O poeta como testemunha. Uma brevíssima reflexão sobre dois poemas de Czesław Miłosz – Piotr Kilanowski
O poeta como testemunha. Uma brevíssima reflexão sobre dois poemas de Czesław Miłosz*
Piotr Kilanowski**
Czesław Miłosz
Czesław Miłosz (1911-2004) não é estranho ao mundo letrado brasileiro. Na esteira do prêmio Nobel concedido ao poeta em 1980, seguiram-se traduções (indiretas, do inglês) de dois de seus romances Dolina Issy [1955] (O vale dos demônios [Francisco Alves, 1982]; posteriormente editado em outra tradução indireta como O vale do Issa [Novo século, 2012]) e Zdobycie władzy [1955](A tomada do poder [Nova fronteira, 1988]). Em 2010 foi publicada também outra tradução indireta do livro ensaístico de MiłoszZniewolony umysł [1953] (A mente cativa, Novo século, 2010).
O grande poeta pode, no entanto, contar também com traduções diretas. Graças ao trabalho de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza, veio ao lume a antologia bilingüe de poesia Não mais, publicado em 2003 pela Editora da UnB. Outro livro ensaístico do autor foi traduzido do polonês por Marcelo Paiva de Souza. O testemunho da poesia. Seis conferências sobre as aflições do nosso século (Świadectwo poezji. Sześć wykładów o dotkliwościach naszego wieku) foi editado pela Editora da UFPR em 2012.
Esta amostra aparentemente considerável, infelizmente não dá ideia do quanto de Miłosz ainda falta a traduzir. Autor extremamente profícuo, ao longo de quase um século de vida não parou de produzir. Quase cinquenta títulos de livros, entre eles poesia, ensaios, romances, um manual de história da literatura polonesa, sem contar as traduções. A vida de Miłosz é perpassada pelo cruel século XX. Testemunha de três guerras (duas mundiais e a soviético-polonesa), uma revolução, dois totalitarismos, Miłosz foi sempre uma referência literária e política na Polônia. É de sua autoria o poema que os trabalhadores do estaleiro de Gdańsk escolheram colocar, durante a curta primavera do Solidariedade, em 1981, no monumento que comemorava os seus colegas assassinados pelo regime comunista durante as greves de 1970.
Antes da Segunda Guerra Mundial, um dos membros do movimento poético catastrofista Żagary[1], foi visto como uma das esperanças da poesia polonesa. Durante a guerra se encarregou de ser uma das vozes da consciência nacional que falava por meio de poesia. Não lutou na resistência, mas participou da vida literária proibida pelos alemães e publicou livros clandestinamente. Foi condecorado em 1989, junto com seu irmão Andrzej, com a medalha de Justos Entre as Nações, concedida pelo Instituto Yad Vashem aos que salvaram vidas de judeus durante a Shoah.
Depois da guerra trabalhando no corpo diplomático polonês do governo comunista, Miłosz decide não voltar para o país, escolhendo exílio, primeiramente na França e, depois, como professor da literatura polonesa em Berkeley, nos Estados Unidos. É laureado com o prêmio Nobel em 1980. Durante a época do comunismo, depois dos virulentos ataques que se seguem à sua fuga para o Ocidente, seu nome entra no rol dos nomes proibidos de serem mencionados nas publicações oficiais, sendo passível de ser censurado. As suas obras existem apenas em edições clandestinas no país. Depois da queda do comunismo, Miłosz volta ao seu país, onde falece em 2004.
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Os poemas publicados na seção Teatro na praia se originam da época da guerra, sendo publicados no volume poético Ocalenie (Salvação), de 1945. O volume com bastante variedade estilística dá à poesia polonesa um novo tom, uma nova dicção poética. Entre os ciclos dos quais é composto, deve-se mencionar “O mundo. Poemas ingênuos” e “Vozes das pobres pessoas”. O primeiro deles, de onde vem a “Parábola sobre papoula”, é uma tentativa de recriar o paraíso da infância, o mundo dos valores básicos que a guerra se encarregou de destruir, ou ao menos obnubilar. No segundo, o lugar da ingenuidade metafísica é tomado por um exercício de empatia que possibilita entender os dramas dos seres humanos, presas da “história que se soltou da coleira”, usando das palavras do outro grande escritor polonês, uma das primeiras testemunhas de campos de concentração russos, Gustaw Herling Grudziński.
O contraste da “Parábola sobre papoula”, assim como dos outros poemas ingênuos do ciclo, com a situação na qual foram escritos, não poderia ser maior. Podemos imaginar que a tentativa de recriar a visão da criança que está conhecendo o mundo seja uma maneira de protestar contra o mundo da guerra. Diante da deturpação dos valores básicos, o poeta tenta recriá-los, resgatá-los dentro de si e dos possíveis leitores. A calma, simplicidade e ingenuidade que são marcadas pela presença no ciclo de poemas como “Fé”, “Esperança” e “Amor”, tentam restaurar o quadro de valores, lembrar da existência e da necessidade da presença da criança interna em tempos cruelmente adultos. O mundo como deveria ser é o tema desta parte do livro. O restante do livro, principalmente o outro ciclo mencionado, constrasta descrevendo o mundo como ele é. A crueldade do ser humano, as cenas do cotidiano da ocupação alemã e os primeiros testemunhos do catastrófico destino dos poloneses judeus.
Além da Shoah, os poemas “Campo di Fiori” e “Um pobre cristão olha para o gueto” testemunham, também, a situação dos poloneses, que participaram do genocídio na condição de indiferentes observadores. Se, por um lado, a universalidade da postura passiva diante do infortúnio alheio é reforçada no “Campo di Fiori” pela comparação com a execução de Giordano Bruno, por outro, a particularidade do carrossel construído pelos alemães do lado de fora do gueto da Varsóvia em chamas do Levante[2], representa a condição particular dos poloneses. Alguns escolhiam ajudar (como o próprio poeta) arriscando as suas vidas, outros abertamente denunciavam os judeus fugitivos aos alemães, mas a grande maioria preferiu não perceber o que estava acontecendo. Uma fuga do terrível, típica de todos nós? A diferença da experiência que impossibilita qualquer comunicação? O turvamento dos valores básicos, que a guerra trouxe? Indiferença aos sofrimentos dos diferentes de mim? Talvez uma mistura de tudo isso…
O poema foi escrito como reação quase imediata a ter visto o carrossel rodando com as pessoas do outro lado de uma das entradas do gueto de Varsóvia nos primeiros dias do Levante do Gueto. O próprio autor via o poema como um verso escrito sobre o morticínio da posição de observador e estava, até certo ponto, incomodado com ele. O poema logo virou antológico. A quantidade de temas universais contidos nele, o tom que desde o início toma a distância do acontecimento colocando o em moldes clássicos, heróicos, moralizantes e históricos, a própria beleza do poema fizeram com que seja um dos poemas poloneses mais citados quando o tema é a Shoah.
Miłosz, no mesmo poema, trata problemas que a guerra ocasionou: o “adeus à humanidade” dado por Giordano Bruno, é o adeus não só à espécie, mas também à qualidade de ser humano. Os valores, cujo resgate Miłosz tenta nos poemas ingênuos, pertencem a um outro mundo. Não há mais humanidade depois da Shoah. Não há mais humanidade diante do morticínio. Assim como não há língua na qual se possa expressar o que houve. A crise da linguagem, evidenciada pela guerra, está presente tanto na falta de palavras de Giordano para se despedir da humanidade, quanto na língua daqueles que “morrendo solitários,/ Pelo mundo já esquecidos,/ Nossa língua agora estranham / Como a língua de um planeta antigo.” Está em evidência a incapacidade de comunicação entre o mundo que experiencia a mais básica verdade sobre o ser humano: o morrer e o mundo que desesperadamente nega esta verdade. Mas a quebra entre línguas se dá também pelo fato particular de que no gueto fala-se predominantemente o ídiche e, do lado de fora dos muros, o idioma, que outrora foi também daqueles que estão morrendo, é o polonês.
O mundo esquece imediatamente, esquece na hora da morte e o poeta escreve um poema-monumento para evitar o esquecimento, mas também já está colocando todo o acontecido em cenários históricos, lendários. A dificuldade de se escrever sobre a Shoah, de toda a escrita testemunhal, se apresenta em todos esses aspectos. Como se pode escrever um poema bonito sobre algo horrendo? Como fazê-lo tentando dar testemunho e não moralizar? Como expressar algo se a linguagem é incapaz de refletir a experiência, ainda mais a experiência extrema? E ainda mais, o que fica evidente no poema “Um pobre cristão olha para o gueto”, como trabalhar com a condição de testemunha deste crime.
Pois a participação no crime na condição de testemunha não isenta do complexo de culpa por não ter feito nada, mesmo se não se podia fazer algo. Ou porque fazer qualquer coisa, além de poder ser inútil, trazia um sério risco à própria vida. A Polônia era único lugar onde qualquer ajuda a um judeu era passível, de acordo com a lei alemã, da pena da morte a quem ajudava, seus familiares e vizinhos.
“Um pobre cristão olha para o gueto” e além de se amedrontar com o espetáculo terrível que está presenciando, se amedronta pela possibilidade de ser contado entre os perpetradores, ajudantes da morte. O guardião-toupeira, que aparece no poema, pode ser o fruto da própria consciência culpada de não ter podido fazer nada, pode ser o peso da tradição e valores por ela representados que a guerra obrigou a renegar, pode ser, por fim, o olhar do sobrevivente que pelos tuneis que cavou nos escombors conseguiu fugir e acusa os observadores de indiferentes.
Os dois poemas, de alguma maneira, complementam-se, dialogam entre si. A beleza de um e a escuridão do outro são os dois lados do testemunho poético. Os dois lados da experiência de escrever os poemas depois de Auschwitz: é impossível não fazê-lo, é impossível não se sentir culpado ao fazê-lo.
BIBLIOGRAFIA
BŁOŃSKI, Jan. Biedni Polacy patrzą na getto. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 1996.
GORCZYŃSKA, Renata, MIŁOSZ, Czesław. Podróżny świata. Rozmowy z Czeslawem Miloszem. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 2007.
GROSS, Natan. Poeci i Szoa. Obraz Zagłady Żydów w poezji polskiej. Sosnowiec: Offmax, 1993.
FRANASZEK, Andrzej. Miłosz. Biografia. Cracóvia: Znak, 2011.
MIŁOSZ, Czesław.Wiersze wszystkie. Cracóvia: Znak, 2010.
MITZNER, Piotr. Słowa szukając na Campo di Fiori. Czesław Miłosz wobec kryzysu języka. in: MAJCHROWSKI, Zbigniew (org.), OWCZARSKI, Wojciech (org.) Wojna i Postpamięć. Gdańsk: Wydawnictwo Uniwersytetu Gdańskiego, 2011, s. 41-46.
WOŁK, Marcin. Język nasz, język ich: jeszcze o wariantach tekstowych “Campo di Fiori”. Archiwum Emigracji vol.14-15, Toruń 1/2 2011.
[1]Grupo poético do movimento da segunda vanguarda da poesia polonesa, conhecida também como vanguarda de Vilnius. Formado em 1931 na cidade de Vilnius, então pertencente à Polônia, marcado por catastrofismo, antifascismo, esquerdismo e engajamento social.
[2] Levante do Gueto de Varsóvia (19.04.1943 – 16.05.1943), ato de resistência dos judeus poloneses, encerrados no gueto, diante da perspectiva de serem levados para campo de extermínio em Treblinka pelas forças alemãs nazistas que estavam prestes a liquidar o gueto.
* O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. O artigo contou com a revisão de Luiz Henrique Budant, a quem dirijo “agradecimontes”.
** Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura na UFSC.