A literatura-curumim de Clarice Lispector – Raquel Wandelli Loth
A literatura-curumim de Clarice Lispector
Raquel Wandelli Loth*
O inumano é a matéria mais preciosa às lendas indígenas, onde desfilam guerreiros camuflados em forma de lua, noivas metamorfoseadas em nenúfares, homens conquistadores com devir-boto, mestiços com devir-índio, índio com devir-onça. É lá, nessa origem perdida, que Clarice Lispector (1987) fez proliferar a produção imaginária da literatura-curumim, ao escrever Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras, um livro-calendário que perfaz o ciclo de 12 meses, uma lenda para cada mês. Personagens inscritos na indeterminação humano/inumano desfilam nesse retorno literário seletivo ao folclore brasileiro: Pedro Malazarte, Curupira, Saci-Pererê, Negrinho do Pastoreio, Yara Sereia, o Uirapuru. Reunidas com o propósito de iniciar as crianças no universo da mitologia indígena brasileira, as fábulas reescrevem os chamados mitos de origem em sua vertiginosa produção espiral.
Em Imagem-tempo, Deleuze (2013) reinventa o conceito de fabulação em favor de uma perspectiva literária que permita derivar a análise da narrativa em sua dimensão mítica, fora do regime de verdades. Motivado pela tensão entre verdade e mentira em Nietzsche e reelaborando sua tradição bergsoniana, o filósofo retoma, sobre outras categorias, a formulação de potência do falso. Emerge dessa reconfiguração o conceito de fabulação, em oposição à ideia de ficção, que se coloca, nesses termos específicos, como antítese de um modelo real.
Operando como uma máquina plugada no ambiente social, político, cultural, institucional, a fabulação efetua a experimentação do real através de acontecimentos, de memórias, de lendas, de documentos. Sobretudo experimenta articulando-se com o não dito, com aquilo que de alguma forma se apagou ou se esqueceu. Desterritorilização da língua, desvio da norma, a fabulação faz com que um povo se reconheça naquilo que não é representação, mas existe e é tão real que vibra. A metodologia que se busca armar aqui procura, no espaço-tempo fora da dicotomia e do cronos, possibilidades de encenar o inumano. Inspira-se e encoraja-se no conceito deleuziano de fabulação, na ênfase de Agamben em um mundo por vir em que a natureza tem voz e, ainda, por esse modo fabulatório e encantatório da narrativa de Clarice.
Narrativa forte da experiência de infância com o inumano, a fábula e a lenda instauram esse estado de encantamento em que a natureza toda fala. Em seu estudo sobre a relação entre o presépio e a fábula no processo de destruição da experiência e da infância, Agamben (2008a) diz que o que separa essas duas representações é o gesto. Instituindo o gesto de fixidez dos papéis que cabem ao homem, aos animais e aos objetos e recolhendo a natureza ao seu mutismo, o presépio devolve o humano à sua função econômica da qual a fábula o havia desviado.
Enquanto na fábula tudo é gesticulação ambígua do direito e da magia, que condena ou absolve, proíbe ou permite, enfeitiça ou desencanta […] no presépio, ao contrário, o homem é restituído à univocidade e à transparência do seu gesto histórico. (AGAMBEN, 2008a, p. 154).
Enquanto o presépio é um evento cairológico, representação da historicidade que vem ao mundo através do nascimento messiânico, marco de contagem do tempo histórico, o tempo da fábula é o da suspensão aiônica. Tempo da eternidade do mito intersectando o tempo do cronológico, tempo originário atravessando o tempo da história, “reino de criança”. Tempo da eternidade do mito versus tempo do desencatamento da história. Dois artefatos perdidos revelam essa transição do modo fábula para o modo presépio atravessada por um acontecimento ontológico dramático: a passagem de um mundo onde tudo e todos têm voz, de uma natureza falante, para o mundo da palavra, onde só o homem fala.
Por isso, enquanto o homem, encantado, emudece, a natureza, encantada, toma na fábula a palavra. Com essa troca de palavra e silêncio, de história e natureza, a fábula profetiza o próprio desencanto da história. (AGAMBEN, 2008a, p. 153).
Mergulhando no mundo encantatório do sem-tempo, Clarice sugere uma metodologia fabulatória, já muito conhecida no pensamento cosmogônico dos nossos índios. Nela, a explicação para o aparecimento dos modos de existência não-humanos se projeta em um mundo possível, que é o mundo do indefinido, sempre anterior à fratura maior do advento do conceito de Homem e de História. Suspender as origens históricas dadas (fictícias) e fecundar a narrativa na perda (real) das origens: saúde de infância, delírio produtivo do imaginário em busca exploratória de “como nasceram”. Nos devires de uma narrativa cosmogônica, os elementos não realizam outra gênese e não se atualizam de outra forma que não seja na condivisão.
O mito contém uma verdade universal ao pensamento ameríndio: a de que na origem de tudo, nos tempos do “era uma vez”, humanos e bichos viviam em indiferenciação. Convocado a responder o que é mito, Lévi-Strauss (apud VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 354) oferece a definição que lhe parece mais profunda. “Se você perguntasse a um índio americano, é muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não se distinguiam.” A investigação mais grave do sentido de inumano se dá nesse confluir rizomático das linhas da literatura com as linhas da antropologia e da filosofia.
Para o pensamento humanista vulgar e para o darwinismo social, os animais são projetos inacabados de seres mais complexos e os índios serão sempre a infância da humanidade que não evoluiu, como os chimpanzés. Nessa condição de incompletude, miséria simbólica e inaptidão para a cultura, o evolucionismo popular nega ao índio, como nega à criança, a potência de serem em si mesmos. “Por muito tempo a antropologia lutou para que o índio deixasse deser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável estado de ‘branco’ ou de ‘civilizado’” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 137).
Desafio dessa visão criacionista invertida: para o perspectivismo ameríndio, homens não são animais que evoluíram, do contrário, os animais devêm dos humanos. Pela força dos devires reversíveis, homens e animais sobem e descem na escalada da espécie, em direção à cosmologia reintegradora do universo sem que haja nesse movimento um sentido darwinista de evolução. Como nos mitos de criação, um devir se faz sempre na direção da força minoritária, movimento que subverte a ideologia do evolucionismo.Mulher não devém homem, índio não devém branco, escritor não devém escritor, mostram Deleuze e Guattari (1997, p. 17), com a ideia de uma literatura menor.
Se o escritor-xamã não ocupa a perspectiva de um sujeito reificado como modelo superior, é para que ele devenha qualquer coisa, menos ele próprio. Menos esse “eu” maior: o autor, o homem, o sujeito ou o Deus personalizado. Os movimentos de minoração do “eu”, pelos quais ele passa necessariamente para transitar no espaço da escritura, fazem com que o outro ascenda como maioridade. Sem o deslocamento regressivo do sujeito da escrita o devir não acontece. É esse o sentido involucionista dos devires: a transformação promove a fuga do ser em direção a um fora. Não se trata de uma regressão a um princípio, mas, ao contrário, de “uma involução, onde a forma não para de ser dissolvida para liberar tempos e velocidades” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 56).
Nas lendas indígenas da Amazônia, humanos devêm seres de todas as espécies e reinos: bichos do céu e da terra, montanhas, rios, lua, sol, estrelas. E os animais, por sua vez, devêm de seres humanos enfeitiçados e escondidos sob a máscara animal que, no xamanismo, funciona como um transportador corpóreo para múltiplos devires. Tendo nascido na direção humano-bicho, os animais não são o que nós fomos ontem, mas o que nós seremos um dia. Essa é a lógica involucionista do devir que Clarice Lispector compreendeu e colocou em funcionamento em sua reescritura das lendas indígenas brasileiras.
O xamã é um ser transespecífico, preparado física e espirtualmente para capturar outras perspectivas, entrar em outros corpos e retornar a si. Ao devir algo que não é ele mesmo e dar vida ao texto, o escritor xamânico recolhe o autor que o engendrou e fica apenas como vestígio. Nas lendas, o autor devém minoritariamente até uma posição “sem sujeito”, até um desfazimento que culmina com o apagamento do seu próprio corpo, ao ponto de sua assinatura ser apenas um traço indicativo dessa ausência, como nos mostra Barthes, em “A morte do autor” (1984). Nesse apagamento do sujeito-autor, em que o texto se torna a causa e não o efeito de um “eu pensante” (NIETZSCHE, 2012), é o próprio texto que permanece – e não o autor – como um corpo animal que se reanima a cada leitura. Esse fenômeno xamânico de sublevação do eu na escrita opera radicalmente na lenda:
Uma lenda, seu nome indica, exige ser lida, e mais ainda, exige ser relida, incessantemente relida, ou seja, incessantemente transmitida. Ela não faz mais que contar uma história, geralmente falsa ou exagerada, marcada pelo maravilhoso. (DIDI-HUBERMAN (1988, p. 20).
Com essa afirmativa, Didi-Huberman mostra que o elemento fundamental de continuidade e difusão da lenda não está no seu conteúdo, mas na sua própria transmissão ou na sua própria tradição. A eficácia das lendas, ele diz, está na “sua capacidade de permanecer no jogo de suas transformações”. Assim procede-se a transformação do imóvel, de uma tradição que permanece como texto apesar de todo sujeito que cola, corta, conta e reconta a narrativa, e é graças ao seu apagamento no processo de transmissão que a lenda vinga. Esse movimento imperceptível, esse deslocamento de uma imobilidade faz das lendas uma narrativa em devir. Como mostra Eduardo Jorge (2011, p. 181):
por mais que existam sujeitos que se apropriem da lenda, lendo-a e relendo-a, existe uma ausência de sujeito que faz com que ela percorra diversos espaços e tempos e que em cada região tal história exista de um modo mais particular.
Tendo em mãos a matéria-segunda de um texto que só permanece como releitura, Clarice Lispector ingressa no jogo “sem sujeito” das lendas indígenas, radicalizando a instância impessoal da escritura que ela experimentava com o pronome it. Conforme escreve Eduardo Jorge, o modo “sem sujeito” produz nas narrativas um resíduo duradouro que permite o montar e remontar imagens de outras épocas.
É nas leituras e nas releituras que as lendas se constituem como uma tradição constantemente alterada, mas que mantêm algo que permanece como se tais leituras trouxessem à tona a fina película que mantém o arcaico pulsante. (JORGE, 2011, p. 180).
Faz parte da delicada ontologia da eficácia das lendas e mitos o indiscernimento entre narrativa e verdade que a história moderna perdeu. Mythos, define Nancy (2014), significa “o dizer de alguma coisa, pelo qual se faz conhecer a coisa, o caso”. No nosso tempo, os mitos permanencem como marcas de uma ausência divina que se estabelece nessa separação entre história e verdade. Ela, a verdade imediata da narrativa de origem, não pode mais se apresentar diretamente quando os deuses se retiraram do mundo, quando “falta o corpo dos deuses”. Chama-se mythos, escreve Nancy (2014), “o relato das ações e das paixões divinas, entre as quais há sempre o que olha o mundo e sua marcha, o homem e sua sina”.
Mesmo com a inscrição de um narrador moderno em primeira pessoa (que, sabemos, não guarda nenhuma coincidência com a pessoa do autor), o arcaico permanece ali, vivo, derivando sentidos, mas reapresentando a verdade dos mitos da criação. Mesmo alterando a narrativa onisciente dos mitos, das lendas e das fábulas com expressões do seu tempo. É porque essa voz, que não conhece a mentira, parece devolver um corpo aos deuses e devolver à narrativa a sua verdade de palavra. Literatura pede que a verdade prossiga: “Mito desdobra até o fim o interminável de seu relato e sua verdade segundo a qual, bem longe de se terminar uma interminável narrativa, ela se eternaliza na terminação de cada relato.” (NANCY, 2013).
Nessa literatura muito pouco visitada pelos críticos (talvez julgada também de uma autoria menor), a assinatura de Clarice Lispector vai processar o seu apagamento. E vai reatualizar o jogo “sem sujeito” que sustenta as lendas, mitos, histórias orais, fábulas e também a poesia, como faz Derrida em Che cos’è la poesia? (2001, p. 113), ao delegar a assinatura do poema ao outro. “Um poema eu não o assino jamais. O outro assina”. Sua inserção mantém e realimenta o sentido arcaico e imediato da indiscernibilidade e comunicabilidade entre homens e animais. Assim como a poesia, a lenda, se existe, é somente no apagamento do sujeito. É no modo “sem sujeito” que ela se abre para as releituras e nele que processa um fechamento (como o poema-ouriço de Derrida), para preservar o seu segredo e o seu silêncio.
Lidas e relidas, as lendas são ditadas, copiadas e coladas ao coração – o lugar do corpo onde o aprendizado se memoriza, no sentido aristotélico (ridicularizado sob a égide do cartesianismo e do saber cientificista). Nele, e não no cérebro, no modo do afeto, e não da lógica, o poema-ouriço se entrega à autoria do outro, desconstruindo a separação entre o sensível e o inteligível, entre as palavras e o que elas representam. Como no poema, o eu da lenda, se existe, é só para sabê-la par coeur, nos faz ver Derrida (2001, p. 114): “Chamo poema aquilo que ensina o coração, que inventa o coração, enfim aquilo que a palavra coração parece querer dizer”.
Difundidas pelo acometimento desse desejo de um eu saber um corpo-texto de cor, as lendas indígenas propagam uma narrativa que vem da mesma volição de conhecer – par coeur – o outro animal e a natureza. Desejo de sabê-lopelos sentidos e pelo imaginário que não se deixam determinar pelo conhecimento racional. Retornar aos mitos da criação e à indiscernibilidade entre homens e animais para a cultura ocidental implica, assim, produzir uma elipse na literatura – da ordem do tempo e do sentido – e uma eleição, uma escolha – da ordem do corpo.
“Como apareceram os bichos” conta a história da transformação de homens em animais, começando, ao modo-derrida, por atribuir ao outro (da escritura) a sua autoria: “Os Maués dizem que no tempo mais antigo do mundo só havia pessoas e nem um animal.” (LISPECTOR, 1987, p. 48). Sendo mais um eu de coração desejante que toma posse provisória da lenda, reconto-a com a saliva dessa outra. O acontecimento da transformação teve origem em um evento planejado pela tribo. Designado para receber e guiar os convidados até o local da festa, o índio Hêté-nacop foi avisado no meio do caminho que sua noiva havia chegado antes dele para dançar e namorar com outros homens. Então se transformou em um pássaro veloz e foi até o local para conferir a versão do seu informante.
Ao ver a dança alegre da índia com outros homens, furioso de ciúmes, voltou a se transformar em gente e pediu à chuva, ao raio e ao trovão para fazerem cair uma grande tempestade. Foi aí que se cumpriu a ameaça do noivo traído de que haveria uma “grande mudança de tudo o que é vivo.” Em vez de sobreviventes da Arca de Noé, os bichos que vieram ao mundo são seres humanos modelados por essa raiva criativa, sobreviventes de uma vingança bem humana: eles foram esculpidos a tapa, puxões de orelha e de nariz, começando pela bela índia, que virou um tamanduá-bandeira.
O índio, que era seu parceiro na dança, também teve o nariz puxado, transformando-se em anta com o focinho comprido. Um índio, que era muito feio, virou morcego e saiu voando. Uma velha tagarela virou mutum. Também outros viraram periquito, saracura, cobras e lagartas. Sabem como nasceu o jacaré? Nasceu de um índio que abriu uma boca cheia de dentes. (LISPECTOR, 1987, p. 49).
Bichos do mar e da terra, artefatos e objetos também participaram da criação zoomórfica desse zeus irado, como na bem-humorada explicação para o surgimento do jabuti.
Uma velha que estava ralando guaraná, quando viu a coisa ficar feia, fugiu com a cuia e pedra ralar e o guaraná. Mas não houve apelação: a cuia lascou-se e virou casco de jabuti, enquanto o guaraná passou a ser o seu coração. (LISPECTOR, 1987, p. 49).
A lógica darwinista não encontra parâmetros no pensamento ameríndio: o animal entra em contato com sua forma humana, o xamã se torna animal, vê como tal, mas retorna ao humano e todos quando morrem voltam a ser botos, nenúfares, onças, jaguares, pássaros, árvores, estrelas, guerreiros da lua. Esse pensamento não opera em termos de evolução, mas de contágio, de troca, de transformação constante, de ir e vir. Enquanto possibilidade de testemunhar o que resta ao processo de humanização, essas narrativas depõem sobre o tempo em que a humanidade era uma só comunidade, em que falar de bichos era falar também de humanos. Tempo quando os curumins, seres que singularizam essa indiscernibilidade, eram crianças ou gatinhos (tanto faz) que partiram para o céu penduradas em cipós sustentados por pássaros, em linha de fuga das mães para dar origem às estrelas.
Em “Como nasceram as estrelas”, outro mito de origem que dá nome ao livro/calendário, a narrativa abre lembrando que o mundo não nasceu com o céu já forrado de estrelas. “Antes os índios olhavam de noite para o céu escuro — e bem escuro estava esse céu. Um negror.” (LISPECTOR, 1987, p. 8). Comentários metalinguísticos particulares à literatura moderna provocam o diálogo com o leitor para mergulhar em seguida no protocolo do passado imperfeito típico da fábula: “Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios”. Enquanto os homens caçavam e pescavam ou roncavam em casa, as mulheres cuidavam sozinhas do preparo da comida para todos, reconta a lenda.
Como em outras lendas, o alvo do encantamento é um pecado antropofágico. Percebendo que faltava milho no cesto para moer, sem medo, as mulheres enfurnaram-se nas matas. Procuravam milho, mas só encontravam espigazinhas murchas e sem graça. Foi quando tiveram a ideia de voltar e trazer com elas uns curumins.[1] “Curumim dá sorte. E deu mesmo. Os garotos pareciam adivinhar as coisas: foram retinho em frente e numa clareira da floresta — eis um milharal viçoso crescendo alto”. Depois de colher muita espiga, os “gatinhos” fugiram das mães e voltaram à taba onde pediram à vó para que lhes fizesse um bolo de milho. Só depois de comer tudo que deveria alimentar a aldeia inteira, tiveram medo das mães reclamarem.
Aí então chamaram os colibris para que amarrassem um cipó no topo do céu. Quando as índias voltaram ficaram assustadas vendo os filhos subindo pelo ar. Resolveram, essas mães nervosas, subir atrás dos meninos e cortar o cipó embaixo deles.
Aconteceu uma coisa que só acontece quando a gente acredita: as mães caíram no chão, transformando-se em onças. Quanto aos curumins, como já não podiam voltar para a terra, ficaram no céu até hoje, transformados em gordas estrelas brilhantes. (LISPECTOR, 1987, p. 9).
Estrelas são seres emblemáticos para a literatura do devir.[2] Os corpos estelares singularizam a intensidade de uma distância que produz também um ponto de contato, onde a diferença se afirma como possibilidade do acontecimento do outro em mim. “Meu amor é uma exploração da distância”, escreve Deleuze (2009, p. 185) em Lógica do Sentido. Em Como nasceram as estrelas, a tradição de onde se alimenta essa passagem da literatura modernista brasileira “encorpora” uma dicção mais própria, que se posta na tensão com a voz comentarista da narradora, ora filosófica, ora metalinguística, ora com o tom informal e amoroso de uma avó em torno de uma roda de crianças leitoras.
O ovo e a urina: fugas canibais
Trazendo do esquecimento infantil, no qual se funda a cultura ocidental carnívora, o sofrimento causado pelo ato de matar para comer e de comer o que se mata, a narrativa de Clarice nos lembra recorrentemente que a culpa recalca uma relação iniciada no amor. Para superar essa dor física e moral, mútua e autorreflexiva, a criança apela para uma estratégia antropofágica amorosa em “Uma história de tanto amor” (LISPECTOR, 2012, p. 147-151): comer o outro para fundir-se nele e para tê-lo em si. Assim, dando ouvidos à sabedoria canibalística da mãe que, como ela, se abstém da carne, a menina (que amara as galinhas antes de amar os homens) lida com a morte de suas aves de estimação levadas para a panela da família. “Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena”, disse-lhe a mãe.
De maneira que, já tendo sofrido antes por amor, já calejada da dor da paixão, a menina come a carne e bebe o sangue de outra galinha querida servida com molho pardo, “sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida.” (LISPECTOR, 2012, p. 151). Nem consolo, nem justificativa: a voz materna ascende-lhe o devir ritualístico. E o sentimento de ódio contra todos os que haviam comido Petronilha transforma-se, nesse novo banquete, em ciúme dos que, ao contrário dela, devoraram Eponina sem o amor antropofágico.
E quando em Laços de família uma galinha de domingo voa mais alto do que suas asas permitem para escapar do abate, é uma antiga cena de ritual canibalístico que se repete no cotidiano da família. Alcançada e presa após longa perseguição pelas chaminés, terraços e telhados das casas do quarteirão, ela interrompe o ritual de caça excrevendo, no piso da cozinha, uma obra de susto e afobação humano/animal, que associa a urgência do parto à urgência da urina de Hans Staden centenas de anos atrás. Mas há uma inversão importante: no anedotário da captura do expedicionário pelos Tupinambá no litoral brasileiro, o europeu de pele alva e barba loura teria sido poupado pelos índios no momento em que, prestes a ser devorado, treme, chora e se urina diante da fogueira e da tribo. Índice de covardia, o descontrole do mijo e das lágrimas, diz a segunda lenda,[3] livra o prisioneiro do sacrifício, ao mesmo tempo em que o condena como carne inimiga indigna de comer, pois não há força nela para se apoderar.
Ao contrário, no conto de Clarice, a galinha do banquete de domingo era, como toda galinha de quintal, uma ave feia e sem valor, desprovida da graciosidade, da imponência, da argúcia, do poder ou do talento de outras variedades mais cercadas de nobreza no universo ornitológico, como o flamingo, o pavão, a águia ou o rouxinol. “Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha”, diz uma voz narrativa secretamente criança e inumana (LISPECTOR, 2009, p. 32). Encolhida em um canto da cozinha, não olhava para ninguém e ninguém olhava para ela. “Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra.” (LISPECTOR, 2009, p. 30).
A condição de inferioridade se altera radicalmente após o acontecimento do ovo, com o qual ela excreta uma obra biológica, como faz o alemão. Mas, diferentemente da urina, que salva o viajante condenando-o por fraqueza, a postura do ovo desfaz a fronteira entre medo e valentia. No universo de Clarice, ele corresponde a uma obra de natureza e de cultura, uma obra de arte que supera a galinha/autora.[4] O ovo nasce também como obra de beleza e mistério que fecunda o mundo. Se até então “nunca se adivinhara nela um anseio”, com o acontecimento do parto, a galinha escreve no mundo o milagre da vida para os que têm fome: “Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!”, grita a criança, em súplica e êxtase de quem descobriu um álibi definitivamente salvador.
Nessa nova quebra do rito, então, é a coragem da “parturiente” que a salva da covardia da tribo-família. Convencido do milagre, dessa vez é o pai-caçador, e não a mãe, o primeiro a ceder e a aliar-se à menina, à ave e ao ovo. Em defesa do cordão inumano, ele grita à mulher: “Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!” Durante algum tempo, antes de ir definitivamente para o fogo, a ave torna-se uma rainha, deslizando pelos ladrilhos da casa a lembrança de uma “pequena coragem” que permaneceu como aprendizado e “resquício da grande fuga” (LISPECTOR, 2009, p. 32).
Na perspectiva da potencialização do falso, esse paralelo entre a fábula da galinha e a lenda de Hans Staden devolve apropriações antropofágicas típicas do dominado (a galinha, os Tupinambá) que contestam a história do vencedor (a família, o colonizador). Para o explorador europeu, que saiu garganteando pelo mundo a crueldade canibalística dos índios brasileiros, ajudando a propagar o mito de um país selvagem e irracional, não poderia haver devolução mais antropofágica do que a narrativa sobre a sua falta de coragem. Nesse sentido, a lenda carrega o ponto de vista do latino-americano, como o outro absoluto do europeu que caracteriza a antropofagia postulada por Oswald de Adrade, segundo Evando Nascimento em “A antropofagia em questão”:
Conforme os valores alocados (em termos nietzschianos, os valores são forças), a antropofagia canibal pode ser vista tanto como o signo do “primitivo bestial”, sedento do sangue sobretudo europeu, o outro virtualmente predador do mesmo; quanto como o signo positivo do primitivo que se quer primitivo, que se autoafirma apropriando-se e revertendo os atributos que o outro colonizador lhe aplica. Foi esse último sentido-vetor que apregoou a antropofagia oswaldiana no Brasil. (NASCIMENTO, 2011b, p. 347).
No mesmo sentido, Jorge Schwartz, em “De símios e antropófagos”, explica que com o “Manifesto Antropofágico”, o “ato primitivo” de comer o inimigo adquire novo significado:
Já não se trata de saciar uma necessidade elementar como a fome, mas de incorporar, num ato ritual, os atributos do outro. Por analogia, a nova palavra de ordem é incorporar o outro para fazer uma síntese capaz de gerar a superação e libertação do jugo externo. (SHWARTZ, 2011, p. 243).
Nas duas lendas, a da galinha e a de Hans Staden, mesmo depois do acontecimento do ovo e da urina, o interesse pelos dois estrangeiros permanece. A acepção oswaldiana que enfatiza a política do antropófago de absorver a força, valentia, beleza ou coragem do inimigo, como forma de apropriar-se de suas qualidades, é superada na obra de Clarice Lispector. Mesmo depois de dispensados da devoração, ambos continuam por algum tempo se relacionando com a família e com a tribo. O paralelo entre essas diferentes narrativas sobre canibalismo mostra que elas produzem testemunhos sobre a experiência antropofágica de um ponto de vista “do meio”, assim como os Tupinambá produziam, “abocanhando” seus corpos, a memória dos inimigos devorados.
Como mostram Manuela Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro em “Vingança e Temporalidade: os Tupinambá”, o canibalismo contradiz a ideia de uma política autorreferente: o estrangeiro interessa na medida da sua alteridade, de sua relação mesma com o devorado e não na medida em que reforça a mesmidade. Nesse sentido, a antropofagia deveria ser vista antes como uma interiorização da exterioridade do outro que exige um processo de sair de si ou um constante “movimento para fora”. O desejo de “encorporação” não conhece, na sociabilidade antropofágica, uma identidade localizada no eu que se cristalize como oposição ao outro. Pela “fome” escoa a pulsão de uma sociocosmogonia em que a comensalidade constrói não as identidades, mas as unidades sociais. Como ainda explicam os pesquisadores, a vingança ritualística da guerra tupinambá consiste em tornar o inimigo guardião da carne da memória do grupo, inscrita nas tatuagens, nos cantos de guerra e nos pronunciamentos orais que contam a história e a quantidade dos inimigos mortos e devorados:
A guerra de vingança tupinambá é uma técnica da memória, mas uma técnica singular: processo de circulação perpétua da memória entre os grupos inimigos, ela se define, em vários sentidos, como memória dos inimigos. (CUNHA; VIVEIROS DE CASTRO,1985, p. 195).
Assim, só pode ser contestável a tendência a ver na antropofagia a indicação de uma estratégia cultural que se reduz à inversão pura e simples do paradigma do colonizador pelo colonizado. Esse devorar para se nutrir sozinho reproduz, segundo Nascimento, o ato antropofágico como uma imitação da ontologia do soberano. Nela o outro “existe para me servir, para se sujeitar, para ser subjugado, num processo em que minha liberdade se faz, no melhor dos casos, pela assimilação da diferença; no pior, pela eliminação pura e simples dessa diferença.” (NASCIMENTO, 2011b, p. 352).
Fosse assim, a identidade nacional seria uma “apropriação autoafetante”, uma relação do eu consigo mesmo, assimilatória em relação ao ponto de vista do outro e legitimadora da violência da colonização. Sob esse prisma, continuaríamos a repetir pela devoração a ética das guerras colonialistas, enfatizando a soberania definitiva do sujeito comedor e a propriedade do ponto de vista. O perspectivismo ameríndio mostra, ao contrário, que a subjetividade (ou a personitude) está sempre em disputa e jogo, em uma luta que resulta na posse provisória, alternada, ritualizada e problematizada pela arte e pela literatura.
Na busca de uma saída para o impasse desse questionamento da antropofagia, Nascimento propõe entrelaçar os textos oswaldianos com outros textos sobre a filosofia da alteridade. Digeri-los com outros devoramentos, com outras salivas, sem deixar de reivindicar a herança antropofágica como necessidade de assimilação do outro, mas reinscrevendo-a em um comer-junto. “Elaborar-se com o outro, comer, ser comido, mas sobretudo dar de comer, comendo junto – haveria algo mais importante para um vivente?” (NASCIMENTO, 2011b, p. 361).
Muitas outras histórias de meninas vivendo o drama de encontrar seus animais no fundo do prato vão, na literatura de Clarice, trazer a memória, não dos inimigos, mas dos estranhos e queridos amigos abatidos. Como memórias de um ritual alimentar, elas trazem um testemunho infante sobre o problema da “nossa truculência” canibal. A criança conhece a verdade desse sofrimento inútil, cuja necessidade não lhe parece evidente em uma sociedade industrial. Essa dor-criança que não se cura, que não entende a si mesma, se repete em narrativas ensolaradas pelo colorido alegre das estranhas legiões de família, no sinistro paradoxo de vida e de morte que ronda nossos rituais de comensalidade.
Até que uma descoberta dará um instante de paz a essa criança afetivamente confusa e constrangida, desmentindo uma diferença insustentável entre a fome do canibalismo e da antropofagia cultural:[5] “A pessoa come outra de fome. É minha mensagem de pessoa só” (LISPECTOR, 1998a, p. 43). O dizer desse fragmento da narrativa-poema de Água viva transita sua pequena epifania entre diferentes textos. Como os pedaços de uma carta rasgada que se dispersaram e se colaram em diferentes partes, provoca a reconstituição desse corpo-texto pelo devoramento da leitura. Tanto a fome de um quanto de outro se engendra na pura necessidade, na falta, na volição do ser que come. Por isso o conceito de fome antropofágica se refere fundamentalmente ao ser que se considera o mais desprotegido de todos. Àquele nascido desprovido de casca, penas, pelos, chifres, espinhos, garras, dentes, defesas, enfim, entregue à sua incompletude constituinte e à sua miséria inicial. O único ser que conhece a nudez ou, “como dizem essas queixas”, “o único animal abandonado nu sobre a terra nua.” (Montaigne, 1972, p. 216). Só e para sempre faminto de outro.
Nas culturas extraocidentais, o sofrimento ligado ao ato de comer a carne animal desencadeia perturbações de toda ordem. Viveiros de Castro mostra como é tensa para o indígena a questão da “clareira humana”, referindo-se com ironia à expressão com a qual Heidegger nomeia a exclusividade das palavras como o abismo diferencial que separa os homens dos animais. Contradizendo o filósofo, o antropólogo diz que a “abertura humana” começa pela boca, mas pela antropofagia, não pela linguagem. Comer a carne do outro implica, para as culturas ameríndias, um atentado grave contra a cosmogonia do mundo e, por isso, precisa ser ritualizado com delicadeza e cautela. Na ontologia da predação, o xamã precisa acessar o espírito do outro para pedir-lhe autorização e recorrer a todo tipo de feitiçaria para dessubjetivar a carne que se come. Os índios, que admitem a consciência animal e o seu direito à vida como evidência, não esquecem o fato de que o humano está em toda parte.
Para os índios, muitas doenças que os afligem são provocadas por vingança dos animais comidos. Quando se come o corpo de um animal sem os cuidados necessários para não ofender seu espírito, este pode se vingar e nos devorar (por dentro, numa espécie de “endocanibalismo” aterrador). (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 99).
Esse modo verdadeiramente ritualizado e antropofágico constitui uma ontologia da predação de profundas imbricações sociais, culturais e religiosas. Segundo relatos de Chamorro sobre os Guarani, antes de um caçador ir à caça de uma presa, ele reza ou entoa um canto pela provável morte do animal. De acordo com a concepção universal entre os ameríndios sobre a essência humana e divina comum a todos os seres, o poder transcendente (espiritual) está presente na imanência (matéria) animal. Trata-se de evocar as palavras divinas para purificar o ato da caça, libertando a alma do bicho (CHAMORRO, 2008).
A mitologia mostra que os povos ameríndios tratam o devoramento do animal com muito mais solenidade e gravidade do que nossa vã cultura, com sua diversidade de jejuns religiosos, possa talvez conceber. É porque só o contato com a carne viva agudiza as tensões ontológicas do canibalismo. No modo caipira-carinhoso de antropofagia rural, o homem do campo redime-se do conflito da morte domesticando e infantilizando como bichos de estimação os animais que breve ou tarde serão levados da roça para a mesa. Inocentes e desavisadas, as aves de quintal ciscam a terra e vivem entre os humanos no bom engano das “galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer”, expressão que aparece já na primeira página de Perto do coração selvagem, como emblema de uma crise de alteridade permanente relacionada à antropofagia.
A cultura urbana professa um terceiro modo, onde o constrangimento de conviver com o animal que se vai matar e comer fica resguardado pela invisibilidade e anonimato da carnificina nos frigoríficos e fazendas de criação para o abate. À diferença das comunidades ameríndias e das rurais, onde os animais têm história e contato afetivo com o devorador, as sociedades urbanas reificam e mortificam o gado, o frango ou o suíno (nomeados por classificações genéricas assim, como as de produtos massificados). O processo de industrialização da carne em larga escala transforma o vivente em um pedaço de coisa, dirigindo sua existência para o sofrimento violento e desnecessário, como mostrou Peter Singer(2010), em Libertação animal. Por uma extensão do mesmo mecanismo que excetua o humano minoritário, o destino da carne é a mercadoria. E o matadouro opera como atualidade do campo de concentração, abatedouro final da máquina antropocêntrica, a mesma que animaliza humanos, conforme os Estudos Animais estão fazendo ver à teoria da biopolítica.
Em uma tentativa de enfrentar com ética a tensão e lidar com a herança da morte, Donna Haraway, em entrevista a Sandra Azerêdo, (2011, p. 390-417) propõe a “encrenca de matar sem tornar matável”. Buscando ir além de um esforço de ritualização discursiva, ela defende que as fazendas de criação de animais para o abate sejam substituídas por companhias “multiespécies” submetidas a um rigoroso controle ético pelo cumprimento do que chama de “matar com respeito”. O problema, contudo, não é propriamente a morte em si, mas a vida coisificada desses zumbis, que só vivem para morrer.
Longe de conhecer a singularidade de uma existência animal, os animais de abate tiveram seus corpos sequestrados da vida selvagem que levam os lobos, por exemplo. Foram apartados também da resistência linguística das múltiplas espécies de serpentes que escapam ao nome genérico e, por isso, emudecem os dicionários. Sem animus, sem narrativa, história, biografia ou autobiografia, os animais criados para corte são letra morta. Deles, a poesia só pode dar o testemunho de um silêncio. São palavra desanimada em uma sobrevida acabestrada de boi que só pode ser boi, sem o devir anônimo das bestas míticas, aladas e incapturáveis, os “bois que não são bois” que eles foram um dia, como grita o poema do bestiário da escritora amazonense Astrid Cabral (2006, p. 21):
Vamos dar nome aos bois
antes de nos perdermos
pelos currais e pastos
cerrados, ermos, gerais.
[…]
Já é tempo de fazer jus
de discernir as serpentes
e devidamente chamá-las
corais, cascaveis, sucurijus.
Mas como nomear ou batizar
os bois que não são bois?
As inéditas e fantásticas
bestas que infectam-infestam
nossos prados sem cerca
com seus anônimos tropéis
urros e berros insólitos
suas bostas como bólidos
de planetas ultra-remotos?
Bois que por não serem bois
afivelam asas de dragões
e não consentem que palavra
alguma lhes capture as patas.
Não é que o mundo dos ameríndios ou dos negros subsaarianos seja idílico, nem se trata de recriar o mito do bom selvagem ou de aderir de prontidão ao ponto de vista do outro. Trata-se antes de nos transformar sob o impacto desse outro pensar, começando pela superação da dicotomia em relação ao meio ambiente, se com esse pensamento-índio nós aprendermos a hibridizar nossa existência com o mundo.Potência de hibridização por imanência, a escritura experimenta essas outras formas de perspectivar gestadas pelas sociedades extraocidentais, transformando-se e transformando o mundo. Como um xamã sabe, é preciso se cercar de rituais de proteção para entrar no pensamento de outro corpo e não ser devorado de vez pelo seu ponto de vista. Correr esse risco é tarefa do pensamento e da literatura.
Em “O ouro canibal e a queda do céu”, uma crítica xamânica ao pensamento ocidental sobre a economia da natureza, o antropólogo Albert (2002) argumenta que o discurso ambientalista e mesmo indigenista não traduz a cosmologia Yanomami porque está pautado pela separação entre os seres humanos e o meio ambiente que “os envolve”. Por essa lógica da externalidade, sem sentido para os ameríndios, a ação ecológica luta para preservar o meio para usufruto da atual e das futuras gerações. Tomando como base de análise o discurso político do xamã e líder Yanomami Davi Kopenawa sobre a destruição do seu hábitat pelo garimpo, o antropólogo mostra que os índios se apropriam estrategicamente do discurso ambientalista ocidental em sua luta para demarcação do território Yanomami, mas estão longe de aceitar suas premissas.
Expressões de conotação jurídica, como “demarcação da nossa terra indígena” ou de conotação ambientalista, como “proteção da floresta” têm, na fala do líder Yanomami, uma “indissociável conotação metafísica”. Todos os hóspedes e constituintes dessa “terra-floresta” são dotados de uma “imagem essencial”, a cuja visão os índios têm acesso mediante rituais xamânicos com ingestão de substância alucinógena fornecida pelas árvores. Assim, cada elemento, cada animal, cada planta pode “descer” na forma de espíritos auxiliares responsáveis pela ordem cosmológica dos fenômenos ecológicos e meteorológicos vitais para a sobrevivência dos índios, como migração da caça, fertilidade de plantas silvestres, controle da chuva, alternância das estações etc.
Para Davi, portanto, “proteger a floresta” ou “demarcar a terra” não significa unicamente garantir a perenidade de um espaço físico imprescindível para a existência física dos Yanomami. É também preservar da destruição uma trama de coordenadas sociais e de intercâmbios cosmológicos que constituem e asseguram a sua existência cultural enquanto “seres humanos”. (ALBERT, 2002, p. 247-248).
Na visão desse povo originário, que pensa os seres vivos, a água, as árvores, a terra como integrantes da mesma cosmogonia da floresta, a exterioridade do meio em relação ao ser humano é inconcebível. Tudo que se faz contra um desses elementos afeta o todo e leva ao desaparecimento do homem. Pensar fora da dicotomia significa, portanto, pensar que o “meio” não é algo que nos cerca, um anexo acoplado com quem temos uma relação objetal, mas é precisamente o que nos constitui, como neste poema-conto: “A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva.” (LISPECTOR, 1999b, p. 87).
Pensar-se como a chuva pela escritura é chegar com o mundo ao ponto de “tanta mansidão”, à beleza do “és-tu”, onde a natureza e a cultura tramam um crochê, deixando em relevo o ponto que mostra e esconde a costura. “Chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo”.[6] É alcançar a “doçura na repartição do pão”, o comer-junto, o pão compartilhado que aparece em Felicidade Clandestina como “amor entre estranhos sem que uma palavra de amor seja dita, sem a paixão da piedade” (LISPECTOR, 1998c, p. 91). É sentir o ser trançado ao mundo dessa literariedade que pisa “o chão onde todos avançam”, onde já não se consegue separar também o pensamento “branco”, o pensamento “negro” e o pensamento “índio”.
Silêncio eloquente: a literatura do constrangimento
Entrando em uma zona de alternância e também de indiscernibilidade, natureza e cultura, humano e inumano têm o funcionamento corpóreo de uma anfisbena. Reconhecida no Brasil popularmente como ibicara, mãe de saúva e rei das formigas (ANTELO, 2010, p. 133), a anfisbena é um animal escrito na zoologia fantástica de Borges como “uma serpente com duas cabeças, uma em seu lugar e a outra na cauda; e com as duas pode morder”. Sendo anteriores uma a outra, suas extremidades coincidem, o que faz desse corpo animal “um sem embaixo, em cima, na frente, atrás, esquerda e direita.” (BORGES, 2007, p. 14).
Nas Antilhas e em certas regiões da América, o nome se aplica a um réptil habitualmente conhecido por dupla andadora, por “serpente de duas cabeças” e por “mãe-das-formigas”. Diz-se que as formigas a sustentam. Também que, se a cortam em dois pedaços, estes se juntam. (BORGES, 2007, p. 14).
Tornando indiscernível o ponto de entrada e de saída, o início e o fim desse corpo animal, a semelhança-duplicação entre cauda e cabeça (ou entre rabo e boca) flagra o encontro entre as extremidades onde dois orifícios se veem. O que seria o fechamento se revela uma abertura nesse híbrido onde se confundem a cobra e o lagarto. Essa figura reversível faz ver também os fins e os começos onde o animal e o homem se encontram, um seguindo o outro, como nas gravuras de Escher. No espaço literário, a alternância de perspectivas entre humanos e animais assume essa reversibilidade vertiginosa, palíndroma de anfisbena (“Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos”).
O mar, esse corpo humano e animal pensante com o qual a mulher se comunica e troca de perspectiva no vaivém das ondas trazendo a liquidez resistente dele contra o compacto leve dela, nos fala silenciosamente também sobre a reversibilidade da incomunicação do mundo humano com o inumano pela linguagem nas mitologias indígenas. Em um planeta onde humanos compartilham com uma multiplicidade de seres de uma diversidade infinitas vezes maior que a sua, essa incomunicabilidade constrangedora e inexplicável gera uma dor moral e afetiva que só dentro do campo da própria linguagem – dito, a literatura, com sua força e magia xamânicas – pode ser tratada. E essa medida de saúde nos lembra de que para os Guarani a tradição de reunir o grupo em torno dos xamãs e dos mais velhos para contar os mitos da criação tem um poder eterno de cura.[7] Conforme Jahn (2011, p.147),
a celebração da palavra é uma forma de sacramento da vida. Quando a pessoa adoece ou padece de sofrimento psíquico, diz-se que sua palavra-alma se “bifurcou”, e é necessário buscar um “rezador” que traga, através de rezas e canções, de novo o contato com a palavra-alma original da pessoa.
Interessante que em algumas etnografias dos Mbyá Guarani que articulam o registro mitológico com discursos atuais, a escrita (e não a linguagem como um todo) aparece como divisor de águas entre humanos e animais.[8] A importância da palavra soprada se encontra em mitos Guarani, como o Ayvy Rapyta, que significa “fundamento da linguagem humana”, conforme Cadogan (1953, p. 35). O mito conta que antes mesmo da terra, Nãnderu, o deus demiurgo Mbyá, criou a linguagem que esse povo relaciona à alma humana, conforme o antropólogo Aldo Litaiff (1996, p. 143). Em “La lengua Mbyá-Guarani”, Cadogan (1949, p. 666-668) fala sobre uma linguagem ritualística, distinta do cotidiano, um “idioma secreto” que faz parte de um “vocabulário religioso” pelo qual os Mbyá do Brasil se comunicam com os deuses e também com os animais através dos xamãs.[9]
A mágoa da incomunicabilidade animal é tipicamente humana, do homem com ele mesmo, do que ele faz ao outro. Mas é tipicamente uma dor de índio, se a gente considera que nas sociedades classistas o mutismo e a invisibilidade dos subalternos são naturalizados e normatizados. Com sua eloquência mítica, essa dor nos faz ver novamente que a máquina de exceção nas sociedades brancas funciona do mesmo modo para homens e animais. Pois o mecanismo que provoca a mudez da natureza também o faz entre os homens, se nós somos capazes de fazer o pensamento ir tão longe quanto o do poeta-ensaísta Francis Ponge (1997, p. 85), para quem “os próprios homens, na sua maior parte, são privados de palavra, são tão mudos quanto as carpas ou os pedregulhos”.
O sofrimento com a fratura na unidade espiritual do tecido cosmossocial não cessa de ser curado pela mitologia ameríndia, através de artifícios xamânicos e de línguas poéticas e ritualizadas. Mas o inconformismo com o silêncio animal e vegetal também mobiliza as fábulas, lendas e bestiários da literatura ocidental. Bem ao modo anfisbena, essa analogia nos faz retornar àquele mal-estar de que falava Walter Benjamin na gênese moderna da construção do flâneur para propor a ideia de que uma necessidade de contato mobiliza a literatura e reúne essas estéticas literárias aparentemente tão díspares no mesmo afã de vencer a incomunicabilidade e desconhecimento entre seres que habitam o mesmo espaço.
Lembremos que Benjamin menciona o argumento sociológico de Simmel para justificar a proliferação das fisiologias de tipos humanos no auge da modernidade. E que, segundo essa explicação, a onda dos estudos urbanos de outridade chega para vencer o desconforto dos corpos que se roçam ou mesmo se refregam nas estações de trem, que se olham e se esbarram nas ruas sem se dirigir a palavra. A flânerie chega, portanto, para dar conta da estranheza dos cidadãos flutuantes que compartilham uma época e um lugar mas não dialogam.
Benjamin cita nesse contexto a explosão paralela das fisiognomonias animais como um modismo no qual não se demora, nem parece interessado. Mas as pedrinhas que vai deixando no seu passeio crítico inspiram a postulação de uma literatura do constrangimento, que se constitui de uma origem em ausência (de voz, de comunicação, de afeto) reforçando um paradoxo antigo: literatura nasce da impossibilidade de vencer a estranheza que a engendra e a viabiliza. Em outras palavras dizendo, nasce de uma eloquência silente. Essa presença ausente do outro, essa falta de conversa, essa falha de contato oferece um ponto de articulação possível entre configurações tão distantes quanto flânerie, mitologia e fábula.
O silêncio do inumano (da criança, da natureza, dos animais, das plantas e mesmo das máquinas e dos objetos) afeta dramaticamente essa literatura que não se convence com o argumento antropocêntrico da superioridade da fala. É de puro desconforto espiritual com o mutismo inumano e com o “surdismo” humano que ela inventa incansavelmente seus próprios artifícios xamânicos de linguagem e imaginação para fazer falarem os animais, para ouvir as vozes do silêncio… Como as gentes amazônicas, essa escritura acredita na comunicabilidade das multinaturezas. Se a diferença entre os corpos é uma questão de intensidades, velocidades, lentidões e repousos, e não de substância, como Spinoza ensinou a Clarice, esses corpos podem se comunicar.
A folhinha de junho do livro/calendário reconta a história do desaparecimento da fala entre os animais começando por associar a festa de São João à lenda “Uma festança na floresta”, a partir da narrativa dos índios da tribo amazônica Tembé, que habitam regiões em conflito de posse do Pará e do Maranhão, nas regiões dos rios Gurupi, Capim e Guamá. Nas doze lendas, a fábula se conecta ao mito por uma temporalidade suspensa, desde sempre anterior à fratura de homens e animais pela linguagem. Hibridizando no atual o arcaísmo da oralidade, a narração se apoia na autoridade do “me disseram”, no “diz-que-diz assanhado”, no “me garantiram” e nos “boatos alvissareiros” de um tempo em que os bichos falavam. Os procedimentos verbais transitam entre a fofoca de novela e a intriga da tragédia, a intemporalidade da lenda e do conto de fadas e a ironia da fábula. Mesclando procedimentos e dicções de cultura indígena, cabocla e branca, a linguagem brota desse chão em comum, dessas vizinhanças entre diferentes discursos narrativos.
Como se passa em várias outras lendas indígenas e também em fábulas e contos de fadas[10], a trama gira em torno de uma grande celeuma no contexto dos preparativos ou da celebração de uma festa. Assim, o acontecimento que resulta na perda da linguagem é provocado por uma intriga das grossas que acaba com a “alegria acesa” da bicharada convidada para a festa na selva. Na hora do baile, a onça, que promovia a iniciativa sob um acordo tácito de que durante o evento seria “abolida a ferocidade” e a “carnificina”, mostra suas verdadeiras intenções, jogando umas criaturas contra as outras. A armadilha desmobiliza a confiança do papagaio no “berro da sua canção” e a certeza das “macacas casadoiras de que eram grandes bailarinas”, levando os bichos a retirarem-se ofendidos da festa um a um.
Bem, a coisa estava no máximo de animação. Mas a onça estava inquieta, doida para atacar. E como não fosse permitida nessa noite a carnificina, ela começou a ser feroz com a língua viperina. Então cantou: “Dona Anita é gorda e roliça que nem uma porca e tem cor de rato.” A anta danou-se e retirou-se.
A onça, vendo que tinha tido sucesso, cantou uma ofensa horrível contra o jabuti, dizendo que este estava coberto de mosca varejeira. Tanto que o jabuti ofendido foi embora. Depois a onça falou: “Vejam que decote indecente o das filhas do macaco”. As macacas ficaram fulas da vida e só não saíram de lá porque a esperança de arranjar noivo é a última que acaba. (LISPECTOR, 1987, p. 29).
No modo irônico da “moral da história”, a narrativa (em sua ambiguidade arcaica e atual) sinaliza o constrangimento de que o canto ou o grunhido, manifestações da voz animal são incompreensíveis para o mundo humano: “Porque grunhir ou cantar não diz nada”. Comentários dessa natureza disfarçada, intrometidos já na abertura da história, insinuam uma crítica contra a instrumentalização dos seres pela linguagem. Por exemplo, ao avisar que o boato da festa não gerou muita confiança porque foi primeiramente espalhado pelo canto do sabiá. “Como o sabiá, a quanto se sabe, canta pelo mero prazer de cantar, ficaram os bichos em dúvida sobre se era ou não verdade.”(LISPECTOR, 1987, p. 28).
Ao modo fábula, a lenda opera uma racionalização dessa incapacidade humana, criando artificialmente uma incapacidade para os animais – a da fala – que não existia antes da discórdia, quando os seres das matas estavam “ocupados e calmos em relação a seus deveres, pois o dever do animal é existir”. Mas a intriga da onça põe essa harmonia a perder. A ela contrapõe-se o “deus dos veados”, que presentifica o canto como silêncio estratégico, resistência ao assujeitamento verbal ou mutismo de palavras contra a dominação pela linguagem. Essa voz divina e encantatória, inaudível para os seres de fala, mas eloquente, ao mesmo tempo ensurdece e protege os bichos contra as maldades do verbo.
Mas acontece que havia entre os animais o deus dos veados, Arapuá-Tupana, que resolveu acabar com a empáfia da onça e para vencê-la pôs-se a cantar. Os bichos, sabendo que quando o ouvissem morreriam, taparam os ouvidos. Arapuá-Tupana afinal foi embora e a bicharada não morreu. É. Mas os animais haviam perdido o dom da fala, ninguém se compreendia mais. E isso até o dia de hoje. Porque grunhir ou cantar não diz nada. Tudo por causa da onça linguaruda. (LISPECTOR, 1987, p. 29).
Se o mito emana de um arcaísmo de tempo em que homens e animais não se distinguiam, como nos mostra todo o legado de Lévi-Strauss, a leitura da fábula precisa derivar na rede de ambiguidades que essa suspensão temporal produz. Do mesmo modo, a leitura crítica da lenda deve ser feita nessa coexistência hibridizada de seres e de tempos que ela instaura, e não na substituição metafórica ou alegórica de homens por animais. Na mitoprática, os animais constituem uma presença em relação a si mesmos e também em relação aos humanos, de quem são indiscerníveis. “As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextrincavelmente atributos humanos e não-humanos, em um contexto comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual”, sustenta Viveiros de Castro (2011, p. 354).
Nessa zona de indiferenciação de reinos se produz a performance da grande vilã da história: a “onça linguaruda”, “a rainha das selvas brasileiras”, a “onça, mandachuva” que intrigou toda a floresta, levando o mundo à desgraça da incompreensão que perdura “até o dia de hoje”. No mito, o uno está também sempre em relação a um todo, o singular se articula à coletividade universal, assim como os episódios particulares instauram eventos sociais. Há no encaixilhamento de um sistema dentro do outro um acontecimento de proporções sociocósmicas patrocinado por essa onça-estado. Ela encarna, com sua ferocidade de boca, uma linguagem do poder, um discurso produtor de manipulação, divisão e descontinuidade. No final, onde se localiza o dispositivo irônico da “moral da história”, a perda do “dom da fala” aparece como consequência de um excesso da língua, ou antes, como um abuso de poder discursivo. Dentro da cosmovisão indígena, o social, o político e o religioso não se separam na narrativa mitológica. Ao registrar o abismo entre homens e animais como uma punição, a lenda procede o emboîtement de um pecado original do tipo sagrado, que fere a unidade cósmica entre as criaturas, em um pecado, seria melhor dizer, traição, do tipo político, que cinde a sua unidade social.
Assim, como dom e desgraça, encantamento e feitiço, a palavra está para a lenda indígena como a maçã está para a narrativa bíblica: tentação e pecado, união e desordem, comunicação e entropia. Lembremos a relação celebratória que inúmeras sociedades indígenas mantêm com a linguagem, como é marcante entre os Mbyá Guarani, o “povo das divinas [eternas] palavras”. Para preservar essa relação ritualística, essa gente ameríndia foi até bem pouco tempo muito resistente à escrituralização da língua Guarani, acreditando que ao passar do espaço-cosmos da oralidade para o espaço gráfico, as palavras perdem a sua alma e a sua verdade, tornando-se mercenárias e enganadoras, como as palavras escritas pelos homens brancos.
Para o povo Guarani, a palavra articulada oralmente é que tem o poder de criar ou destruir o universo, as relações, as doenças, a vida. Deus está no sopro e no som, não numa figura desenhada como símbolo gráfico da língua. (JAHN, 2011, p. 144).
A mitoprática dos Guarani e de outras etnias ágrafas nos trazem uma generosa lição de alteridade: pela reciprocidade perspectivista do mito, esses povos atribuem às outras criaturas o estatuto ou o direito do silêncio político que dão a si mesmos (enquanto grande parte das sociedades ocidentais reluta para aceitar o seu direito à vida). Em outras palavras, os índios compartilham com outras espécies também os seus gestos políticos e espirituais. Essa compreensão já não está mais tão distante dos estudos éticos sobre a animalidade. Para a filósofa Sônia Felipe (2007, p. 283), autora da obra Ética e experimentação animal, animais conscientes de si são aqueles capazes de saber que outros podem “ver e saber” [11].
Como os pássaros fazem com a voz, os rituais indígenas celebram a linguagem pela oralidade e pelo canto, o que significa ensurdecer para a fala e para a escrita dos brancos, usada como instrumento de dominação e destruição. Em um estudo sobre “Yzur”, conto de Leopoldo Lugones, publicado em 1906 na coletânea Las fuerzas extrañas, Cernicchiaro (2013, p. 157) faz uma interpretação política e poética do mutismo animal. Mostrando que a linguagem é ao mesmo tempo “aparelho de produção do humano e instrumento de dominação do homem sobre os outros seres, pelo qual atribui a si a condição de sujeito e rebaixa os demais ao lugar de não-sujeito”, a narrativa conta a história fracassada do cientista Lugones que compra um chimpanzé amestrado e começa a treiná-lo para falar.
Segundo a hipótese do cientista, os primatas perderam sua capacidade de falar intencionalmente para que não fossem escravizados e obrigados a trabalhar; foi por isso que perderam sua humanidade. […] Neste sentido, a causa da animalidade, o silêncio, seria uma escolha política, uma resistência à exploração do homem.
Lévi-Strauss percebeu essa recusa do mito em tratar tanto a divisão quanto a incomunicabilidade entre homens e animais como fato original, fora da narrativa e da ação prática dos homens, portanto. Mostrou que, na mitologia, a fraqueza humana, e não um desígnio anterior, aparece como o acontecimento inaugural da perda da humanidade. O mito cumpre nesse sentido a tarefa nostálgica de tornar suportável a quebra da comunidade humana com outras formas de vida, pois, conforme o antropólogo aponta em entrevista a Didier Eribon,
nenhuma situação parece mais trágica, mais ofensiva ao coração e ao espírito do que a situação de uma humanidade que coexiste com outras espécies vivas sobre uma terra cuja posse partilham, e com as quais não pode comunicar-se. (LÉVI-STRAUSS, 2005, p. 195).
Assim, as lendas indígenas reescritas por Clarice evocam esse tempo fabuloso, em que a linguagem era também uma voz. “Um pássaro da sorte” vem com a folhinha das águas de março, trazendo a lenda de Uirapuru, ave encantada da Amazônia. No vir-a-ser homem, vir-a-ser pássaro, o Uirapuru dá testemunho de uma beleza comum ao índio e ao pássaro oculta em um índio feio. Fazendo ecoar na narrativa o questionamento do belo em “A bela e a fera”, a narrativa diz que, ao contrário do que acham as tolinhas, “coisa bonita não vem só de gente bonita.” (LISPECTOR, 1987, p. 16). Dispositivo de sedução que o homem captura como um resto animal, a voz inconfundível das matas compõe com o canto e a flauta um só artefato humano-animal para enfeitiçar a floresta e seduzir as jovens índias.
No tempo suspenso da fábula, a voz faz devir com a fala e o pássaro pode ser de novo um rapaz falante e o rapaz pode novamente cantar como um pássaro. A beleza invisível e audível do canto e a beleza visível da forma não podem ocupar a mesma perspectiva. São arrebatadoras demais para coabitar o mesmo corpo. Flechado, o belo índio volta a ser pássaro em forma de espírito, como ocorre a todos os humanos que, na mitologia, voltam a ser animais depois que morrem. Com a alternância de perspectiva, a fratura que cinge o mundo em criaturas humanas e não-humanas permanece, na fábula e no mito, sempre em estado de reversibilidade encantatória. No devir-Uirapuru, há um ser visível ora na forma humana de índio, ora na forma de pássaro. Atingido por um rival ciumento, o índio-pássaro torna-se, por fim, uma voz sem corpo, palavra invisível, abertura rica e poética para o mundo, estado de graça.
E não é que aconteceu um encantamento milagroso? Aconteceu, sim: o rapaz bonito se transformou num pássaro invisível, mas presente pelo seu canto. E as índias passaram, mesmo sem ver, a ouvir o trinado feliz. (LISPECTOR, 1987, p. 17).
Nas doze lendas brasileiras, mitos indígenas, mitos cristãos e narrativas do folclore caboclo se misturam indistintamente no modo de fábula, que ganha também contornos atuais, com a intromissão de comentários do narrador. Festas e ritos aparecem como eventos desencadeadores de grandes acontecimentos, como ocorre também em muitos contos de fada. Em “Como apareceram os bichos”, os animais surgem do enfeitiçamento dos convidados da festa pelo índio enciumado que se descobre traído. E “Alvoroço de festa no céu”, que ocorre na véspera do Carnaval, segundo a folhinha de fevereiro, conta a lenda do sapo que entrou de penetra no baile do céu, restrito aos convidados de asas, escondendo-se dentro do violão do urubu. “Uma lenda verdadeira”, da folhinha de dezembro, reconecta os festejos de final de ano ao acontecimento messiânico cristão.
A lenda que fecha o livro anuncia o fim da indiscernibilidade entre homens e animais, mas não da sua comunicabilidade. O presépio mostra que o destino de falar pertencerá ao homem: “O menino iria se tornar homem e falaria” (LISPECTOR, 1987, p. 53).No tempo cairológico, os animais agora se posicionam em torno da palha cor de ouro ao centro do campo manjedouro, onde refulgia o pequeno profeta. Enquanto o menino vai escrever o seu destino de ser homem que fala, os animais cumprem o seu destino “de amar sem saber que amavam”.
No presépio, os animais participam do acontecimento messiânico recolhidos ao seu silêncio e ao seu não-pensamento: é José quem medita com suas longas barbas, realizando o seu “destino de entender”. Mas a narrativa hibridizada na alteridade da narrativa indígena dá conta que, antes dos reis, os bichos já presenteavam o nascido com o que possuíam: o olhar. “O olhar grande que eles têm e a tepidez do ventre que eles são.” (LISPECTOR, 1987,p. 53). O olhar com o qual “a doçura dos brutos compreendia a inocência dos meninos”. Inexpressivos, estáticos, recolhidos à mudez dos presépios comuns de Natal, os bichos não perdem nessa fábula seu olhar e seu mistério de rosto: “Bem de perto a cara de um boi e outra de jumento olhavam. E esquentavam o ar com o hálito do corpo”. (LISPECTOR, 1987,p. 52).
Na última folha do livro/calendário encomendado à Clarice pela Fábrica Estrela, a natureza já não fala, mas esse último sopro da lenda, que ainda tem na saliva o gosto das matas e dos curumins, quebra o mutismo cristão da natureza. Entre os membros da pequena família e os animais ecoa então um canto sem melodia[12] como um fundo musical que está atrás do pensamento e atrás da linguagem, num lugar onde há apenas um coração batendo:
Ouvia-se como se fosse no meio da noite calada aquela música de ar que cada um de nós já ouviu e de que é feito o silêncio. Era extremamente doce e sem melodia, mas feita de sons que poderiam se organizar em melodia. Flutuante, ininterrupta. Os sons como quinze mil estrelas. A pequena família captava a mais primária vibração do ar — como se o silêncio falasse. O silêncio do Deus grande falava. Era de um agudo suave, constante, sem arestas, todo atravessado por sons horizontais e oblíquos. (LISPECTOR, 1987, p. 53).
Com um messias-criança, divino, humano e inumano, “tenro como um cordeiro”, “tenro como o nosso filho”, a literatura do devir transgride o mescenas e o tempo da fábula transgride o tempo da fábrica. Incidindo a relação ritualística dos Guarani com a linguagem também nessa lenda cristã, a narrativa não nomeia o messias, pois nomear é separar o ser da palavra. “Os nomes não são pronunciados por seus portadores, ou em sua presença; nomear é externalizar, separar (d)o sujeito.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 372). O entendimento fabular implanta no modo bíblico uma ressonância horizontal, sem hierarquia de vozes e reinventa o próprio presépio, reencontrando dentro do tempo cairos uma suspensão manjedoura no tempo sagrado: “Milhares de ressonâncias tinham a mesma altura e a mesma intensidade, a mesma ausência de pressa, noite feliz, noite sagrada”. (LISPECTOR, 1987, p. 53, grifo nosso). No que a narrativa recupera o ponto de contato entre homens e animais recontando a lenda cristã, irrompe um novo tempo, como o nascimento de uma estrela que “sempre renova o mundo e o faz começar pela primeira vez”.
Quando a natureza está novamente para entrar na fábula, devemos ver, como Agamben propõe em Infância e história, que, de novo, “ela pede a palavra à história, enquanto o homem, enfeitiçado precisamente por uma história que volta a assumir para ele os traços obscuros do destino, emudece no encanto?”. Não mais encerrados em sua língua silenciosa de natureza, os bichos manjedouros manifestam um dizer ao homem do tempo khronos para que ele reciprocamente recupere sua voz animal do eterno retorno. Adentrando o sonho fabulatório que Agamben nos traz no final do artigo – no lugar da “moral da história” –, devemos acreditar que uma noite “a fábula despertará na história e o homem desvelado emergirá do mistério à palavra”? (AGAMBEN, 2005, p. 158).
No início de cada folhinha, a recorrência a uma correspondência possível e perdida (como sinaliza a voz narrativa) entre as datas dos ritos indígenas e as datas das festas fixadas no calendário da cultura ocidental (carnaval, São João, cerimônias de casamento, Natal, Ano Novo) cria uma complexa relação entre categorias estruturantes que a singeleza das narrativas não deixa transparecer. Tempo sagrado e tempo histórico, brinquedo e calendário, mito e rito entram em inextrincável jogo de repetição e inversão, continuidade e intensidade. O tempo do calendário tanto remete ao tempo cronológico, medido, quantificado da história, que é uma invenção humana, quanto ao tempo de duração cíclico da natureza, que é o tempo do inumano.
Rito e jogo compõem duas categorias fundamentais para o estruturalismo, “o primeiro transformando o evento em estrutura, o segundo transformando a estrutura em evento”. Ambos mantêm um vínculo com o calendário e com o tempo, mas numa relação ao mesmo tempo de correspondência e de oposição, como mostra Agamben a partir de uma reapropriação dessa fórmula elaborada por Lévi-Strauss em O pensamento selvagem, a propósito dos ritos dos índios Fox. “O rito fixa e estrutura o calendário; o jogo, ao contrário, mesmo que não saibamos ainda como e por que, altera-o e destrói.” (LÉVI-STRAUSS, apud AGAMBEN, 2008a, p. 89).No desdobramento de Agamben, a função do rito é a de acomodar a contradição entre passado mítico e presente, anulando o intervalo que os separa na estrutura sincrônica, enquanto o jogo tende a “romper a conexão entre passado e presente e fragmentar toda a estrutura em eventos”.
Agamben retoma Platão para argumentar que a história se produz na oposição, mas também na correlação entre diacronia e sincronia que atravessa a cultura humana desde a sua origem. Nela se intersectam duas diferenças de tempo correlatas e opostas, chronos e aion: “tempo cíclico, medido pelos astros e temporalidade imóvel e sincrônica.” (AGAMBEN, 2008a, p. 89).Apresentadas em sistema ao mesmo tempo cíclico e cronológico, as lendas reintegram o rito e o jogo. O tempo contado pelos meses, tempo diacrônico que inscreve a história (e a criança) no presente, cria uma tensão perturbadora com o mito, que atravessa o tempo da eternidade, restituindo-a a um passado, ao tempo originário da fábula, quando animais e humanos eram indiscerníveis e a natureza falava.
Incorporando o funcionamento contraditório de relógio e de brinquedo, e de jogo e rito sagrado, o calendário é infantilizado e sacralizado de duas formas: pelo jogo da literatura, da contação de histórias, que leva a criança ao esquecimento do tempo, e pela eternidade do mito. É certo que “brincando o homem desprende-se do tempo sagrado e o ‘esquece’ no tempo humano”, à medida que
os brinquedos emancipam o sagrado de sua conexão com o calendário e com o ritmo cíclico do tempo que ele sanciona, e entram assim em uma outra dimensão de tempo, na qual as horas correm num “lampejo”, e os dias não se alternam. (AGAMBEN, 2008, p. 85).
Mas se tudo aquilo que pertence ao jogo “pertenceu, outrora, à esfera do sagrado”, esse brinquedorestituído ao tempo-zero produz, em seu paradoxo, uma tensão lúdica e ritualística. Ele propõe, em sua natureza temporal híbrida, outra reconfiguração para a dicotomia entre jogo e rito. Ao final, o brinquedo sagrado do esquecimento da fratura destrói duplamente o tempo da quantidade: pela continuidade do rito e pela intensidade do mito. Enquanto a máquina do não-tempo sabota a fábrica de consumo, o processo lúdico e imaterial da leitura sabota o produto brinquedo para que homens e animais possam palpitar no verdadeiro “tempo dos viventes”.
O mito é, antes de tudo, uma fala, nos escreveu Barthes (2001) em Mitologias. Conectando-o com a sua história e a sua política, a fala da narrativa, em contato com a fala mítica das lendas pagãs e primitivistas, devolve ao rito moderno e espetacularizado uma possibilidade de verdade. A possibilidade de ser “uma lenda verdadeira” que ele perdeu no processo moderno de esvaziamento mercantilista e ideológico dos mitos. Nesse reencontro, nem a história está subordinada à natureza, nem a natureza à história.
[1] “Assim chamavam os índios as crianças.” (LISPECTOR, 1987, p. 47).
[2] Simultaneamente, no mesmo ano da morte de Clarice (1977), enquanto no calendário os curumins morriam como crianças e nasciam como estrelas (assim como as mães morriam como humanas e renasciam como onças), A hora da estrela vinha ao mundo para narrar também o nascimento e a morte de uma estrela menor, Macabéa.
[3] A respeito dessa contraleitura de Staden (2008) ver Wendt (1993).
[4] Leitura que se pode fazer da série publicada sob o título “A atualidade do ovo e da galinha (I, II e III)” (2012) ou “O ovo e a galinha” (1996).
[5] Refiro-me aqui à distinção entre canibalismo e antropofagia sugerida por Oswald de Andrade em A crise da Filosofia Messiânica e citada por Carlos Fausto em “Cinco séculos de carne de vaca; antropofagia literal e antropofagia literária”: Segundo Fausto, a diferença está polarizada entre “um comer gente para fins alimentares e comer gente por motivação ritual ou religiosa”. Conforme o autor, essa dicotomia repete a oposição, equivocada, ele frisa, entre a antropofagia tupi e o canibalismo de outros grupos indígenas, como o dos karib (FAUSTO, 2011, p. 161). Os estudos de Viveiros de Castro e Manoela Carneiro da Cunha sobre o canibalismo Tupinambá como parte dos rituais de guerra e vingança também contradizem essa oposição.
[6] Fragmento publicado também no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: “Nunca imaginara que uma vez o mundo e ela chegassem a esse ponto de trigo maduro. A chuva e Lóri estavam tão juntas como a água da chuva estava ligada à chuva”(LISPECTOR, 1998d, p. 80).
[7] Razão pela qual as lideranças Guarani atribuem o adoecimento de suas gentes ao desconhecimento dos jovens índios dos mitos da criação, decorrente de todo processo de massacre de suas comunidades. Essa propriedade curativa do mito e do canto é comum entre todos os povos Guarani. Sendo feita de substância divina, a palavra é, par eles, o elo que une o ser humano à sua própria consciência, a deus. Os rituais de entoação mítica da criação têm a importância de manter os indivíduos e a tribo íntegros e saudáveis, conectando sua matéria humana com a energia do cosmos e, assim, renovando sua humanidade. Quando um índio perde o contato com sua palavra (e com sua língua), adoece ou morre. Ver a respeito: A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani (CLASTRES, 1990).
[8] Para os Mbyá, essa invenção trazida pela civilização cristã ocidental ao Brasil estaria, da mesma forma, na origem da divisão entre homens brancos e índios, conforme relatos do cacique João da Silva, da aldeia de Bracuí, localizada na Serra do Mar, no litoral do Rio de Janeiro, ao antropólogo Aldo Litaiff, em As divinas palavras. “A escrita, que segundo o cacique teria separado os homens dos animais e índios (ao contrário do que fez Kuarahy através do fogo), colocou os ‘índios’ no mesmo nível existencial dos animais, pois ‘os bichos ficou no mato bem selvagem que nem índio.’” Esse discurso sobre o episódio do “Descobrimento do Brasil”, logicamente permeado por noções ocidentalizadas de “selvagem” e “bicho”, segundo o próprio antropólogo, professa que as sociedades brancas fizeram com os índios o mesmo que fizeram com os animais, obrigando-os a se refugiar nas matas. No mito dos gêmeos, a que se refere o texto, o Deus Guarani, Kuarahy, “rouba o fogo, que pode simbolizar a passagem do homem, do mundo animal para humanidade (pois sem fogo o homem teria que comer cru como os animais)” (LITAIFF, 1996, p. 143).
[9] Em As divinas palavras, Litaiff (1996, p. 54) traz o relato de alguns Mbyá Bracuí declarando utilizar entre eles uma linguagem ritual para “falar com Deus”. “Trata-se de uma linguagem especial, ‘como uma poesia’, segundo declarou o professor da aldeia. As palavras são proferidas muito mais rápido que em sua forma usual.”
[10] Em A bela adormecida, por exemplo, o sono de cem anos da bela resulta da maldição lançada por uma bruxa vingativa que não foi convidada pelos reis para a festa de batismo da princesa quando bebê.
[11] Sensibilidade, consciência, percepção de si (self), desejo e intenção constituem, segundo a autora, alguns indícios ou evidências de que os animais têm autonomia prática, categoria que Kant utilizou para estabelecer o diferencial dos seres racionais. Ela cita o jurista Steven M. Wise, que defende essa categoria como critério de definição ética e jurídica para distinguir os seres vivos e garantir-lhes direitos legais. A definição de autonomia moral é “constitutiva da dignidade de seres cuja vontade se liberta pela atividade da razão, isto é, a atividade que estabelece fins a serem alcançados através da ação.” (FELIPE, 2007, p. 282-283).
[12] “Música de Câmara”, ela dizia em Água Viva, “modo de expressar o silêncio.” (LISPECTOR, 1998a, p. 47).
* Doutora em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/Capes) com a tese intitulada: Ver, pensar e escrever (como) um animal. raquelwandelli@gmail.com. Professora do Curso de Jornalismo da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).