Comentários sobre a tradução de “The epipletic Bicycle”, de Edward Gorey – Angélica Micoanski

COMENTÁRIOS SOBRE A TRADUÇÃO DE THE EPIPLECTIC BICYCLE, DE EDWARD GOREY

 

Angélica Micoanski*

 

 

Edward Gorey (1925-2000) foi escritor e ilustrador de mais de cinquenta livros classificados como Literatura Infantojuvenil[1]. Gorey colaborou com as ilustrações da abertura de um desenho animado chamado Misery (1981)[2], e ilustrou também edições de obras de outros escritores, entre eles, de Edward Lear, precursor do gênero nonsense juntamente com Lewis Carroll.

As produções de Gorey apresentam características similares à obrade Edward Lear, pois ambos os autores trabalham com o gênero nonsense, sendo este não a falta de sentido, mas um balanço entre o sentido e a falta dele, conforme afirma Wim Tigges (1988). Esse “balanço” de sentido no texto pode causar estranheza para o leitor, deixando-o confuso e, ao mesmo tempo, convidando-o a estabelecer algum sentido ao que foi lido. Dessa forma, o sentido pode surgir com a colaboração do leitor.

O nonsense trabalha com temas do cotidiano, o que torna comum os assuntos relacionados à alimentação, itens de vestuário, tempo, espaço, hábitos humanos, objetos, letras e números que não tragam carga simbólica forte. Em contrapartida, há temas que são evitados, como emoções, religião, beleza ou amor.

Há quem diga que assuntos relacionados à morte também sejam evitados; no entanto, este é um tópico muito presente tanto no nonsense de Edward Lear, quanto no de Edward Gorey. A morte, todavia, geralmente se encontra nas estrelinhas.

O livro A Bicicleta Epiplética (2013) de Edward Gorey, relata a história de Embley e Yewbert, dois irmãos que se aventuram com uma bicicleta. Tal obra pode ser classificada como nonsense por deixar o leitor confuso entre o sentido e a falta dele e, ainda, por apresentar temas comuns do gênero, como objetos comuns do cotidiano, alimentos e questões de tempo ou espaço.

Os irmãos encontram uma bicicleta que parece ter vida, uma vez que não são os personagens que levam a bicicleta aos lugares, mas é a própria bicicleta que, além de aparecer sozinha, os carrega para diferentes locais, onde estes se deparam com cenas ou acontecimentos que, embora sejam comuns no dia a dia, causam estranheza pela maneira como acontecem ou como são retratados pelo autor.

Um exemplo disso é quando os meninos passam por um campo de rabanetes. Neste momento, é possível observar um dos temas comuns: comida, mas o que pode causar estranheza no leitor é o fato de que se tenha enfatizado que o campo era de rabanetes, embora não houvesse nenhum vegetal.

Em seguida Embley percebe que perdeu “seus catorze pares de sapatos amarelos”. Neste trecho temos exemplos de itens de vestuário, o que caracteriza outro tema comum do gênero, que intriga o leitor, já que não é normal alguém usar catorze pares de sapatos.

O tema da morte se faz presente neste livro em três momentos. Primeiramente de forma explícita, quando os meninos chutam a ponta do nariz de um jacaré levando-o à morte. Em seguida, ao final da obra, quando os meninos se deparam com um obelisco construído 173 anos atrás em homenagem a eles. A morte aqui ocorre de forma implícita, pois uma homenagem é geralmente construída após a morte de alguém e, neste caso, principalmente, é especificado que aquela homenagem havia sido construída há tanto tempo que não seria possível que os homenageados estivessem vivos. Por último, a morte também aparece quando a bicicleta, que parecia ter vida própria na história, solta seu último suspiro e “cai aos pedaços”, ou seja, morre.

O livro A Bicicleta Epiplética (2013) é o único livro de Edward Gorey traduzido e publicado no Brasil. Foi primeiramente publicado em 1969, nos Estados Unidos, e traduzido no Brasil em 2013 por Alexandre Barbosa de Souza, escritor, tradutor, editor e redator, e Eduardo Verderame, escritor, tradutor e artista plástico.

A tradução foi publicada pela editora Cosac Naify, a qual catalogou o livro como literatura infantojuvenil. O livro é de formato pequeno, cada página apresenta uma ilustração acompanhada de texto em apenas em um lado das páginas. A impressão é feita em capa dura, apresenta a mesma ilustração da capa do livro publicado nos Estados Unidos.

O título e o nome do autor, assim como no livro em inglês, são vários sapatos amarelos embaralhados acompanhados de uma letra em cada sapato[3], que juntos formam “A bicicleta Epiplética” e “Edward Gorey”. O que é acrescentado na tradução é uma faixa preta na parte superior da capa em que o título e o nome do autor são apresentados com letras brancas e em ordem, para que o leitor consiga obter as duas informações sem precisar decifrar as letras embutidas nos sapatos amarelos, como se pode observar na ilustração abaixo:

Gorey 1

A tradução, assim como o texto fonte, apresenta cada ilustração acompanhada de um texto cujas características são similares às de um romance, pois é separado por capítulos e contém um prólogo. No entanto, tais características não são suficientes para classificar a obra como pertencente ao gênero romance.

Cabe ressaltar também que o texto apresenta capítulos alternados, pois do capítulo dois pula-se para o quatro, em seguida para o sétimo e assim acontece em toda a obra, sem seguir uma ordem. Tal característica pode ser consequência do nonsense, pois o leitor pode querer estabelecer um sentido para a “ausência” de alguns capítulos, assim como pode também ser apenas uma brincadeira que Gorey faz com os números.

Algumas ilustrações apresentam mini diálogos, tanto no texto de partida quanto na tradução. Estes diálogos são compostos principalmente por interjeições e palavras isoladas, que parecem demonstrar algum sentimento relacionado ao enredo. No primeiro diálogo, por exemplo, os irmãos falam dois palavrões que servem como xingamentos.

No texto de partida, tais xingamentos não são muito ofensivos, são termos normalmente utilizados por crianças quando estão brigando, como é o caso dos irmãos que, nesta cena, batem um no outro com tacos. A tradução mantém a sensação que o texto de partida sugere, os xingamentos escolhidos funcionam na língua de chegada, pois também não são muito ofensivos.

A escolha de tais palavrões também se deve ao público alvo escolhido pela editora, que aqui são crianças, pois a utilização de palavrões mais pesados possivelmente interferiria na comercialização da obra.

Em alguns diálogos presentes nas imagens, os tradutores mantiveram a grafia das interjeições, pois elas funcionariam da mesma maneira no idioma de chegada, como é o caso na imagem a seguir, com o uso da interjeição “Ho!”:

 Goery 2

Da mesma forma, recriaram o diálogo transcrevendo o som que a interjeição transmite no texto de partida, como é o caso de “Rá!”, usada quando a criança sobe no banco da bicicleta. Tal interjeição, acompanhada do enredo e da imagem, demonstra alegria pela conquista. No texto de partida, essa imagem é acompanhada pela interjeição “Há!”:

O mesmo acontece na figura a seguir, em que a imagem do texto de partida é acompanhada pelo diálogo “Ugh”, e no texto de chegada os tradutores optaram por “Uff”. Esses dois exemplos demonstram a preocupação dos tradutores com a manutenção dos sentimentos que o texto fonte procura transmitir:

 Gorey 3

Há um diálogo no qual um grande pássaro empoleirado aconselha as crianças a terem cuidado. Aqui, a fala do pássaro, no texto fonte, é a seguinte: “Beware of this and that”, que traduzida de forma literal poderia ficar: “Cuidado com isso e aquilo”. No entanto, os tradutores optaram por: “Cuidado e blá blá blá”. Tal escolha transmite a ideia do texto de partida, pois “this and that” não especifica com o que os personagens devem ter cuidado, assim como “blá blá blá” não é carregado de sentido específico, também não esclarece com o que os meninos precisam ter cuidado. O que os tradutores fizeram, ao optar por “blá blá blá”, é o que Paulo Rónai (2012) considera traduzir “[…] a mensagem. E não há duas línguas que exprimam uma mensagem de certa complexidade de modo completamente igual” (RÓNAI, 2012, p. 94).

Quando os infantes se deparam com o obelisco em homenagem à memória deles, um dos personagens diz: “What can it mean?”, no texto de partida. Essa interrogação é ambígua, pois o it, pode se referir ao obelisco como item não identificado, como se a menina visse aquilo e não identificasse a construção por não saber que aquilo é um obelisco, ou por não saber o que é um obelisco.

Ainda, a frase poderia transmitir a sensação de que a menina não entendeu por que aquela construção fora erguida em memória deles, como se ela interrogasse tal homenagem se perguntando o que aquilo (a homenagem) quer dizer. Ou seja, o it, pode se referir ao obelisco em si, como item não identificado, ou pode estar relacionado ao fato de ela não entender o motivo pelo qual o obelisco fora construído em sua memória.

No texto de chegada, tal questionamento é traduzido como: “O que será isso?”, fazendo com que se perca a ambiguidade sugerida no texto de partida. Dessa maneira, a personagem parece apenas questionar o que é o obelisco, como se não conseguisse identificar que tipo de construção é aquela. O outro possível questionamento intrínseco na pergunta torna-se inexistente no texto de chegada.

Conforme afirma Paulo Rónai (2012, p. 60): “Numa palavra, devido à dessemelhança nas condições de vida é impossível que qualquer tradução dê a mesma impressão do original”. Essa dessemelhança acontece com o termo it comentado anteriormente, pois a interrogação no texto fonte apresenta uma ambiguidade que não conseguiu ser mantida na tradução.

Outra solução dada pelos tradutores foi realizada ao acrescentar a conjunção “que” nas frases: “estava escuro demais para ouvir qualquer coisa – / que desabou quando saíram do outro lado”, nas imagens seguintes, quando as crianças saem do celeiro.

O texto de partida separa as frases utilizando ponto e vírgula, fazendo com que as frases sejam independentes, cada uma acompanhando uma ilustração. A tradução traz o hífen, ao invés do ponto e vírgula, e adiciona a conjunção “que”, fazendo com que as frases se interliguem, como se a segunda fosse continuação da primeira.

Tal alteração possivelmente foi efetuada a fim de fazer com que o texto ficasse mais coerente para a língua portuguesa. Todavia, essas frases soltas parecem ser uma característica do nonsense de Edward Gorey, já que é possível encontrar algo similar em outros textos, como em seu livro The Object-Lesson, publicado em 1958. Levando isso em consideração, tal característica não pôde ser mantida no texto de chegada.

De acordo com Paulo Henriques Britto (2012, p. 15): “Às vezes uma palavra que existe num idioma simplesmente não encontra correspondência em outro, muito embora a realidade a que ambos se referem seja a mesma”. No texto de partida, os personagens encontram um grande arbusto e param para comer frutos que, na língua de partida, são chamados de berries. O termo berries, da língua inglesa, é utilizado para generalizar alguns tipos de frutos pequenos e suculentos, como morangos (strawberries), amoras (blackberries), mirtilo (blueberries), entre outros. Na língua portuguesa, não existe um termo que seja correspondente à palavra berries, o que levou os tradutores à optarem por “amoras”, um tipo específico de berries.

A escolha do termo “amoras” provavelmente é influenciada pela imagem que acompanha as frases comentadas. Como se pode perceber na imagem seguinte, os arbustos com berries são altos e grandes, com frutos pequenos, de fato parecidos com amoras. Todavia, amoras não nascem em arbustos, mas sim em árvores, o que pode causar estranheza no leitor e, ao mesmo tempo, recriar uma característica do nonsense que possivelmente não seria transmitida no texto de partida, já que algumas berries comuns no norte da América nascem em árvores similares à arbustos, como é o caso da framboesa (raspberry).

Quanto ao título: The Epipletic Bicycle, no texto de partida, apresenta um neologismo[4] com o termo epiplectic[5], palavra inventada pelo autor, inexistente nos dicionários de língua inglesa. O título ficou: “A bicicleta epiplética”, no texto de chegada, em que os tradutores recriaram o neologismo e o traduziram como “epiplética”, inexistente também nos dicionários. Independente do que possa ser uma bicicleta epiplética, é característica do nonsense de Edward Gorey criar palavras, e conforme afirma Rónai (2012), é permitido ao tradutor recriar, assim como aconteceu na tradução deste título.

Dessa forma, pode-se observar que características do nonsense presentes na obra de Edward Gorey foram preservadas, e que algumas escolhas realizadas na tradução podem alterar o sentido do texto, mas que ao mesmo tempo a ideia geral, que o livro propõe no texto de partida, pode ser alcançada também no texto de chegada. É possível observar também que as ilustrações de Gorey são essenciais para a compreensão de sua obra, pois seu texto escrito dialoga com suas imagens.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ÁVILA, Myriam. Rima e Solução:A Poesia Nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear. São Paulo: Annablume, 1995.

BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

GOREY, Edward. A bicicleta epiplética. Tradução de Alexandre Barbosa e Eduardo Vendrame. 1ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

______________. Amphigorey Too. New York: Perigee, 1980b.

GOREY, E. A Gorey Encounter. Depoimento. [2001]. Orlando. Entrevista concedida a Ed Pinset.

__________. Conversation with Writers: Edward Gorey: depoimento. [2001]. Orlando. Entrevista concedida a Robert Dahlin.

LATHEY, Gillian. The Translation of Children’s Literature: A Reader.Great Britain: Cromwell Press, 2006.

RÓNAI, Paulo. Escola de tradutores.7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

____________. A tradução vivida.4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

TIGGES, Wim. An Anatomy of Literaty Nonsense. Amsterdam: Rodopi, 1988.

WILKIN, Karen. Ascending Peculiarity: Edward Gorey on Edward Gorey. Orlando: Harcourt, 2001.

 

[1] A classificação do livro para o público leitor é realizada conforme catalogação da editora Cosac Naify.

[2] Tal animação passou no canal PBS, já não se encontra no ar.

[3] No texto de partida, a ilustração traz dezessete sapatos para montar o título, já no texto de chegada, são necessários vinte sapatos.

[4] Entende-se como neologismo a criação de uma nova palavra. O termo epiplectic é uma palavra inventada por Edward Gorey, assim como sua tradução: “epiplética”, é um termo inventado pelos tradutores, ou seja, tanto epiplectic, quando “epiplética” são neologismos.

[5] O termo epiplectic¸ em um primeiro momento, parece com epilectic. No entanto, não se pode afirmar que exista alguma relação entre as duas palavras. Há quem diga que esse termo tenha origem da palavra grega “epiplexis”, que significa “um discurso com caráter repreendedor com intuito educativo”, mas também não se pode afirmar que Gorey tenha realizado essa associação. Conforme algumas entrevistas dadas pelo escritor, ele escrevia o que lhe vinha em mente. Por isso, acredita-se aqui que o termo epiplectic seja uma criação de Gorey, sem tentar estabelecer algum sentido específico.

 

** Mestranda PGET (UFSC)