Uma pequena antologia de poemas de Claudio Willer
Uma pequena antologia de poemas de Claudio Willer
O poema de Claudio Willer mais antigo foi publicado em Anotações para um apocalipse, de 1964:
VISÃO DE NOVA YORK
O grande cavalo de lágrimas azuis desce do Oeste, lento como a névoa dos trigais. São hotéis de granito e espuma plástica em ruas que outrora foram violentadas, em manhãs mais suaves que a brisa dos grandes portos. Todos os túneis, todas as cavernas se encontram em um desfiladeiro de torreões metralhados. Todos os trilhos convergem para um só ponto, todos os subways apontam para uma só direção, e na vegetação dos grandes parques cresce o arbusto andrógino cujas raízes são de metal e seda. Os retângulos magnéticos geraram uma cidade onde cavalos à solta pisoteiam os gerânios dos patamares e a combustão espontânea anima os corpos dos amantes nas tardes de verão. Sementes germinarão violentamente em Bleecker Street, pois um pântano noturno sacode os alicerces dos grandes prédios embebidos em aguarrás. Gritos gelados soam em um corredor de pálpebras estreitas, e no parque onde pastam as lhamas emergem montes de cristal, despertando a última sentinela de uma paisagem de antenas partidas e ventiladores retorcidos.
NY, 07/1963
Um dos poemas de Dias Circulares, de 1976 (foi escrito em 1967):
AS RODAS MECÂNICAS E COM VONTADE PRÓPRIA QUE SURGEM APÓS O SUCUBATO
E agora, como sempre, Hermengardo, o nascer do sol, Fúlvia, a luminosidade, seus estiletes, os panos alaranjados estendidos sobre os alambiques, cada vez mais longe, a distância é uma pedra azulada que define tudo, o afastamento uma sucessão de pirâmides brotando raízes, o caminho um nó no cérebro, a velocidade o rastro do grito que atravessa as farpas, a satisfação vista como possibilidade de espirar profundamente, de novo, um pouco de pó com significado de esperas, Hermengardo, Fúlvia, o colecionador de anéis e dentaduras fosforescentes sob a tempestade, a sorvedora de corações de periquitos imperfeitos porém brilhantes, a predileção pelas escarpas e vertentes, a luz conivente, lembrada, penetrante, dos estados visionários quando saímos do eclipse para saber que o sonho só pode ter um formato tubular. A proximidade sentida como sendo toda uma época, seu cortejo de personagens familiares redescobertos: paisagem a partir da víscera, desdobrando o olho e despejando guarda-sóis feéricos contra a opacidade do mundo.
De Jardins da Provocação, de 1981:
FAZ TEMPO QUE EU QUERIA DIZER ISTO
ainda não conseguiram destruir o mar
não foram capazes de estrangulá-lo com fios elétricos e rodovias
nem de o retalhar com cercas
ou de lotear as manchas do seu dorso
o mar ainda existe
presente na consciência dos amantes
nas madrugadas de suor cúmplice estampado nos lençóis
para podermos ver o mar
para penetrar aos poucos nestes refúgios mornos
cavernas do primitivo sonho
útero de filamentos luminosos
é preciso nos desnudarmos totalmente
e sabermos nos reconhecer
pelo toque da pele
como algo que termina e recomeça
dois poemas entrelaçados
mordendo-se como a serpente mítica
o mar e suas gavetas de cristal
seus andaimes de prata
sua borbulhante conspiração de gelatinas
sua sofreguidão de novelas agitadas
seus túneis de trilhos descendentes
sua nudez flamejante
seu tempo de redes desfazendo-se na areia
seus barcos mergulhados na definitiva espera
seus poços artesianos de sal
seu recheio de quadros abstratos
sua cornucópia dos desejos obscuros
seus punhais envoltos em sargaços
suas torres de castelos de beleza pura
suas largas avenidas batidas pelo vento
seu arco-íris dançando o balé do amanhecer
suas mãos de dedos transparentes a perder de vista
guardião dos nomes dos suicidas
que vagam pelas ruas de cidades submersas
labirinto de lembranças
labirinto de luzes e sombras vivas
ondas fazendo valer seu interminável instante de rugidos
entrechocando-se com o furor dos metais nas batalhas de Paolo Ucello
selva de ruídos selva de ausências
e a hora da praia
pura realidade de silhuetas
lábio de vagina úmida dos continentes
dorso de gato angorá roçando a terra firme
clamor de corais
ecoando por campos submarinos
afugentando as águas-vivas
que chegam à praia como bandeiras de nações febris
(nesta rua asfaltada e cheia de gente de uma cidade de prédios inúteis que contemplam o mar certos da sua fatal corrosão
encontro um velho e inesperado amigo, ele carrega consigo sua roupagem hindu de seda negra e um estranho olhar fixo de visionário estampado no rosto pálido
recuamos para um lugar tranqüilo, sentamos para conversar entre palmeiras e uma brisa fresca
falamos das pessoas e das aventuras dos anos 60 e 70, tudo o que aconteceu, esses frágeis cenários agora vistos a partir desta perspectiva favorável de uma mesa de bar, eterna como todas as mesas de bar, neste mesmo lugar onde já escrevi outros poemas
próximos demais da areia para que não sejamos rigorosamente verdadeiros
nomeamos os personagens: um que foi morar em Punta del Este para fazer não se sabe o quê, outro que viajou para a França e ficou muito rico, aquele que mora em um barco e contempla o vazio todas as manhãs, alguém que dardeja traços alucinados sobre o papel, os que escrevem coisas absurdas com a firme convicção dos testamenteiros
e há também os que se mataram, os que foram mortos, que se afugentaram de si mesmos e ingressaram na definitiva condição de fantasmas, os navegantes para todo o sempre
o amigo se despede e parte, mergulha para dentro do calor de fim de tarde de um verão precoce, atravessa a barreira de uma cerca viva de folhagens, dissolve-se dentro da névoa que sempre se forma nestes dias
arrasta consigo este feixe de biografias entrelaçadas
e a questão parada no ar do que fazer com tudo isso
levanto-me e vou até a mureta que separa o jardim, agora deserto, da praia
chego mais perto
(o entardecer começa a despejar seu instante de alucinação carmesim)
CHEGO MAIS PERTO
atravesso um filtro de maresias
recolho das ondas a simetria deste poema
nuvens dilaceram-se em um derradeiro combate de cores
enquanto o mar
(um rio mais indomável)
respira pesadamente
passando à minha frente
com a lentidão solene das procissões de barqueiros religiosos
estendendo seu cobertor de noites
abafando as fogueiras do fundo
acesas nas clareiras onde afogados tentam aquecer as mãos
a presença humana é murmúrio e solidão
restam apenas estes dois navios cargueiros
sombras recortadas contra o longe
dois barcos – dois pontos
vozes solitárias insignificantes e nulas
mergulhando no vazio cinzento
e este veleiro
mancha agitada sobre um mapa de negações
deslizando rápido para dentro da sua hora noturna
o humano recua de vez
agora tudo é distância e vazio
dissolvem-se as palavras e a paisagem
resta apenas o outro
tudo o que não somos
tudo o que nos é estranho
como um texto
oco da memória viva
malha obscura de encontros amorosos
o negativo deste nosso mundo de coordenadas terrestres
com seu surdo murmúrio de infinitas fontes
De Estranhas experiências (2004)
CARTA
Ao artista plástico Elvio Becheroni, a propósito de seu livro Luoghi di Memoria
Você me pede para escrever algo para seu livro de gravuras
quer que fale do Rio de Janeiro
e conte histórias
de lugares e viagens e memórias
talvez
qualquer coisa
como em 1979, eu chegava ao Rio de Janeiro
pelo caminho do litoral, pelas praias da Rio-Santos
trazia no rosto queimado de sol a expressão tranqüila
dos que vivem à beira-mar
qualquer coisa
como aquela noite no alto da Urca
então chamava-se Concha Verde
e antes chamara-se Frenetic Dancing Days
ela tentava convencer-me
de que as luzes da cidade eram olhos dourados que piscavam na neblina
e eu concordava que havia ruídos de mar
ressoando no bojo da nossa loucura
qualquer coisa
como aquele dia inteiro passado a caminhar na praia:
impulsionava-nos certa atração pelo sublime
e nós nos entretínhamos a decifrar a errante caligrafia do tempo
nervosamente rabiscada na pauta das ondas
até que punhais de nuvens arcaicas emoldurando o entardecer
viessem se cravar em nosso infinito
e sentíssemos os cabelos da noite crescerem vagarosamente
pois a escuridão havia chegado
para reclinar-se em seu colchão de maresias
então,
entre a onda e o lampejo da onda
entrevimos o perfil em chamas de nossos corpos
entre o vivido e o não-vivido
o traço cambiante da arrebentação
entre os ruídos do mar e os ruídos da cidade
a complicada geometria de nossos silêncios
e um inesperado perfume de jasmins
por mim
nunca mais sairia dali
ficaria por lá mesmo
para sempre percorrendo a praia
a acompanhar a insofrida inquietação dos astros presos a suas órbitas
mas acabamos nos perdendo
entre redomas de luz amarela de mercúrio
nos confusos labirintos de um jardim
e há tantas histórias a serem contadas
e você me pede que escreva sobre o Rio de Janeiro
mas não existem cidades
são nossas viagens que criam roteiros
– mapas de superfície luminosa como estes em seus quadros, reflexos do céu mais estrelado de Samarcanda, do límpido entardecer florentino, o outono transparente de São Paulo mais a inquietante névoa de Nova York, lampejos dourados de um campo lombardo, seu poente animado pelo sopro da planície
as cidades não existem
só os encontros são reais, as prolongadas conversas
capazes de transformar qualquer lugar em praia deserta ao anoitecer
só existe o diálogo,
nossa primitiva capacidade de nos sentar ao redor da mesa
para atravessar a noite contando histórias
de viagens, descobertas, visões
com a candura de garotos trocando figurinhas
investidos, porém, da nossa identidade de bruxos
fazendo soar seu tambor noturno
sabendo-nos observados o tempo todo, de relance
pelo rosto insone do Belo
De A verdadeira história do século 20, livro de Claudio Willer que deve ser publicado este ano:
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO 20
contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: a mente alucinada
gruta: você e os arcanos da natureza
matemática do sonho: esta nuvem
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente: lavanda
e também sombra de árvore
montanha: inteiramente nossa
intimidade sorridente: no calor da tarde
Íris: o nome da flor, o seio ao sol
– quanta coisa você fez que eu visse
o acaso nos transportava e poderíamos ir a qualquer lugar
o mundo tinha janelas abertas
e tudo era primeira vez
gnose do redemoinho, foi o que soubemos
A VERDADEIRA ESCRITA AUTOMÁTICA
quem vê a queimadura
do ouro
inteiro?
Herberto Helder
é tão difícil empreender a viagem pela escuridão e suas luzes para trazer esses fragmentos de volta: os trechos de um poema criado durante um sonho
– o caderno ia se transformando enquanto o anotava, suas páginas estavam repletas de ilustrações, umas aquarelas e desenhos meio infantis que mudavam a cada vez que os via
e também mudavam a cor das letras do texto que escrevia, a tinta, a caneta – como se fosse um camaleão? – do azul ao verde, vermelho, lilás, amarelo, laranja, todo o espectro, até acabar, até sua carga extinguir-se de vez
e não, já não havia mais escrita, não existia mais caderno, mais nada a não ser um vozerio de festa na rua, saindo de uma inexistente casa em frente,
chegavam amigos, dois rapazes vindos da festa (também não existem, nunca os vi), eles me levariam de automóvel à cidade para procurar uma nova caneta da mesma escrita multicor e um novo caderno móvel,
mas o que escrevi durante o sonho permanece: é o poema de uma frase, sempre uma só frase sibilina, multiplicada na horizontal, na vertical, em diagonal, no rodapé da página,
de todos os modos e em todas as suas cores para repetir:
vocês nunca mais saberão a previsão do tempo – e restava um eco escrito: vocês nunca mais saberão … – nunca mais … e ainda havia uns versos ao redor em português arcaico
e assim soa a voz da sombra e um mês devora o outro como bólidos estrambóticos
– depois desse mergulho para rememorar o futuro e antever o passado, retorno com a decisão visionária de escrever sobre a poesia moderna e o sagrado
e também quero dizer algo sobre ilhas, uns Açores e Baleares e ainda haverá mais poemas
e tudo será refinado, joeirado, sublimado
e tudo estará bem
e tudo será belo
como umas roupas em um varal ao sol do meio-dia
balançando docemente ao vento
enquanto vamos nos acercando ao ouro do tempo