É demais! Não vou suportar mais!

Ela tira da um pequeno frasco de sua blusa e o leva aos lábios.

POLICIAL: Você está louca, não vai fazer isso! Não faça isso!

 

O Policial se dirige à Madeleine, a toma pelo braço para impedir que tome o veneno e, de repente, enquanto a expressão de seu rosto muda, é ele que a força beber.

Chubert dá um grito. Escuridão. Outra vez luz. Ele está sozinho em cena.

 

CHUBERT: Tenho oito anos e anoitece. Minha mãe me leva pela mão pela rua Blomet após o bombardeio. Passamos juntos pelas ruínas. Tenho medo. A mão de minha mãe treme na minha. As silhuetas surgem entre os destroços das paredes. Somente seus olhos brilham na sombra.

Madeleine aparece, silenciosamente. Ela se dirige em direção a Chubert. Ela é sua mãe.

O POLICIAL aparece no outro extremo do palco e se aproxima passo a passo, bem lentamente: Olhe: Entre estas silhuetas, talvez se encontre a de Mallot.

CHUBERT: Seus olhos se apagam… tudo volta a escuridão, exceto por uma luz distante. Está tão escuro que não vejo mais minha mãe. Sua mão desapareceu. Ouço sua voz.

POLICIAL: Ela deve falar contigo sobre Mallot.

CHUBERT: Ela diz, tristemente, tristemente: Você ainda verterá muitas lágrimas. Vou te abandonar, filho meu, meu filhotinho…

MADELEINE, com muita ternura na voz: Meu filho, meu filhotinho…

CHUBERT: Vou ficar sozinho na escuridão, na lama…

MADELEINE: Minha pobre criança, pela noite, na lama, sozinho, meu filhotinho…

CHUBERT: Somente sua voz, que é um sopro, me dirige. Diz:

MADELEINE: Terá que perdoar, meu filho, isto é o mais difícil…

CHUBERT: Isto é o mais difícil.

MADELEINE: Isto é o mais difícil.

CHUBERT: Ela me disse também…

MADELEINE: …Chegará o tempo das lágrimas, o tempo dos remorsos, da penitência. Tem que ser bom. Você sofrerá se não for bom, se não perdoar. Quando o ver, obedeça-o, abrace-o, perdoe-o.

Madeleine sai silenciosamente. Chubert se encontra diante do Policial que, de frente para o público, sentado à mesa, tem a cabeça entre as mãos e permanece imóvel.

 

CHUBERT: A voz se calou. (Chubert se dirige ao Policial: ) Pai, nunca nos entendemos… Você ainda consegue me ouvir? Vou te obedecer. Perdoe-nos, pois nós já te perdoamos. Mostre seu rosto! (O Policial não se move) Você era duro, mas talvez não era tão mau. Talvez você não tenha a culpa. Não a tem. Eu odiava sua violência, seu egoísmo. Não tive compaixão de suas debilidades. Você me pegava, mas eu era mais duro. Foi meu desprezo que você matou. Não é? Escute… Eu deveria vingar minha mãe… Eu deveria… Qual era meu dever? Deveria fazê-lo de fato?… Ela te perdoou, mas eu sigo assumindo sua vingança…Para que serve a vingança? Sempre é o vingador que sofre… Você me ouve? Descubra seu rosto. Dê-me sua mão. Poderíamos ter sido companheiros. Eu era muito pior que você. Você era burguês. Que importância tem isso? Fiz mal em te desprezar. Não valho mais do que você. Que direito eu teria de te castigar? (O Policial segue sem se mexer) Vamos fazer as pazes! Vamos fazer as pazes! Dê-me sua mão. Vamos, venha comigo, voltaremos a encontrar os companheiros! Beberemos juntos! Olhe para mim, olhe! Me pareço contigo. Tenho todos os seus defeitos. (Silêncio. O Policial não muda de posição.) Quem terá compaixão de mim, o impiedoso? Ainda que você me perdoe, eu não poderia perdoar a mim mesmo!

Enquanto a atitude do policial segue invariável, a voz do mesmo, gravada em um disco, se faz ouvir, vindo de um canto oposto do palco; Chubert, imóvel, descansa os braços ao longo do corpo enquanto dura o monólogo que segue; Chubert não tem expressão, às vezes breves despertares curtos e desesperados.

 

(Na encenação, o Policial levantava a cabeça e falava sozinho. Prefere-se esta solução.)

 

VOZ DO POLICIAL: Meu filho, eu era representante de estabelecimentos comerciais. Minha profissão me obrigava a percorrer toda a terra. Ah! Sempre me encontrava, de outubro a março, no hemisfério norte, e de abril a setembro, no hemisfério sul, de modo que não havia em minha vida mais do que invernos. Pagavam-me miseravelmente, me vestia mal e minha saúde era má. Vivia num estado de ira constante. Meus inimigos ficavam cada vez mais poderosos, cada vez mais ricos. Meus protetores faliam e logo pereciam, levados, uns pelos outros, por enfermidades desonrosas ou acidentes ridículos. Não tinha mais do que desapontamentos. O bem que fazia se transformava em mal e o mal que me fazia não se transformava em bem. Logo, fui soldado. Obrigaram-me, por ordem, a participar no massacre de dezenas de milhares de soldados inimigos, de populações de mulheres, idosos e crianças. Depois minha cidade natal e todos os seus subúrbios foram destruídos por completo. Em tempos de paz, a miséria continuou, eu tinha horror do ser humano. Eu planejava vinganças horríveis. Eu execrava a terra, o sol e seus satélites. Eu queria exilar-me em outro universo, porém ele não existia.

CHUBERT: na mesma posição: Ele não quer me olhar… Não quer falar comigo…

VOZ DO POLICIAL (ou ele mesmo, na encenação), enquanto segue na mesma atitude: Você nasceu, meu filho, justo no momento quando eu ia dinamitar o planeta. Foi seu nascimento que o salvou. Você me impediu, pelo menos, de matar o mundo no meu coração. Me reconciliei com a humanidade, você me ligou indissoluvelmente à sua história, suas desgraças, seus crimes, suas esperanças, suas desesperanças. Eu tremia por sorte dele… e pela sua.

CHUBERT, o mesmo, enquanto o policial segue na mesma atitude: Nunca poderia…

VOZ DO POLICIAL (ou ele mesmo, na encenação): Sim, apenas você tinha surgido do nada, me senti desarmado, ofegante, feliz e infeliz, meu coração de pedra se transformou em uma esponja, em um trapo, senti uma vertigem de um remorso sem nome ao pensar que não quisera ter tido descendente, e que tivera tratado de impedir sua vinda ao mundo! Você poderia não ter existido, você poderia não ter existido! Isto me fez sentir um enorme pânico retrospectivo; um pesar doloroso, pelas milhares de crianças que poderiam ter nascido e que não nasceram, pelos inúmeros rostos que nunca serão acariciados, pelas mãozinhas que nunca serão tomadas pelas mãos de pai algum, pelos lábios que jamais balbuciarão. Quisera preencher o vazio com a existência. Imaginava todas estas criaturinhas que não tinham chegado a existir, queria cria-las em minha mente para poder chorar por elas pelo menos como verdadeiros defuntos.

CHUBERT, o mesmo, enquanto o policial segue na mesma atitude: Se calará para sempre!

VOZ DO POLICIAL (ou ele mesmo, na encenação): Porém, ao mesmo tempo, uma alegria transbordante me invadia, pois você existia, meu querido filho, estrela tremulante num oceano de trevas, ilha de existência rodeada de nada, você, cuja existência anulava o nada. Beijava seus olhos chorando e suspirava: “Meu Deus, Meu Deus!” Eu estava agradecido a Deus, pois se não tivesse existido a criação, si não tivesse existido a história universal, os séculos e séculos, você não teria existido, meu filho, que era o resultado da história do mundo. Você não teria existido se não tivesse havido o desencadeamento sem fim de causas e efeitos, e entre estes as guerras, todas as revoluções, os dilúvios, as catástrofes sociais, geológicas, cósmicas, pois tudo isso é o resultado da série de causas universais, e você, meu filho, também. Agradecia a Deus por toda a miséria e toda a miséria dos séculos, todas as desgraças, todas as felicidades, as humilhações, os horrores, as angústias, pela grande tristeza, pelas quais se havia produzido o seu nascimento, que justificava e redimia, na minha opinião, todos os desastres da História. Perdoava o mundo por amor a você. Tudo estava salvo porque nada poderia apagar a existência universal, o fato de seu nascimento. Mesmo quando você não existir mais, eu me dizia, nada poderá impedir o fato de você ter existido. Você estava ali, inscrito para sempre nos registros do universo solidamente fixo na memória eterna de Deus.

CHUBERT, o mesmo, mesma atitude do Policial: Nunca falará, nunca, nunca…

VOZ DO POLICIAL, mudando de tom: E você… quanto mais orgulhoso estava de você, quando mais te amava, mais você me desprezava, me acusava de todos os crimes, dos que eu tinha cometido e dos que eu não tinha cometido. Tinha sido sua mãe, a coitada. Mas quem pode saber o que aconteceu entre nós, se é culpa dela, se é culpa minha, se é culpa dela, se é culpa minha…

CHUBERT, o mesmo. Mesma atitude do Policial: Não falará mais, é minha culpa, é minha culpa!

VOZ DO POLICIAL (ou ele mesmo, na encenação): Por mais que você me renegue, por mais que você tenha vergonha de mim, que insulte minha memória, não guardo rancor de você. Não posso mais odiar. Eu perdoo, ao meu pesar. Devo a você mais do que você me deve. Não desejaria que você sofresse, queria que você não se sentisse culpado. Esqueça isto que você acha que é sua culpa.

CHUBERT: Pai, por que você não fala comigo, por que não quer responder?… Jamais, ah, jamais voltarei a ouvir sua voz!… Jamais, jamais, jamais! Jamais poderia..

POLICIAL, que se levanta bruscamente, a Chubert: Os pais têm coração de mãe neste país. Para nada serve se lamentar. Seus assuntos pessoais não interessam. Ocupe-se do Mallot. Siga sua pista. Não pense em outra coisa. Em todo este assunto o único que interessa é Mallot. Esqueça o resto, eu te digo.

CHUBERT: Senhor Inspetor Principal, de todos os modos teria desejado saber… O senhor vê… O que…Eram de fato meus pais…

POLICIAL: Ah! Seus complexos!  Não vamos nos aborrecer com isso! Seu pai, sua mãe, o amor filial! … Isto não é da minha conta, não sou pago para isso. Siga seu caminho.

CHUBERT: É preciso então seguir descendo, Senhor Inspetor Principal?…

Ele procura, parece estar cego, com seu pé.

 

POLICIAL: Você vai nos descrever tudo que você vir.

CHUBERT, avançando às cegas, com hesitação, parece estar cego: …. Um passo à direita… um passo à esquerda…à esquerda…à esquerda…

POLICIAL, à Madeleine que entra pela direita: Cuidado com os degraus, senhora!

MADELEINE: Obrigado, caro amigo. Eu poderia ter caído.

 

O Policial e Madeleine se tornaram espectadores de teatro.

O POLICIAL, se apressando em direção à Madeleine: Pegue meu braço…

O Policial e Madeleine vão se instalar; Chubert desaparece durante alguns instantes na penumbra, depois de ter se distanciado com o mesmo passo apressado. Reaparecerá, no extremo oposto do palco, em um estrado ou um pequeno tablado.

POLICIAL, à Madeleine: Sente-se. Nos instalaremos. Já vai começar. Ele se oferece como espetáculo todas as noites.

MADELEINE: O senhor fez bem em reservar os lugares.

POLICIAL: Ocupe esta poltrona.

 

Ele coloca as duas cadeiras juntas, uma ao lado da outra.

MADELEINE: Obrigado, caro amigo. Estes lugares são bons? São os melhores? Pode-se ver tudo? Conseguimos ouvir bem? O senhor tem gêmeos?

 

Chubert aparece no pequeno palco caminhando às cegas.

POLICIAL: É ele…

MADELEINE: Ah, ele é impressionante, representa bem! Ele está cego de verdade?

POLICIAL: Não se pode saber. Parece que sim.,

MADELEINE: Coitado! Deveriam ter-lhe dado dois bastões brancos, um pequeno, de guarda municipal, para controlar a circulação, e outro maior, de cego… (Ao Policial) Tenho que tirar o chapéu? Não, não é, caro amigo? Não estou perturbando as pessoas. Não sou tão alta.

POLICIAL: Ele está falando. Cale-se, senão não lhe ouvimos.

MADELEINE, ao Policial: Talvez seja porque ele seja surdo…

CHUBERT, no tablado: Onde estou?

MADELEINE, ao Policial: Onde ele está?

POLICIAL, à Madeleine: Não seja impaciente. Ele vai lhe dizer. É seu papel.

CHUBERT: …espécies de ruas…espécies de caminhos…espécies de lagos…espécies de pessoas…espécies de noites…espécies de céus…espécies de mundo…

MADELEINE, ao Policial: O que ele disse? Espécies de que?

POLICIAL, à Madeleine: Toda espécie de espécies.

MADELEINE, alto à Chubert: Baixo demais!

POLICIAL, à Madeleine: Cale-se! Isto não é permitido.

CHUBERT: … Sombras que se reanimam…

MADELEINE, ao Policial: Como! O único que podemos fazer é pagar e aplaudir? (a Chubert, falando ainda mais alto): Mais alto!

CHUBERT: … uma nostalgia…prantos, os restos de um universo…

MADELEINE, ao Policial: O que quer dizer isso?

POLICIAL, à Madeleine: Diz: os restos de um universo.

CHUBERT, que segue sua encenação: Um buraco aberto…

POLICIAL, à Madeleine: Um buraco aberto…

MADELEINE, ao Policial: É anormal. Está doente. Não está com os pés no chão.

POLICIAL, à Madeleine: Está bem mais abaixo.

MADELEINE, ao Policial: Ah, sim! É verdade! (Com admiração): Como você entende tudo tão facilmente, caro amigo!

CHUBERT: Me resignar…me resignar…A luz escura… as estrelas sombrias…Sofro de um mal desconhecido.

MADELEINE, ao Policial: Como se chama o ator que faz esse papel?

POLICIAL: Chubert.

MADELEINE, ao Policial: Suponho que não seja o músico.

POLICIAL, à Madeleine: Tranquilize-se.

MADELEINE, falando bem alto, à Chubert: Menos baixo!

CHUBERT: Meu rosto está molhado por meu pranto. Onde está a beleza? Onde está o bem? Onde está o amor? Eu perdi a memória.

MADELEINE: Não é o momento! Não há espanto!

CHUBERT, com um tom de desespero: Meus brinquedos…em pedaços…Meus brinquedos quebrados…Meus brinquedos de infância…

MADELEINE: Isto é infantil.

POLICIAL, à Madeleine: Sua observação me parece pertinente.

CHUBERT, com a mesma intensidade de desespero: Sou velho…sou velho…

MADELEINE: Não parece realmente. Ele exagera. Ele quer que alguém se queixe.

CHUBERT: Outrora… Outrora..

MADELEINE: O que ele está fazendo?

POLICIAL, à Madeleine: Suponho que ele esteja evocando seu passado, querida amiga.

MADELEINE: Se todos nós evocássemos o nosso, aonde iriamos parar? Todos nós teríamos coisas a dizer. Nós nos resguardamos bem de fazê-lo. Por modéstia, por pudor.

CHUBERT: … Outrora… Um grande vento se levanta…

 

Ele geme muito forte.

MADELEINE: Ele está chorando…

POLICIAL, à Madeleine: Ele está imitando o ruído do vento… no bosque.

CHUBERT, continuando seu papel: O vento sacode os bosques, o raio revela as profundezas, e no fundo da tempestade, no horizonte, uma cortina gigantesca e sombria se levanta…

MADELEINE: Como? Como?

CHUBERT: … no fundo aparece, luminosa nas trevas, numa calma de sonho, rodeada de tempestade, uma cidade milagrosa…

MADELEINE, ao Policial: Uma o que?

POLICIA: A cidade! A cidade!

MADELEINE: Compreendo.

CHUBERT: … ou um jardim milagroso, uma fonte jorrante, jatos d’água, flores de fogo na escuridão…

MADELEINE: Ele se acha poeta, certamente! É um mal parnasianismo-simbolismo-surrealismo!

CHUBERT: …um palácio de chamas gélidas, estátuas iluminadas, mares incandescentes, continentes que flamejam nas noites, nos oceanos de neve!

MADELEINE: É um farsante! Um idiota! É inadmissível! É um mentiroso!

O POLICIAL, gritando com Chubert, e voltando aos poucos a ser o Policial, mesmo que aos poucos, um espectador assustado): Você vê sua sombra negra se destacar na luz? Ou talvez sua silhueta luminosa destacar-se na escuridão?

CHUBERT: Os fogos são menos claros agora, o palácio menos brilhante, tudo se ensombrece.

POLICIAL,  a Chubert: Diga-nos, pelo menos, o que você está sentindo. Quais são seus sentimentos? Diga-nos.

MADELEINE, ao Policial: Querido amigo, seria melhor se passássemos o resto da noite no cabaré.

CHUBERT, seguindo sua representação: …Uma alegria… dor… um desprendimento… um apaziguamento… Plenitude… Vazio… Uma esperança desesperada. Sinto-me forte, sinto-me fraco, sinto-me mal, sinto-me bem, porém sinto-me, sobretudo, sinto-me…

MADELEINE, ao Policial: Tudo isto está cheio de contradições.

POLICIAL, a Chubert: E depois? E depois? (à Madeleine): Um minuto, querida amiga, com licença…

CHUBERT, dando um grande grito: Isto vai extinguir-se? Se extingue! A escuridão me rodeia. Uma só borboleta de luz se eleva lentamente…

MADELEINE, ao Policial: Querido amigo, esta farsa…

CHUBERT: É uma última fagulha…

MADELEINE (que aplaude enquanto se fecham as cortinas do pequeno palco): É muito banal. Poderia ter sido mais atraente… ou pelo menos instrutivo, não é, mas veja você…

POLICIAL, a Chubert, oculto neste momento pelas cortinas: Não, não! Você vai escapar. (à Madeleine): Ele pegou o caminho errado. Vão coloca-lo outra vez no certo.

MADELEINE: Vamos chamá-lo ao palco novamente.

Aplaudem.

A cabeça de Chubert reaparece entre as cortinas do pequeno palco e desparece novamente.

POLICIAL: Chubert! Chubert! Chubert! Você me ouve bem: tem que encontrar o Mallot. É questão de vida ou morte. E seu dever. A sorte de toda a humanidade depende de você. Não é tão difícil, basta que você se lembre. Lembre e tudo vai se esclarecer novamente. (à Madeleine) Tinha descido demais. Ele tem que voltar a subir… um pouco… em nossa estima.

MADELEINE, timidamente, ao Policial: De fato, ele se sentia bem.

POLICIAL, a Chubert: Você está aí? Está aí?

 

O pequeno palco desapareceu e Chubert reaparece em outro lugar.

CHUBERT: Estou revolvendo em minhas memórias.

POLICIAL: Utilize o método.

MADELEINE, a Chubert: Utilize o método. Escute bem o que te dizem.

CHUBERT: Já estou na superfície.

POLICIAL: Está bem, meu amigo. Está bem…

CHUBERT, à Madeleine: Você se lembra agora?

POLICIAL, à Madeleine: Está vendo? Já está melhor.

CHUBERT: Honfleur…Como o mar está azul! …Não! No Monte Saint-Michel…Não… Dieppe…Não, nunca fui mais lá… Cannes… Também não.

POLICIAL: Trouville, Deauville…

CHUBERT: Também nunca fui a estes lugares.

MADELEINE: Ele também nunca foi a estes lugares.

CHUBERT: Collioure… Os arquitetos tinham construído um templo sobre as ondas.

MADELEINE: Ele está divagando.

POLICIAL, à Madeleine: Acabe com seus jogos de palavras estúpidas.

CHUBERT: Nenhuma pista de Montbéliard.

POLICIAL: É verdade, ele também tem o sobrenome de Montbéliard. E você afirmava que não o conhecia!

MADELEINE, a Chubert: Você está vendo.

CHUBERT, bem assombrado: Ah sim, veja, a minha fé! É verdade… é engraçado, é verdade.

POLICIAL: Procure em outras partes. Vamos, rápido, as cidades…

CHUBERT: Paris, Palermo, Pisa, Berlim, Nova York…

POLICIAL: Os barrancos, as montanhas…

MADELEINE: Não são precisamente montanhas o que está faltando.

POLICIAL: Nos Andes, vejamos, nos Andes… Você já esteve lá?

MADELEINE, ao Policial: Jamais, Senhor, imagina!

CHUBERT: Não, mas conheço a geografia o suficiente para…

POLICIAL: Não precisa inventar. É preciso encontra-lo. Vamos, amigo, um pequeno esforço.

MADELEINE: Um esforço muito pequeno.

CHUBERT, num esforço doloroso: Mallot, com um t, Montbéliard com um d, com um t, com um d

Conforme a preferência do diretor de cena, reaparição luminosa, num extremo oposto do palco, do personagem citado no diálogo, com seu número de matrícula e um bastão de montanha na mão, uma corda ou esquis; também desta vez este personagem desaparece em alguns segundos.

CHUBERT: Levado pelas correntes de superfície, atravesso o oceano. Desembarco na Espanha. Sigo rumo à França. Os oficiais da alfândega me cumprimentam. Narbona, Marselha, Aix, a cidade tragada. Arles, Avignon, seus papas, suas mulas, seus palácios. Lá no longe, o Mont Blanc.

MADELEINE, que começa progressivamente  se opor ao novo itinerário de Chubert e ao Policial: A floresta te separa dele.

POLICIAL: De qualquer modo, está avançando.

CHUBERT: Entro no bosque. Que frescor! Já é noite?

MADELEINE: A floresta é densa…

POLICIAL: Não tenha medo.

CHUBERT: Ouço os mananciais. Asas chocam-se com meu rosto. Tenho o mato pela cintura. Não há atalhos. Madeleine, dê-me sua mão.

POLICIAL, à Madeleine: Não lhe dê a mão.

MADELEINE, a Chubert: A mão não, ele não quer.

POLICIAL, a Chubert: Você sairá sozinho. Olhe. Levante os olhos!

CHUBERT: O sol brilha entre as árvores. Há uma luz azul. Avanço rapidamente, os galhos se apartam. A vinte passos os lenhadores trabalham e assobiam.

MADELEINE: Talvez não sejam verdadeiros lenhadores…

POLICIAL, à Madeleine: Silêncio!

CHUBERT: A claridade do sol me guia. Saio do bosque…vou a uma aldeia rosada.

MADELEINE: Minha cor preferida…

CHUBERT: Casas baixas.

POLICIAL: Você está vendo alguém?

CHUBERT: É muito cedo. As janelas estão fechadas. O lugar está deserto. Uma fonte, uma estátua. Corro e o eco de meus sapatos…

MADELEINE, movendo os ombros: De sapato!

POLICIAL: Avance. Você está chegando… Avance sempre.

MADELEINE: Sempre, sempre, sempre, sempre!

POLICIAL: O terreno é plano. É fácil subir. Dou alguns passos e já stou ao pé da montanha.

POLICIAL: Prossiga.

CHUBERT: Eu subo. O caminho é abrupto, eu me agarro. Deixei para trás o bosque. A aldeia fica lá em baixo. Avanço. À direita, há um lago.

POLICIAL: Suba.

MADELEINE: Te peço que suba, se você puder. Se você puder!

CHUBERT: Como é abrupto! Há espinhos, pedregulhos. Passei do lago. Vejo o Mediterrâneo.

POLICIAL: Suba, suba.

MADELEINE: Suba, já que estão te mandando.

CHUBERT: Uma raposa, o último animal. E uma coruja cega. Não há pássaro. Não há fontes… Nem rastros… Não há eco. Recorro o horizonte.

POLICIAL: Você está o vendo?

CHUBERT: É o deserto.

POLICIAL: Mais alto. Suba.

MADELEINE: Suba, porque é necessário.

CHUBERT: Agarro-me nas pedras, escorrego, sujeito-me aos espinhos, agarro-me como um animal… Ah! Não suporto mais a altura! Por que devo escalar as montanhas permanentemente? Por que hei de ser sempre aquele a quem obrigam fazer o impossível?

MADELEINE, ao Policial: É impossível… É ele quem disse. (a Chubert) Você não tem vergonha.

CHUBERT: Estou com sede, com calor, estou suando.

POLICIAL: Não pare para enxugar a testa. Você fará isso mais tarde. Mais tarde. Suba.

CHUBERT: Estou tão cansado!

MADELEINE: Já! (ao Policial): Acredite em mim, senhor Inspetor Principal, isto não é surpreendente. Ele não é capaz.

POLICIAL, a Chubert: Preguiçoso!

MADELEINE, ao Policial: Ele sempre tem sido preguiçoso. Nunca chega a nada.

CHUBERT: Não há um canto de sombra. O sol está enorme. Uma fornalha. Eu me afogo. Eu me frito.

POLICIAL: Ele não deve estar muito distante, veja você, arde.

MADELEINE, sem o Policial escutá-la: Poderia mandar outro em seu lugar.

CHUBERT: Uma outra montanha surge diante de mim. É um muro sem fissura. Já não tenho mais fôlego.

POLICIAL: Mais para cima, mais para cima.

MADELEINE, muito rápido, ora ao Policial, ora a Chubert: Mais alto… Ele já está sem fôlego… mais para cima… Não deve se levantar demais por cima de nós. Será melhor que você desça. Mais para cima. Mais para baixo. Mais para cima.

POLICIAL: Suba. Suba.

MADELEINE: Mais alto. Mais baixo.

CHUBERT: Minhas mãos estão ensanguentadas.

MADELEINE, a Chubert: Mais para cima. Mais para baixo.

POLICIAL: Segure-se. Trepe.

CHUBERT, continuando sua subida, imóvel: É difícil estar sozinho no mundo! Ah, se eu tivesse tido um filho!

MADELEINE: Eu preferia ter tido uma filha. Os meninos são tão ingratos!

POLICIAL, batendo o pé: De novo estas considerações! (A Chubert) : Suba, não perca seu tempo.

MADELEINE: Mais alto. Mais baixo.

CHUBERT: Sou só um homem depois de tudo.

POLICIAL: É preciso ser até o fim.

MADELEINE, a Chubert: Seja até o fim.

CHUBERT: Nããão! … Não! Não consigo mais levantar os joelhos. Não consigo mais!

POLICIAL: Então, um último esforço.

MADELEINE: Um último esforço. Faça. Não faça. Faça.

CHUBERT: Eis aqui, eis aqui. Aqui estou. A plataforma! … Pode-se ver pelo céu, nenhum rastro de Montbéliard.

MADELEINE, ao Policial: Ele vai nos escapar, Senhor Inspetor Principal.

POLICIAL, sem ouvir Madeleine, a Chubert: Procure. Procure.

MADELEINE, a Chubert: Procure, não procure, procure, não procure. (Ao Policial) : Ele vai escapar.

CHUBERT: Não há mais… Não há mais… Não há mais…

MADELEINE: Mais o quê?

CHUBERT: Não há mais cidade, nem bosque, nem valle, nem mar, nem céu. Estou sozinho.

MADELEINE: Aqui seríamos dois.

POLICIAL: O que nos conta? O que quer dizer? E Mallot? Montbéliard?

CHUBERT: Corro sem caminhar.

MADELEINE: Ele vai voar. Chubert! Escute.

CHUBERT: Estou só. Perdi o pé. Não sinto a vertigem… Não tenho mais medo de morrer.

POLICIAL: Tudo isso é igual para mim.

MADELEINE: Pense em nós. A solidão não é boa. Você não pode nos deixar… Tenha piedade, piedade! (Ela é uma mendiga). Não tenho pão para dar aos meus filhos. Tenho quatro filhos. Meu marido está na prisão. Estou deixando o hospital. Meu bom senhor… bom senhor… (ao Policial): Ele me fez o ver!… É possível me ouvir agora, Senhor Inspetor Principal?

POLICIAL, a Chubert: Você está ouvindo a voz da solidariedade humana. (à parte): Eu o empurrei demais. Agora ele nos escapa. (Gritando): Chubert, Chubert, Chubert… Meu amigo, meu querido, nós nos perdemos.

MADELEINE, ao Policial: Eu lhe havia dito.

POLICIAL, dá uma bofetada em Madeleine: Não pedi sua opinião.

MADELEINE, ao Policial: Perdão, Senhor Inspetor Principal.

POLICIAL, a Chubert: Você deve procurar pelo Mallot, seu dever é procurar pelo Mallot, você não trairá seus amigos. Mallot, Montbéliard, Mallot, Montbéliard! Olhe, olhe! Você não vê o que vê. O que vê? Olhe diante de ti. Escute, responda, responda…

MADELEINE: Responda então.

Para fazer com que Chubert desça, Madeleine e o Policial apresentam a ele todas as vantagens da vida cotidiana e social. A ação do Policial e de Madeleine é cada vez mais grotesca, até tornar-se uma espécie de palhaçada.

CHUBERT: É uma manhã de junho. Respiro um ar mais leve que o próprio ar. Estou mais leve que o ar. O sol se dissolve numa luz maior que o próprio sol. Passo através de tudo. As formas desapareceram. Subo… Subo… Uma luz que flui… Subo…

MADELEINE: Ele está escapando! … Eu lhe havia dito, Senhor Inspetor, eu lhe havia dito. Não quero, não quero. (Falando em direção a Chubert): Leve-me pelo menos contigo.

POLICIAL, a Chubert: Você não me vai fazer isso… Eh! Eh!… Canalha!

CHUBERT, sem representar, falando a si mesmo: Posso jogar-me… por cima… Posso pular… um passo… rápido… um…

POLICIAL, em marcha militar: Um, dois. Um, dois… Eu te ensinei a manusear as armas, você era oficial da companhia… Não vai fazer-se de surdo, você não é um desertor… Não vai faltar com respeito ao seu ajudante!… A disciplina! (Toca a corneta.)... A pátria que te viu nascer precisa de ti.

MADELEINE, a Chubert: Vou lutar por ti.

POLICIAL, a Chubert: Você tem a vida, uma carreira diante de ti! Você será rico, feliz e burro! Você será chefe do Danúbio. Eis aqui sua nomeação. (Ele mostra a Chubert, que não vê, um papel: O Policial e Madeleine são os que dão agora o espetáculo).

POLICIAL, a Madeleine: Contato que você não escape, nada está perdido…

MADELEINE, a Chubert, que continua imóvel: Eis aqui ouro, Eis aqui frutas…

POLICIAL: Serviram a ti numa bandeja as cabeças de seus inimigos.

MADELEINE: Você se vingará como quiser, você se vingará sadicamente!

POLICIAL: Farei de ti arcebispo,

MADELEINE: Papa!

POLICIAL: Se assim o quiser (à Madeleine): Talvez não se poderia… (a Chubert): Si você quiser, poderá recomeçar sua vida, os primeiros passos… você se realizará…

CHUBERT, sem ver nem ouvir os outros: Eu me deslizo pela passarela, muito alto, posso voar!

 

O Policial e Madeleine se agarram a Chubert.

 

MADELEINE: Rápido!… é preciso voltar a colocar-lhe um pouco de lastro.

POLICIAL, à Madeleine: Ocupe-se de seus assuntos.

MADELEINE, ao Policial: É também um pouco de culpa sua, Senhor Inspetor Principal.

POLICIAL, à Madeleine: A culpa é sua. Você não me ajudou. Você não me compreendeu. Deram-me uma colaboradora desastrada, uma pobre idiota.

 

Madeleine chora.

MADELEINE: Oh, Senhor Inspetor Principal! Geral????

POLICIAL, à Madeleine: Uma idiota! Sim, uma idiota… idiota… idiota! (Se volta bruscamente em direção a Chubert) A primavera é bela em nossos vales, o inverno é suave neles, nunca chove no verão…

MADELEINE, ao Policial, choramingando: Fiz tudo o que pude, Senhor Inspetor Principal. Fiz tudo o que pude.

POLICIAL, à Madeleine: Tonta! Idiota!

MADELEINE: O senhor tem razão, Senhor Inspetor Principal.

POLICIAL, à Chubert, com uma voz de desespero): E a recompensa para quem encontrar o Mallot? Se você perder sua honra – está me ouvindo – te restará a fortuna, o uniforme, as honras!… O que mais você quer!

CHUBER: Eu consigo voar.

MADELEINE e o POLICIAL, agarrados a Chubert: Não! Não! Não! Não faça isso!

CHUBERT: Banho-me na luz. (Escuridão total em cena). A luz me penetra. Estou Assombro-me por existir, por existir, por existir…

VOZ TRIUNFANTE DO POLICIAL: Ele não passará do muro do assombro.

VOZ DE MADELEINE: Atenção, Chubert… não esqueça de sua vertigem.

VOZ DE CHUBERT: Sou a luz! Eu voo.

VOZ DE MADELEINE: Caia! Apague-se.

VOZ DO POLICIAL: Muito bem, Madeleine.

VOZ DE CHUBERT, de repente angustiado: Oh! Hesito… Me dói… Me lanço!…

 

Ouve-se um gemido de Chubert.

Luz em cena.

Chubert está caído numa grande cesta de papéis. Ao seu lado estão de pé Madeleine e o Policial. Um novo personagem, uma mulher, completamente indiferente à ação, está sentada à esquerda, junto à parede, em uma cadeira.

POLICIAL, a Chubert: Então, meu rapaz?

CHUBERT: Onde estou?

POLICIAL: Vira a cabeça, seu tolo!

CHUBERT: Você está aqui, Senhor Inspetor Principal? Como conseguiu entrar em minhas lembranças?

POLICIAL: Te segui… passo a passo… Felizmente!

MADELEINE: Oh, sim, felizmente!

POLICIAL, a Chubert: Vamos! Levante-se! (Ele lhe puxa pelas orelhas para levantá-lo). Se não tivesse estado presente… Eu não teria retido… Você é inconsistente, você é leve demais, não tem memória, você se esquece de tudo, você o esquece, você esquece o teu dever. Eis aqui seu defeito. Você é pesado demais, você é muito leve.

MADELEINE: Creio que é bem mais pesado.

CHUBERT: Sem dúvida, eu pensava ter chegado lá em cima. E mais além.

O comportamento de Chubert é cada vez mais de uma criança bem nova.

POLICIAL: Não foi isso que te pedi!

CHUBERT: Oh… me enganei de caminho… Estou com frio…Estou com os pés molhados…Estou com frio nas costas. Você teria um pulôver bem seco?

MADELEINE: Ah! Ele está com frio nas costas, veja!

POLICIAL, à Madeleine: Tudo isso é má vontade de sua parte.

CHUBERT, como uma criança que se defende: Não é culpa minha… Tenho buscado em todas as partes. Não encontrei… Não é culpa minha… Você me vigiou, você viu bem… Não trapaceei.

MADELEINE, ao Policial: Isto é pobreza de espírito. Como posso ter um marido assim! Ele causava melhor impressão quando era mais jovem. (A Chubert): Está vendo? (Ao Policial): Ele é astuto, Senhor Inspetor Principal, eu já lhe havia dito, e dissimulado!… Mas ele é também tão fraco… teria que superalimentá-lo para que ele engordasse.

POLICIAL, a Chubert: Você é  pobre de espírito. Como pôde ela ter um marido assim? Além disso, você causava melhor impressão quando era mais jovem. Está vendo? Você é astuto, eu já lhe havia dito, e dissimulado! Porém você é fraco e tem que engordar.

CHUBERT, ao Policial: Madeleine acabou de me dizer o mesmo. O senhor a copiou, Senhor Inspetor Principal…

MADELEINE, a Chubert: Você não tem vergonha de falar desse jeito com o Senhor Inspetor Principal?

POLICIAL, com muita raiva:Vou te ensinar a ser educado! Pobre infeliz! Pobre nada de nada!

MADELEINE, ao Policial que não o escuta: No entanto, sei cozinhar bem, Senhor. Ele tem apetite!…

POLICIAL, à Madeleine: A senhora não vai me mostrar qual é o medicamento. Conheço bem meu ofício. O garoto da senhora, ou ele balança a cabeça e cai no sono de repente, ou desmaia de qualquer jeito. Ele não tem forças! Ele precisa engordar.

MADELEINE, a Chubert: Você está ouvindo o doutor? Você agora tem a oportunidade de cair sobre seu traseiro!

POLICIAL, cada vez mais furioso: Estamos exatamente no mesmo lugar que antes! De cima para baixo, de baixo para cima, de cima para baixo, e assim por diante, e assim por diante, é o círculo vicioso!

MADELEINE, ao Policial: Ah, ele está cheio de vícios! (Com um tom triste, à Senhora que acaba de entrar e que permanece impassível e silenciosa): Não é, Senhora? A Chubert: Você vai então ter a audácia de dizer ao Senhor Inspetor Principal que não se trata de má vontade!

POLICIAL: Eu já lhe disse. Ele está pesado quando deve ser leve, leve demais quando deve ser pesado, ele está desequilibrado, ele não se liga mais à realidade!

MADELEINE, a Chubert: Você não tem noção da realidade.

CHUBERT, choramingando: Chamam-no de Marius, Marin, Lougastec, Perpignan, Machecroche… Seu último nome era Machecroche!

POLICIAL: Veja que você está a par, mentiroso! Mas é dele que precisamos, seu crápula! Você buscará forças e tentará procurá-lo. É preciso que você aprenda a ir diretamente ao objetivo. (À Senhora): Não é, Senhora? (A Senhora não responde; nem pedem que responda) Vou te mostrar como não perder tempo no caminho.

MADELEINE, a Chubert: Durante este tempo, ele escapa, o Machecroche… Ele será o primeiro, ele nem perde seu tempo, nem é preguiçoso.

POLICIAL, a Chubert: Te darei forças. Te ensinarei a obedecer.

MADELEINE, a Chubert: É preciso sempre ser obediente.

 

O Policial se senta de novo e balança sua cadeira.

 

MADELEINE, à Senhora: Não é, Senhora?

POLICIAL, gritando muito alto, à Madeleine: Você vai me trazer o café, sim ou não?

MADELEINE: Com prazer, Senhor Inspetor Principal!

 

Ela vai à cozinha.

POLICIAL, a Chubert: Estamos só nós dois!

 

No mesmo momento, Madeleine sai; também no mesmo momento, entra Nicolas, pela porta de vidro do fundo; Nicolas é alto, tem uma barba negra, os olhos inchados de sono, os cabelos revoltos e a roupa enrugada; parece alguém que acabou de se levantar, após ter dormido ainda vestido.

 

NICOLAS, entrando: Olá!

CHUBERT, com uma voz que não expressa nem esperança, nem temor, nem surpresa, mas uma constatação simples e neutra: Veja! Nicolas! Você já terminou seu poema!

 

O Policial, em contrapartida, tem um ar muito descontente com a chegada do novo personagem; ele se sobressalta, olha em direção a Nicolas com os olhos em branco, com uma certa inquietude, se levanta da cadeira e lança um olhar em direção à saída, como se tivesse vagamento o objetivo de fugir.

 

CHUBERT, ao Policial: É o Nicolas d’Eu.

POLICIAL, um pouco espantado: O Czar da Rússia?

CHUBERT, ao mesmo: Oh, não Senhor! D’Eu é seu sobrenome. D, apóstrofo, e, u. (À Senhora, que não responde:) Não é, Senhora?

NICOLAS, falando e gesticulando muito: Continuem, continuem, não se interrompam por mim! Não se incomodem!

Ele se senta à parte, no sofá vermelho.

Madeleine entra, com uma xícara de café; ela vê ninguém. Coloca a xícara no aparador e sai de novo. Ela fará o mesmo muitas vezes seguidas, sem parar, cada vez mais rápido, amontoando as xícaras até cobrir todo o aparador.

Contente com a atitude de Nicolas, o Policial suspira de alívio e logo sorri, abrindo tranquilamente e fechando sua pasta enquanto acontecem as duas réplicas seguintes:

CHUBERT, a Nicolas: Você está contente com seu poema?

NICOLAS, a Chubert: Eu dormi. Consigo descansar melhor. (à Senhora imperturbável): Não é, Senhora?

O Policial, fixando seu olhar em Chubert, amassa uma folha de papel tirada de sua pasta, jogando-a no chão. Movimento de Chubert, como se fosse pegá-la.

POLICIAL, frio: Não tenha pena. Não e pegue. Ela está bem aí. (Encarando Chubert). Vou te devolver as forças. Você não consegue encontrar o Mallot, você tem buracos na memória. Vamos tentar tapar os buracos da sua memória!

NICOLAS, tossindo: Perdão!

POLICIAL, piscando o olho para Nicolas, como entre companheiros, dizendo em seguida com um tom de submissão: Nada mal! (Humildemente também a Nicolas): O Senhor é poeta? (À Senhora impassível): É um poeta! (Tira logo de sua pasta um enorme pedaço de pão, e o estende a Chubert) Coma!

CHUBERT: Acabei de jantar, Senhor Inspetor Principal! Não tenho fome, nem como muito à noite…

POLICIAL: Coma!

CHUBERT: Estou sem vontade. Dou-lhe certeza.

POLICIAL: Ordeno que você coma, para que tenha forças, para tapar os buracos de sua memória!

CHUBERT, lastimando: Ah, se o senhor me obriga…

 

Com o ar de desagrado, ele dirige lentamente a comida em direção à boa, gemendo.

POLICIAL: Mais rápido! Vamos, mais rápido, já perdemos tempo demais assim!

Chubert morde, com muita má vontade, o pedaço de pão rugoso.

CHUBERT: É como a casca de uma árvore, de um carvalho, provavelmente. (À Senhora impassível): Não é, Senhora?

NICOLAS, sem sair do lugar, ao Policial: Qual é sua opinião, Senhor Inspetor Principal, sobre a renúncia ao desapego?

POLICIAL, a Nicolas: Um instante… desculpe. (A Chubert): Está bom, está bem saudável. (A Nicolas): Eu, o senhor sabe, meu dever é simplesmente aplicá-la.

CHUBERT: É muito duro!

POLICIAL, a Chubert: Vamos! Não enrole! Rápido! Mastigue!

NICOLAS, ao Policial: O senhor não é somente um funcionário, o senhor também é um ser pensante! Como junco… O senhor é uma pessoa…

POLICIAL: Não sou mais do que um soldado, Senhor…

NICOLAS, sem ironia: Eu lhe felicito.

CHUBERT, gemendo: É muito duro!

POLICIAL, a Chubert: Mastigue!

Chubert, como  uma criança, à Madeleine, que continue a entrar e sair, a colocar as xícaras no aparador (ou mesa).

 

CHUBERT: Madeleine… Madelei-ei-ne…

 

Madeleine sai, entra, sai, entra, sem dar atenção.

 

POLICIAL, a Chubert: Deixei-a em paz! (Dirigindo, do seu lugar, com gestos, a mastigação de Chubert). Coloque suas mandíbulas para trabalhar!

CHUBERT, chorando: Perdão, Senhor Inspetor Principal! Eu lhe suplico! (Ele mastiga).

POLICIAL: As lágrimas não me impressionam.

CHUBERT, que mastiga sem parar: Meu dente quebrou, estou sangrando!

POLICIAL: Mais rápido, vamos! Depressa! Mastigue! Mastigue! Engula!

NICOLAS: Pensei muito sobre a possibilidade de renovação do teatro. Como poderia haver algo novo no teatro? Qual é sua opinião sobre isso, Senhor Inspetor Principa?

POLICIAL, a Chubert: Vamos! Rápido! (A Nicolas): Não entendo sua questão.

CHUBERT: Ai!

POLICIAL, a Chubert: Mastigue!

 

Entradas e saídas cada vez mais frequentes de Madeleine.

NICOLAS, ao Policial: Sonho com um teatro irracionalista.

POLICIAL, a Nicolas, enquanto vigia Chubert: Um teatro não aristotélico?

NICOLAS: Exatamente. (À Senhora impassível): Qual sua opinião, Senhora?

CHUBERT: Meu paladar está gasto e minha língua retalhada!…

NICOLAS: O teatro atual, de fato, é ainda prisioneiro de suas velhas formas, ele não passou além da psicologia de Paul Bourget…

POLICIAL: Sim, de um Paul Bourget! (A Chubert): Engula!

NICOLAS: O teatro atual, como o senhor vê, querido amigo, não corresponde ao estilo cultural de nossa época, ele não está de acordo com o conjunto de manifestações do espírito de nossa época…

POLICIAL, a Chubert: Engula! Mastigue!

NICOLAS: Com isso, é necessário ter em conta a nova lógica, as revelações que aporta uma nova psicologia…uma psicologia dos antagonismos…

POLICIAL, a Nicolas: Psicologia, sim, Senhor!…

CHUBERT, de boca cheia: Psico…lo…gia…nov…

POLICIAL, a Chubert: Coma! Você falará quando tiver acabado de comer! (A Nicolas): Eu lhe escuto. Um teatro surrealizante?

NICOLAS: Na medida que o surrealismo é onírico…

POLICIAL, a Nicolas: Onírico? (A Chubert): Mastigue! Engula!

NICOLAS: Inspiram-me…(À Senhora impassível): Não é, Senhora? (Novamente a Chubert): Inspiram-me uma outra lógica e uma outra psicologia. Aportaria da contradição na não-contradição, da não-contradição ao que o sentido comum julga contraditório. Abandonaremos o princípio da identidade e da unidade dos caracteres em benefício do movimento, de uma psicologia dinâmica…Não somos nós mesmos…a personalidade não existe. Em nós não há senão forças contraditórias ou não-contraditórias. Além disso, o senhor terá interesse a ler Lógica e Contradição, o excelente livro de Lupasco…

CHUBERT, chorando: Ai, ai! (A Nicolas,enquanto mastiga e geme) O senhor abandona assim… unidade…

POLICIAL, a Chubert: Isto não é da sua conta! Co-ma!

NICOLAS: Os caracteres perdem sua forma no informe do devir. Cada personagem é menos ele mesmo do que o outro. (À Senhora impassível): Não é, Senhora?

POLICIAL, a Nicolas: Assim será ainda mais. (A Chubert): Coma! (A Nicolas): Um outro que ele mesmo?

NICOLAS: É evidente. Quando à ação e a causalidade, não há o que falar. Devemos ignorá-las totalmente, pelo menos em sua forma antiga, grosseira demais, evidente demais, falsa, como tudo que é evidente… Nada mais de drama nem de tragédia: o trágico se faz cômico, o cômico é trágico e a vida se torna alegre… a vida se torna alegre…

POLICIAL, a Chubert: Engula! Coma! (A Nicolas): Não estou plenamente de acordo com o senhor… Embora eu aprecie muito suas ideias gerais… (A Chubert): Coma! Engula! Mastigue! (A Nicolas): No que toca a mim, sigo sendo aristotelicamente lógico, fiel a mim mesmo, fiel ao meu dever, respeitoso com meus chefes… Não acredito no absurdo, tudo é coerente, tudo se torna compreensível… (A Chubert): Engula! (A Nicolas):… graças ao esforço do pensamento humano e da ciência.

NICOLAS, à Senhora: Qual é a opinião da senhora?

POLICIAL: Avanço, senhor, avanço passo a passo, persigo o insólito… Quero encontrar Mallot com um t no final. (A Chubert): Rápido, rápido, mais um pedaço, vamos, mastigue, engula!

 

Entradas e saídas de Madeleine, cada vez mais rápidas, com as xícaras.

 

NICOLAS: O senhor não compartilha com minha opinião. Nem o desejo.

POLICIAL, a Chubert: Rápido, engula!

NICOLAS: Constato, no entanto, para sua honra, que o senhor está a par do assunto.

CHUBERT: Madelei-eine! Madelei-eine! Com a boca cheia, congestionada, ele grita desesperadamente.

POLICIAL, a Nicolas: Sim, isso está nas minhas preocupações particulares. Interessa-me profundamente, mas fico cansado demais só de imaginar…

Chubert morde outra vez a casca, colocando um pedaço grande na boca.

 

CHUBERT: Ai!

POLICIAL: Engula!

CHUBERT, com a boca cheia: Estou tentando… Estou… fazendo…o que posso! Não posso…

NICOLAS, ao Policial, compenetrado por seus esforços de fazer com que Chubert coma: O senhor já pensou também na realização prática deste teatro novo?

POLICIAL, a Chubert: Pode sim! Você não quer! Todo mundo pode! Tem que querer, você pode fazer muito bem! (A Nicolas): Desculpe-me, caro senhor. Não posso falar-lhe neste momento, não tenho o direito, estou no meu horário de trabalho!

CHUBERT: Deixe-me engolir aos pedacinhos!

POLICIAL: Sim, mas, mais rápido, mais rápido, mais rápido! (A Nicolas): Voltaremos a discutir este assunto!

CHUBERT, com a boca cheia (está ao nível mental de um bebê de dois anos e soluça): Ma-ma-ma-de-lei-lei-ne!!!

POLICIAL: Chega de besteira! Cale a boca! Engula! (A Nicolas, que não o ouve mais, pois está absorvido por suas meditações): Ele tem anorexia. (A Chubert): Engula!

CHUBERT, ao passar a mão pela testa para enxugar seu suor, tem uma náusea: Maa-de-leine!

POLICIAL, com a voz estridente: Cuidado! Não vomite, já que isso não servirá de nada. Farei com que você engula o que vomitar.

CHUBERT, levando as mãos os ouvidos: Isto faz meus ouvidos doerem, Senhor Inspetor…

POLICIAL, gritando sem parar: …Principal!

CHUBERT, com a boca cheia, as mãos nos ouvidos: …Principal!

POLICIAL: Escute bem o que te digo, Chubert, escute. Tire as mãos das orelhas, não as tape, senão as taparei eu mesmo, aos tapas… Ele tira as mãos à força.

NICOLAS, que, desde as últimas réplicas, parece seguir a cena com o maior interesse): Mas… mas… o que vocês fazem aqui?

POLICIAL, a Chubert: Engula! Mastigue! Engula! Mastigue! Engula! Mastigue! Engula! Mastigue! Engula! Mastigue! Engula!

CHUBERT, com a boca cheia, diz palavras incompreensíveis: E…gl….o comm…sab…lumnas…ivas….ilhas…

POLICIAL, a Chubert: O que você disse?

CHUBERT, que cospe na mão o que tinha na boca: O que o senhor sabe? Como são belas as colunas dos templos e os joelhos das moças!

NICOLAS, do seu lugar, ao Policial que continua ocupado de sua tarefa, não o escuta: Mas o que o senhor faz com esta criança?

POLICIAL, a Chubert: Você diz besteiras ao invés de engolir! À mesa, não se deve falar!  Vejam este moleque! Não tem vergonha! Não tem filhos! Engula tudo! Rápido.

CHUBERT: Sim, Senhor Inspetor Principal… (Ele volta a colocar na boca o que havia cuspido na mão e, em seguida, com a boca cheia, encara o Policial): Pronto, já fiz.

POLICIAL: E isso também. (Ele coloca na boca de Chubert uma outra fatia de pão). Mastigue! Engula!

CHUBERT, que se esforça penosamente para mastigar e engolir, sem conseguir): …dêra….érro…

POLICIAL: O quê?

NICOLAS, ao Policial: Ele quer dizer madeira, ferro. Ele não poderá engolir. O senhor não vê? (À Senhora impassível): Não é, senhora?

POLICIAL, a Chubert: Isto é má vontade dele!

MADELEINE, que entra uma última vez com as xícaras, que coloca sobre a mesa; ninguém tocará nelas, ninguém prestará atenção: Aqui está o café. É chá!

NICOLAS, ao Policial: Ele está se esforçando, a pobre criança! Esta madeira, este ferro, tudo está entalado em sua garganta!

MADELEINE, a Nicolas: Se ele quiser se defender, ele poderá fazer isso sozinho!

 

Chubert tenta gritar, porém não consegue e se sufoca.

 

POLICIAL, a Chubert: Mais rápido, mais rápido, te digo! Engula tudo de uma vez!

Exasperado, o Policial vai em direção a Chubert, abre-lhe a boca, se prepara a lhe forçar seu pinho em sua garganta; previamente, o Policial terá arregaçado a manga.

Nicolas, bruscamente, se levanta, se aproxima, em silêncio e com um tom ameaçador ao Policial, se planta imóvel diante dele)

MADELEINE, pasma:  O que está acontecendo?

O Policial solta a cabeça de Chubert, que olha para o palco sem se levantar da cadeira, nem deixar de mastigar, sem falar; o Policial está estupefato com a intervenção de Nicolas; com uma voz diferente, tremulante, quase chorosa, ele diz a Nicolas):

POLICIAL, a Nicolas: Mas, senhor Nicolas d’Eu, não faço senão mais do que cumprir meu dever. Não estou aqui para perturbá-lo! Devo averiguar onde se encontra Mallot, com um t só no final. Não há outro método. Não tenho escolha. Quando ao amigo do senhor, que também se tornará meu amigo, espero, um dia… (Ele mostra Chubert sentado, engasgado, que olha e mastiga)… Eu o estimo, sim, de verdade! O senhor também, meu caro Senhor Nicolas d’Eu, também lhe estimo. Ouvi falar bastante sobre suas obras, sobre o senhor…

MADELEINE, a Nicolas: O senhor te estima, Nicolas.

NICOLAS, ao Policial: O senhor mente!

POLICIAL e MADELEINE: Oh!!

NICOLAS, ao Policial: A verdade é que não escrevo mais, nem me gabo!

POLICIAL, aterrorizado: Ah, sim, senhor, sim, o senhor escreve! (Com um terror crescente). Deve-se escrever.

NICOLAS: Inútil. Temos Ionesco e Ionesco, já é o bastante!

POLICIAL: Mas, Senhor, sempre há o que dizer… (Ele treme de medo; à Senhora): Não é, senhora?

A SENHORA: Não! Não! Não é Senhora: Senhorita!…

MADELEINE, a Nicolas: O Senhor Inspetor Principal tem razão. Sempre há o que dizer. Pois o mundo moderno está em decomposição, você pode ser uma testemunha da decomposição!

NICOLAS, aos berros: Não me importo!

POLICIAL, tremendo cada vez mais: Ah, sim, senhor!

NICOLAS, rindo com desprezo na cara do Policial: Não me importo que o senhor me estime ou não! (Ele agarra o Policial pela lapela de sua jaqueta.) O senhor não vê que o senhor está louco?

 

Chubert mastiga e engole, com uma boa vontade heroica. Contempla o palco, também assustado. Ele parece se sentir culpado; sua boca está cheia demais para poder intervir.

MADELEINE: Vejamos, vejamos, mas vejamos…

POLICIAL, no embalo de sua indignação, de desorientação, se senta, se levanta de novo, fazendo cair sua cadeira, que acaba se quebrando) Eu? Eu?

MADELEINE: Tomem o café!

CHUBERT, gritando: Já não tenho mais dores, já engoli tudo! Já engoli tudo!

 

Durante as réplicas que seguem, não se presta atenção alguma em Chubert.

 

NICOLAS, ao Policial: Sim, o senhor, o senhor mesmo!

POLICIAL, afogando-se em lágrimas: Oh! … é forte demais! (à Madeleine, que arruma as xícaras na mesa): Obrigado pelo café, Madeleine! (Ele volta a chorar). É malvado, é injusto!…

CHUBERT: Não tenho mais dores, engoli tudo, não tenho mais dores! Ele se levanta, caminha com alegria pelo tablado, dá pequenos saltos.

MADELEINE, a Nicolas, que parece ser cada vez mais perigoso ao Policial: Você não vai violar as leis da hospitalidade!

POLICIAL, a Nicolas, defendendo-se: Não quis perturbar seu amigo! Eu lhe juro! É ele que me fez entrar aqui a força. Eu não queria, eu estava com pressa… Eles insistiram…Os dois…

MADELEINE, a Nicolas: Ele disse a verdade!

CHUBERT, da mesma forma que anteriormente: Não tenho mais dores, engoli tudo e posso ir brincar!

NICOLAS, cruel e frio, ao Policial: Corrijam-se. Não é esta razão pela qual tenho rancor! Isto é dito em tal tom que Chubert interrompe suas brincadeiras. Todo movimento acaba, os personagens têm seus olhos fixos em Nicolas, árbitro da situação.

POLICIAL, articulando com dificuldade: Por que então, meu Deus? Eu não lhe fiz coisa alguma!

CHUBERT: Nicolas, jamais poderia acreditar que você fosse capaz de semelhante ódio.

MADELEINE, cheia de compaixão pelo Policial: Pobrezinho! Seus grandes olhos foram queimados por todo o espanto da terra… Que pálida está sua face… Suas amáveis feições estão desfeitas… Pobrezinho, pobrezinho!…

POLICIAL, enlouquecido: Já lhe agradeci pelo café, Madeleine? (A Nicolas): Não sou nada mais do que instrumento, Senhor, um soldado ligado pela obediência, o trabalho; sou um homem correto, honrado, honorável, honorável!… E além disso, só tenho vinte anos, Senhor!…

NICOLAS, implacável: Isto não me importa, eu tenho quarenta e cinco!

CHUBERT, contando nos dedos: Mais do que o dobro.

 

Nicolas saca uma enorme faca.

 

MADELEINE: Nicolas, pense bem antes de agir!…

POLICIAL: Meu Deus, meu Deus!… Ele bate os dentes.

CHUBERT: Ele está tremendo, deve estar com frio!

POLICIAL: Sim, estou com frio! Ah!!! Ele grita, pois Nicolas dá voltas ao seu redor a passos lentos, agitando a faca.

MADELEINE: No entanto, os radiadores funcionam muito bem… Nicolas, seja prudente!

 

O Policial, prestes a cair, no ápice do terror, ouve ruídos.

CHUBERT, em voz alta: Isso cheia mal… (Ao Policial): Não é bom fazer isso na calça.

MADELEINE, a Chubert: Você não se dá conta da situação? Coloque-se no seu lugar! (Ela olha para Nicolas). Que olhar! Ele não está brincando!

Nicolas levanta sua faca.

 

POLICIAL: Socorro!

MADELEINE, sem dar um passo, nem Chubert também: Nicolas, você ficou todo vermelho! Atenção, cuidado com a apoplexia! Vejamos, Nicolas, você poderia ter sido seu pai!

Nicolas fere o Policial com sua faca uma vez, que gira sobre si mesmo.

CHUBERT: Tarde demais para impedir.

POLICIAL, dando voltas: Viva a raça branca!

 

Nicolas, com a boca torcida, feroz, fere pela segunda vez.

POLICIAL, sempre girando: Gostaria…de uma condecoração póstuma…

MADELEINE, ao Policial: Você a terá, querido. Irei telefonar ao Presidente. (Nicolas desfere a faca pela terceira vez) Pare, pare!

CHUBERT, com ar de reprovação: Vejamos, Nicolas!

POLICIAL, enquanto Nicolas, imóvel, continua com a faca na mão, gira por uma última vez sozinho: Eu sou…uma vítima…do dever!

Em seguida, ele esfalece, ensaguentado.

 

MADELEINE, se precipitando sobre o cadáver do Policial e comprovando sua morte): Justo no coração, pobrezinho! (A Chubert e Nicolas): Ajudem-me! (Nicolas joga fora sua faca ensaguentada, e logo os três, sob o olhar da Senhora impassível, levam o corpo para a poltrona.) É lamentável que isto tenha acontecido em nossa casa! (O corpo é colocado sob a poltrona. Madeleine levanta sua cabeça e lhe colocada uma almofada sob a nuca.) Assim são as coisas! Pobrezinho! (A Nicolas): Vamos sentir falta deste jovem que você matou. Ah, você, com seu ódio insensato da polícia! O que vamos fazer agora? Quem vai nos ajudar a encontrar Mallot? Quem? Quem?

CHUBERT: Talvez eu tenha me apressado demais.

MADELEINE: Agora você admite isso. Vocês sempre são assim…

CHUBERT: Sim, nós somos assim…

MADELEINE: Vocês agem sem pensar, e depois se arrependem! Temos que encontrar o Mallot! Seu sacrífico (ela aponta o Policial) não deve ser inútil. Pobre vítima do dever!

NICOLAS: Eu encontrarei o Mallot para vocês.

MADELEINE: Bravo, Nicolas!

NICOLAS, ao corpo do Policial: Não. Seu sacrifício não terá sido em vão. (A Chubert): Você vai me ajudar.

CHUBERT: Ah, não! Não quero mais recomeçar!

MADELEINE, a Chubert: Você não tem coração, é preciso fazer qualquer coisa por ele, vejam! Ela mostra-lhe o Policial.

CHUBERT, batendo o pé como uma criança triste, choramingando: Não! Não quero! Não! Não quero!

MADELEINE: Não gosto dos maridos desobedientes! O que querem dizer estes modos? Você não tem vergonha? (Chubert chora, mas parece resignar-se).

NICOLAS, que se senta no lugar do Policial e dá um pedaço de pão a Chubert: Vamos! Coma, coma, coma, para tapar os buracos da sua memória!

CHUBERT: Não estou com fome!

MADELEINE: Você é insensível? Obedece o Nicolas!

CHUBERT, que pega o pão e morde a parte de dentro dele: Isto faz mal!

NICOLAS, com a voz do Policial: Nada de chiliques! Engula! Mastigue! Engula! Mastigue!

CHUBERT, de boca cheia: Eu também, eu sou uma vítima do dever!

NICOLAS: Eu também.

MADELEINE: Nós somos todos vítimas do dever! (A Chubert): Engula! Mastigue!

NICOLAS: Engula! Mastigue!

MADELEINE, a Chubert e a Nicolas: Engulam! Mastiguem! Mastiguem! Engulam!

CHUBERT, mastigando, à Madeleine e Nicolas: Mastiguem! Engulam! Mastiguem! Engulam!

NICOLAS, à Madeleine e Chubert: Mastiguem! Engulam! Mastiguem! Engulam!

A Senhora se dirige em direção aos outros três.

A SENHORA: Mastiguem! Engulam! Mastiguem! Engulam!

 

Enquanto isso, todos os personagens se ordenam reciprocamente a engolir e mastigar, a cortina cai.

 

CORTINA

 

Setembro de 1952.

 

NOTAS DO TRADUTOR:

 

1-No texto-fonte o termo “calva”, apócope de calvados, refere-se a uma bebida alcoólica fabricada na região homônima, na Normandia, sendo similar à cidra e à base de maçã ou pera.

 

2-No texto-fonte “primevères”, flores da família das Primuláceas, comumente conhecidas como “prímulas” ou “primaveras”.