Pós-produção: a poesia de Marcelo Ariel – Diamila Medeiros dos Santos

Pós-produção: a poesia de Marcelo Ariel

 

Diamila Medeiros dos Santos*

Marcelo Ariel

Marcelo Ariel

 

Marcelo Ariel é um poeta, performer, ensaísta e dramaturgo, nascido em 1968 na cidade de Santos, mas que vive em Cubatão desde a infância. Fundador e integrante de vários grupos culturais, como coletivos e companhias de teatro, Ariel tornou-se conhecido por suas performances que envolvem música e leitura de poesia, alinhando-se a certa tendência atual da criação de saraus nas periferias da qual a “Cooperifa” de Sérgio Vaz é um dos projetos mais conhecidos. Desde 2007, quando iniciou suas publicações, Ariel já lançou dez livros, entre eles Me ENTERREM coM a MinhA AR 15 (Scherzo – Rajada), em 2007, através do selo editorial cartonero “Dulcineia Catadora”; Tratados dos Anjos Afogados (2008), pela LetraSelvagem; e, Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (2014), pela Patuá.

Ariel se configura como uma voz singular na produção brasileira contemporânea não só em razão da sobreposição dos temas metafísicos (morte, dor, amor) aos da violência urbana e dos crimes ambientais (que poderiam nos soar como inconciliáveis dentro de uma mesma poética), mas, sobretudo, pelo tipo de relação construída em sua obra com a tradição artística ocidental e até mesmo oriental, em alguns momentos. E parece ser justamente neste aspecto que reside a amálgama da obra do poeta: é no espaço da própria literatura (e das outras artes) que encontramos a convergência dos diversos temas utilizados como matéria poética por Ariel.

Nesse sentido, no presente trabalho, pretendemos avaliar de que maneira se dá o processo de referenciação construído por Marcelo Ariel, fator instaurador de sua poética. E, quando falamos em “processo de referenciação”, não se trata de traçar considerações sobre os fatos ouos acontecimentos utilizados por Ariel como componentes de sua matéria poética, o que acontece quando pensamos em uma ideia de linguagem referencial, denotativa. Trata-se de refletir sobre as maneiras através das quais o poeta se relaciona com a produção de outros artistas e a incorpora em seus próprios poemas por meio de referência direta às obras e aos próprios artistas.

Se em seu primeiro livro, Me ENTERREM coM a minhA AR 15 – Scherzo-Rajada (2007), o dado primeiro do título e do poema homônimo que o inaugura parece apontar para um tipo de lírica fortemente colada ao mundo dos acontecimentos reais tal como nos enunciam as notícias de jornal, o poema da sequência, “Carta para a morte”, se apresenta como uma amostra do tipo de deslocamento que será constante em Ariel. O que podemos avaliar melhor olhando para ambos:

 

ME ENTERREM COM A MINHA AR 15

 

A rajada volta a soar

   como a onda da vida

Fica frio… É só mais um número fantasma na área…

O urubu no esqueleto do leão

escapando da arena…

Quem atira é o pseudomorto, meu irmão…

Maluco… Acabou a munição… Foda-se, continuo atirando…

Para cima… Beleza… é só isso… a fumaça

que sai do cano e sobe até as nuvens…

Exu me guia no vermelho dessa mira

Laser no meu peito… Tá ligado… na sequência… O coração… explode…

e estou livre da boca

que se abre pro mar…

Quer saber… Morrer não dói…

primeiro o tempo fica bem devagar… Tipo sonhando…

Aí vem um clarão… Você vê o Morro por todos os lados…

E então… (ARIEL, 2007, p. 07).

 

Este é um poema monólogo cujo eu-lírico está em meio a um tiroteio e acaba morrendo em decorrência de um tiro no peito que “explode” seu coração. O leão que escapava da arena fica livre da “boca”, uma alusão ao nome que se dá aos lugares onde se vendem drogas, mas ficar livre da “boca” é também deixar de viver. A solicitação presente no título do poema, de ser enterrado com sua arma, dialoga diretamente com o fato deste quase personagem dramático continuar atirando mesmo quando acaba a munição.

O número fantasma é sinônimo da indigência dos mortos pelo tráfico, mas o “fantasma” é parte importante da dicção poética de Ariel: este nome está sempre presente e parece sempre apontar para certa incorporeidade dos fatos reais apresentados.

O poema fala, explicitamente, da morte. A morte cotidiana que temos como consequência da violência descontrolada. Aliás, a morte é também objeto de inúmeros poemas de Ariel que se filia, assim, a uma longuíssima tradição poético-reflexiva sobre o imponderável do fim. No entanto, da forma como está disposto no livro, este poema surge imediatamente antes do seguinte poema:

 

CARTA PARA A MORTE

 

Imagino Camões, a vala onde morto estava;

O quarto onde encontraram o cadáver de João Antonio;

O sapato que Antonin Artaud segurava;

No paletó de Garcia Lorca a flor intacta;

A cama molhada de suor do último sono de Caio F.;

O prato vazio que caiu das mãos de Óssip Mandelstam;

Os círculos na água provocados pelo corpo de Paul Celan…

 

Devo parabenizá-la por estes momentos de uma estilística

sempre surpreendente,

somente às vezes ofuscada pelos lampejos precários desta

luz fraca que caminha nas capas… (ARIEL, 2007, p. 08).

 

Ler a “Carta para a morte” logo após do poema que fala da morte do “bandido” constrói um jogo de sentidos muito interessante, uma vez que o poeta escolhe traduzir poeticamente a morte do traficante ao lado da morte de vários escritores célebres. É uma maneira de dizer que a morte vai chegar a todos e trazer ao centro do debate essa questão filosófica importante da chegada do fim. Neste sentido, vale recuperar outra consideração interessante de Ademir Demarchi no prefácio do livro de onde saíram os poemas.

 

(…) outro aspecto marcante da poética de Ariel é o de uma escrita de cunho filosófico, metafísico, que questiona o tempo todo a essencialidade e a condição humana, que pode se dar por diálogos entre escritores e filósofos, fragmentos dramáticos, ou em poemas que remetem a livros, autores, filmes. Ela é latente e agônica e se expõe nesse olhar que se dirige ao mundo que o cerca e, impotente diante da imutabilidade de tudo, mantém uma serenidade cortante… (DEMARCHI, 2007, p. 4-5).

 

Cada um dos escritores citados morreu de uma causa: suicídio, fuzilamento, doença, e a ironia presente ao lado dessa “serenidade cortante” fica por conta de chamar a singularidade das mortes de “estilística”, o que se estende para a morte do traficante: há ali também certa “estilística” e quem a emprega é o olhar poético.

Há um deslocamento construído entre os poemas que se constitui como um fator importante na obra de Ariel: o primeiro deles incorpora um acontecimento do cotidiano do poeta (a morte do traficante) que, embora esteja relacionado a questões subjetivas, está também presente na vida de muitas outras pessoas, instaurando uma relação com o mundo, com o coletivo. O segundo se estabelece a partir do arcabouço de leituras realizadas durante toda sua vida e do aproveitamento e assimilação que se faz delas, em um nível totalmente individual, embora essas leituras façam parte do mundo da cultura. Assim, a obra de Ariel se desloca constantemente entre esses dois prismas: do factual coletivo e das leituras subjetivas.

Contrariando a proposta do primeiro poema, no entanto, o que ocorre no restante do livro está muito mais ancorado à proposta da “Carta para morte”, pois veremos uma série de outras relações com diversos artistas se estabelecerem em meio aos poemas, o que é notável já pelos títulos de alguns, como por exemplo: “No deserto com Paul Bowles”; “O que Blanchot me disse” e “Beckett-Celular”.

Em Tratado dos Anjos Afogados (2008), possivelmente a obra mais interessante do artista, esse tipo de deslocamento se acentua de forma a alinhar no interior dos mesmos poemas as três linhas de força de sua produção: reflexão metafísica, crítica social e referenciação a outros artistas. Essa tendência se confirma nas outras obras posteriores, mas deixa cada vez menos espaço para a crítica social mais direta através da utilização de fatos e acontecimentos do cotidiano.

O que veremos como uma constante, no entanto, é a referenciação construindo os poemas enquanto matéria poética, como elemento formador do texto, o que se inicia até mesmo no título de alguns de alguns de seus livros, como A morte de Herberto Helder (2011) ou Samba Coltrane (2010).

Em Retornaremos das Cinzas para sonhar com o silêncio, há um poema chamado “De um comentário de Jean Luc Godard sobre Ervas Loucas de Alan Resnais”, oferecido a Mauricio Salles Vasconcelos, que, anteriormente, já havia sido publicado em Conversas com Emily Dickinson (2010), com o título: “De um comentário de Mauricio Salles sobre ervas loucas de Alan Resnais” e oferecido a Hélio Pelegrino.

O corpo do poema se mantém o mesmo nas duas edições, mas além da modificação do título, na segunda versão há o acréscimo de uma frase de Herberto Helder, como epígrafe do texto. Esse é um aspecto a ser ressaltado pois, além do poeta português ser uma importante referência ao longo da obra de Marcelo Ariel, o conteúdo da epígrafe reflete justamente sobre a questão das alusões, o que podemos observar em sua transcrição, logo abaixo:

 

Se há aqui excesso de nomes e referências, sejam eles tomados como montagem, concebida num apoio cultural estilisticamente irônico (…) no esforço para criar o mundo, fábula última de um [sic] espécie de montagem planetária segundo o medo sagrado e o exorcismo dentro das trevas. O filme projeta-se em nós, os projetores. Herberto Helder. (ARIEL, 2014, p. 18-19).

 

Com isso, observamos que há em Ariel a consciência do excesso de referências e também uma tentativa de estabelecer significações para elas que não se encerram na relação estabelecida com cada artista, trata-se de um projeto maior que talvez nos permita conjecturar uma formulação mais abrangente.

Para Vasconcelos (2010), Ariel cria, com seu processo de reescrita constante, algo que era comum também a Helder, uma “instauração da ontologia contínua” (nomeação que remete diretamente ao poeta português, autor mesmo de um livro chamado Ou o poema contínuo, 2004). E o crítico utiliza ainda a ideia de “transdisciplinaridade” tal como estabelecida por Félix Guattari para abordar as múltiplas referências utilizadas por Marcelo Ariel. Propostas extremamente profícuas, mas aqui pensaremos em outras possibilidades.

Primeiro, é preciso destacar: o diálogo com a tradição é um leitmotiv corrente dentro dessa própria tradição, fato já explorado (mas não à exaustão) pela crítica e teoria literária, em diversas perspectivas, ao longo de nosso percurso moderno. A tradição forja, através de afastamentos e aproximações, seu movimento rumo a outras formas e a sua incorporação, seja por via direta ou indireta nas obras, é sempre observável com o passar do tempo.

A literatura sempre se constrói através de outros textos e é disso que nos fala Roland Barthes, em seu artigo “Texto (teoria do)” (2004). Aproveitando-se da “teoria do texto” desenvolvida por Julia Kristeva, o crítico usa a noção de intertextualidade como uma das bases da definição do próprio conceito de texto. Quanto a esse aspecto, segue um longo trecho, extraído da seção intitulada “Intertexto”, no qual podemos observar essa ideia sendo esboçada de maneira muito clara:

 

O texto redistribui a língua (é campo dessa redistribuição). Um dos caminhos dessa desconstrução-reconstrução é permutar textos, retalhos de textos que existiram ou existem em torno do texto considerado e finalmente nele: todo texto é um intertexto; outros textos estarão presentes nele, em níveis variáveis, com formas mais ou menos reconhecíveis; os textos da cultura anterior e os da cultura ambiente; todo texto é um tecido novo de citações passadas. Passam para o texto, redistribuídos nele, trechos de códigos, fórmulas, modelos rítmicos, fragmentos de linguagens sociais, etc., pois há sempre linguagem antes do texto e em torno dele. A intertextualidade, condição de todo texto, seja ele qual for, não se reduz, evidentemente, a um problema de fontes ou influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações inconscientes ou automáticas, dadas sem aspas. Epistemologicamente, o conceito de intertexto é o que traz para a teoria do texto o volume da sociabilidade: é toda linguagem, anterior e contemporânea, que vem para o texto, não pelo caminho de uma filiação detectável, de uma imitação voluntária, mas segundo o caminho da disseminação – imagem que garante ao texto status de produtividade, não de reprodução. (BARTHES, 2004, p. 275-276).

 

É importante ressaltar que a noção de texto tal como concebida por Barthes não equivale somente a uma ideia de literatura – enquanto texto escrito ou mesmo enquanto arte: “basta que haja desbordamento significante para que haja texto” (BARTHES, 2004, p. 281). No entanto, essas noções se expandem em direção a outros textos e não excluem o texto literário.

Relevante no excerto apontado é entrever a descrição da tessitura construída através das sobreposições de textos, de formas conscientes ou não, em todos os níveis de produção textual.

Para relacionarmos essas considerações com a poesia de Ariel, no entanto, é necessário ampliar a reflexão. Barthes define intertexto como “um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações inconscientes ou automáticas, dadas sem aspas.” No entanto, em Ariel não é só isso que podemos notar, pois seus processos referenciais se desdobram em múltiplas possibilidades que podemos dividir entre algo que se assemelha a essa concepção barthesiana, na qual o intertexto se desenvolve em camadas menos detectáveis – para usar a mesma palavra –, e que, muitas vezes, nós leitores só podemos inferir por suposição, elemento que nosso poeta compartilha com toda nossa tradição; e algo totalmente visível, que se manifesta de forma direta, na superfície da poesia, começando pelo título, passando pelas epígrafes e dedicatórias, chegando à incorporação no corpo dos poemas, como já pudemos observar nas páginas anteriores deste trabalho.

E nisso reside o diferencial de Ariel em relação aos poetas com os quais compartilha a produção contemporânea no Brasil: em sua poética, as referências são levadas ao limite, a um excesso que, no autor, é mais uma das formas de dramatização da crise tal como sugerido por Marcos Siscar (2010).

Para Siscar, a crise poética enunciada por Mallarmé em seu ensaio “Crise de verso” (1897)não se refere ao fim do verso como forma de expressão, mas tem relação com certa “irritação” do verso que passa a trazer dentro de si a crise moderna, enquanto forma e conteúdo, ao invés de referenciá-la somente como contexto. Nas palavras do autor:

 

Reivindicada em tom desiludido ou reciclada como estratégia de entusiasmo renovador, a crise é um dos elementos fundantes de nossa visão da experiência moderna. O discurso poético é aquele que não apenas sente o impacto dessa crise, não apenas deixa ler em seu corpo as marcas da violência característica da época, mas que, a partir dessas marcas, nomeia a crise – a indica, a dramatiza como sentido do contemporâneo. (SISCAR, 2010, p. 10).

 

Nesse sentido, a produção de Ariel poderia se inscrever, alinhando-se à tendência explicitada pelo crítico, como uma “poética da crise”, no que concerne a inúmeros aspectos. Mas, como nos interessa aqui olhar para o excesso conteudístico de referências, a ideia da crise existente na matéria poética de Ariel é mais importante. O conteúdo dos poemas denuncia a crise: a crise da cidade destruída pelo avanço irracional do capitalismo, a crise instaurada pelo poder dos narcotraficantes, a crise de representação enfrentada pelo negro, pobre, dentro dos circuitos produtivos de arte, a crise da palavra enquanto (im)possibilidade de tradução do real, a crise metafísica do homem diante do imponderável da vida. E a crise das referências que deixam de ser componentes da obra no nível não detectável e passam a fazer parte, num primeiro plano, da superfície do poema.

Quando questionado sobre o que as dedicatórias e referências representam em sua obra, Ariel atribui a elas certa tentativa de “chegar ao outro”, como uma espécie de exercício de alteridade capaz de colocar em questão o estatuto do “eu” vigente em nossa literatura atual. Isso poderia se alinhar à ideia do “volume da sociabilidade” evocado por Barthes.

É uma perspectiva frutífera à medida que nos permite traçar outras considerações teórico-críticas sobre o poeta em questão. Pois existe em Ariel uma poesia fortemente dessubjetivada (mais uma vez: a continuidade em relação à tradição poética moderna): o “eu” e todo seu campo semântico aparece em raríssimas ocasiões, construindo um olhar poético que contempla o mundo, é tocado por ele, mas ao construir a poesia reserva certo lugar que, embora enunciado por uma primeira pessoa, mantém certo índice de indeterminação. Possivelmente, as marcas mais delineáveis deste “eu” que enuncia os poemas diz respeito justamente a esse componente das referências, afinal através dele podemos vislumbrar o processo de construção dessa voz poética, por meio das outras vozes com as quais ela se relacionou, de artistas de outras épocas e vertentes.

Assim, duas questões são pertinentes para se pensar: o poeta leitor,que faz o seu próprio texto a partir das leituras realizadas ao longo de sua formação; e o poema como um instrumento de comentário dessas leituras: a “inspiração” vinda de outros textos sempre se converte em texto em Ariel.

Quanto à primeira questão, é lugar-comum, em relação à escrita e à intertextualidade falar da centralidade da leitura. O panteão de nossos escritores e artistas é composto por leitores incansáveis, vindos de todos os tipos de produção artística. No entanto, sabemos que esse assunto, o da leitura, ou mesmo do leitor, é tema recente nos estudos literários. E, quanto a isso, Barthes também chama atenção no mesmo texto citado acima, pois para ele a “teoria do texto” seria capaz de abarcar também a questão da leitura, suas “especificações históricas”. O que se daria em contrapartida à tendência vista por ele naquele momento, entre 1977 e 1980 – momento de escrita deste texto –, da civilização atual de “achatar a leitura transformando-a em simples consumo, inteiramente separada da escrita” (BARTHES, 2004, p. 283). Entendemos que talvez tenha havido algum avanço mínimo nesse quesito, mas nada que nos faça contestar veementemente a perspectiva barthesiana: a leitura ainda é vista como elemento menor, quando é de onde tudo surge.

É sobre isso também que nos fala Harold Bloom, em seu famoso livro A Angústia da Influência, do qual destacamos o excerto abaixo:

 

A angústia pode ou não ser internalizada pelo escritor que vem depois, dependendo do temperamento e circunstâncias, mas isso dificilmente importa: o poema forte é a angústia realizada. “Influência” é uma metáfora, que implica uma matriz de relacionamentos – imagísticos, temporais, espirituais, psicológicos – todos em última análise de natureza defensiva. O que mais importa (e é a questão central deste livro) é que a angústia da influência resulta de um complexo ato de forte má leitura, uma interpretação criativa que eu chamo de “apropriação poética”. O que os escritores podem sentir como angústia, e o que suas obras são obrigadas a manifestar, são as consequências da apropriação poética, mais que a sua causa. A forte má leitura vem primeiro; tem de haver um profundo ato de leitura que é uma espécie de paixão por uma obra literária. É provável que essa leitura seja idiossincrática, e quase certo que seja ambivalente, embora a ambivalência possa estar velada. (BLOOM, 2002, p. 23-24).

 

Bloom constrói seu livro usando como referência os grandes nomes da tradição literária ocidental, mas isso não nos impossibilita usar suas ideias, nos interessando bem menos por uma ideia de inserção de Ariel em determinado cânone do que observando as formas como ele se relaciona com este cânone, seja, mais uma vez, por aproximação ou por afastamento.

O que nos interessa nos apontamentos do norte-americano se relaciona primeiro com um deslocamento: em Ariel, a influência não é angústia, ao contrário, é demonstração de suas potencialidades. Cada um de seus poemas “referenciais” é como uma homenagem a seus ídolos.

Além disso, há a ideia de Bloom, que o aproxima de Barthes (e de toda uma corrente mais contemporânea de pensamento sobre a leitura), de considerar a leitura como atividade, no sentido da produção ou, como ele mesmo escreve, no sentido da “apropriação poética”. No entanto, mais uma vez, Marcelo Ariel leva isso a um sentido extremo: seu processo de apropriação e incorporação da “influência” se constitui na camada mais superficial do texto. E não há nenhum tipo de hierarquização entre artistas, gêneros, tempo ou nacionalidade. Mano Brown, famoso rapper paulista, ganha dedicatória, ao lado de Gilberto Mendes, maestro erudito; Ludwig Wittgeinstein, Maurice Blanchot, Allan Resnais, Jackson Pollock, João Antonio, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Dante, Ana Cristina Cesar, Ossip Mandelstam, John Coltrane, Miles Davis, Hilda Hilst, Paul Celan, Gustav Klimt, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Franz Kafka, James Joyce, Homero, são alguns dos artistas que ganham espaço na obra de Ariel. Dividindo o mesmo poema, muitas vezes, com personagens menos convencionais, como um traficante no momento de sua morte ou com Misael da Silva, fundador do Primeiro Comando da Capital, o PCC, organismo criminoso surgido nos presídios paulistas nos anos 90.

Parece-nos: tudo o que é lido, assistido, ouvido, contemplado, vislumbrado, pelo artista, torna-se matéria poética e isso se faz como comentário ao texto, sem necessariamente traçar uma interpretação para a obra inicial. E a obra de Ariel parece com o trabalho do crítico tal como estabelecido por Barthes: “a análise textual rejeita a ideia de um significado último: a obra não para, não se fecha” (BARTHES, 2004, p. 285).

 

[…] o devir exato dessa teoria, o desenvolvimento que a justifica, não é esta ou aquela receita de análise, mas a própria escritura. Que o próprio comentário seja um texto, eis em suma o que é exigido pela teoria do texto: o sujeito da análise (o crítico, o filólogo, o cientista) não pode, sem má-fé e autocomplacência, acreditar-se exterior à linguagem que descreve; sua exterioridade é totalmente provisória e aparente: ele também está na linguagem, e precisa assumir sua inserção, por mais “rigoroso” e “objetivo” que se queira, no triplo nó entre o sujeito, o significante e o Outro, inserção que a escrita (o texto) realiza plenamente, sem recorrer à hipócrita distância de uma metalinguagem falaciosa: a única prática fundada pela teoria do texto é o próprio texto. (BARTHES, 2004, p. 286-287).

 

Dessa forma, é possível entender o trabalho de Ariel não necessariamente como “crítico” ou “analítico”, mas como um trabalho fundado na ideia de que a própria poesia pode ser o lugar irradiador de um comentário sobre a poesia mesmo ou sobre a arte, de uma forma mais geral. Há, em Ariel, uma compreensão do texto, a poesia, não como fundadora de um sentido pleno e interpretativo sobre as coisas, mas como um espaço de irradiação de significações que não se encerram sobre elas mesmas.

E esse parece ser um tipo de prática comum a nosso tempo, afinal, nunca se pôde experimentar uma acessibilidade tão abrangente e imediata a tudo o que se tem produzido, ou se produziu no passado, em todos os níveis. Neste sentido, ter acesso a inúmeras referências e incorporá-las em sua própria produção, tem se mostrado uma tendência da arte contemporânea com a qual a poesia de Ariel parece se relacionar.

Nicolas Bourriaud, em seu livro Pós-Produção (2009), fala justamente desse tipo de processo criativo. O momento de pós-produção, em cinema e televisão, é aquele no qual os vídeos são editados, os áudios em off são acrescentados, as imagens são melhoradas, de maneira a fornecer um produto mais bem acabado ao público. Bourriaud se apropria dessa ideia para referir-se aos métodos de “bricolagem e reciclagem” empreendidos pela arte contemporânea em relação à tradição.

Uma abordagem da poesia utilizando teoria da arte se justifica, porque o universo das artes não se constrói separadamente: há toda uma rede que se estabelece continuamente do intrincamento das diversas modalidades artísticas. O próprio universo referencial de Ariel se constrói nesse tipo de lugar não hierárquico e não ortodoxo do encontro de inúmeras manifestações distintas, canônicas ou pertencentes ao universo pop. Além disso, o próprio poeta tem outros tipos de produção artística, como texto para teatro, músicas e performances. Aliás, foi justamente realizando performances de leitura de poesia com música que o poeta tornou-se conhecido.

E é olhando para o universo difuso das performances que Bourriaud construiu sua teoria da Estética Relacional e também a teoria da Pós-Produção. No que concerne a esta última, vale destacar mais um longo trecho no qual o autor elucida sua ideia:

 

Todas essas práticas artísticas [contemporâneas], embora muito heterogêneas em termos formais, compartilham o fato de recorrer a formas já produzidas. Elas mostram uma vontade de inscrever a obra de arte numa rede de signos e significações, em vez de considerá-la como forma autônoma ou original. Não se trata mais de fazer tábula rasa ou de criar a partir de um material virgem, e sim de encontrar um modo de inserção nos inúmeros fluxos da produção. (…) Dito em outros termos: como produzir singularidades, como elaborar sentidos a partir dessa massa caótica de objetos, de nomes próprios e de referências que constituem nosso cotidiano? Assim, os artistas atuais não compõem, mas programam formas: em vez de transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a argila), eles utilizam o dado. Evoluindo num universo de produtos à venda, de formas preexistentes, de sinais já emitidos, de prédios já construídos, de itinerários balizados por seus desbravadores, eles não consideram mais o campo artístico (e poderíamos acrescentar a televisão, o cinema, a literatura) como um museu com obras que devem ser citadas ou “superadas”, como pretendia a ideologia modernista do novo, mas sim como uma loja cheia de ferramentas para usar, estoques de dados para manipular, reordenar e lançar. (BOURRIAUD, 2009, p. 12-13).

Importante nas concepções de Bourriaud, e que expressam nossas próprias concepções, é que as tendências da arte contemporânea, no que concerne ao aproveitamento dos dados anteriores da tradição, não são formas de arte com menos valor estético. Ao contrário, representam as potencialidades que se estabelecem na atualidade ao se relacionar com o volume de produtos aos quais se tem acesso e uma representam também uma forma de dar sentido a esse excesso.

Embora Marcelo Ariel construa alguns de seus poemas sem necessariamente elencar referências, na maior parte dos casos parece ser justamente esse processo de “programação” o que se estabelece em seus poemas. Como um filho de seu tempo, nosso poeta se insere prontamente dentro do contemporâneo. As reflexões metafísicas, a “poética do caos” e as múltiplas referências do universo artístico constituem na obra de Ariel essa singularização, como apontado por Bourriaud, construindo, dentro dessa poética de crise, alguma espécie de coesão. E o poema se constitui como um espaço de associação de dados que se convertem em comentário sobre os próprios dados elencados pelo texto, instituindo uma cadeia geradora do texto que não se esgota nela mesma e estabelece uma rede contínua de sentidos.

 

 

Bibliografia

 

ARIEL, Marcelo. Conversas com Emily Dickinson e outros poemas. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2010.

 

ARIEL, Marcelo. Me enterrem com a minha AR 15. São Paulo-SP Dulcinéia Catadora, 2007.

 

________. Tratado dos Anjos Afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 1ª. Ed., 2008.

 

________. Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio. São Paulo: Patuá, 2014.

 

________. Entrevista para a jornalista Marcella Chartier, em 29 de janeiro de 2008. Disponível em: http://teatrofantasma.blogspot.com.br/2008/01/entrevista-para-jornalista-marcella.html Consultado em 15/11/2013

 

BARTHES, Roland. “Texto (teoria do)”. In: Inéditos. Vol. 1 – Teoria. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins, 2004. P. 261-289.

 

BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santana. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2002.

 

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

 

SISCAR, Marcos. Poesia e Crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

 

* Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Este artigo foi produzido com apoio da bolsa de mestrado da CAPES.