Valquiria Vasconcelos da Piedade, Alinne Fedrigo e Ronaldo Pinheiro Duarte discutem a obra de Nelson Rodrigues
Valquiria Vasconcelos da Piedade, Alinne Fedrigo e Ronaldo Pinheiro Duarte discutem a obra de Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues nem para bem nem para mal: um olhar para sua obra
Valquiria Vasconcelos da Piedade*
Nelson Rodrigues, nascido dia 23 de agosto de 1912 na cidade de Recife, Pernambuco. Jornalista, escritor e dramaturgo. Ora amado, ora odiado. Muito já escreveram sobre sua obra e sua vida.
Vive-se uma época em que ainda o império do autor é muito poderoso, porém, para que a linguagem da própria obra possa falar, é necessário segundo Roland Barthes, em A morte do autor que se faça o distanciamento entre autor e obra. No caso deste ensaio: Nelson Rodrigues e sua obra, mais especificamente, A mulher sem pecados, a qual será analisada.
Ainda neste caminho, o filósofo alemão Martin Heidegger em seu livro a origem da obra de arte sugere que ao dispor-se à presença de uma obra de arte torna-se imprescindível a capacidade de escutar, para tanto faz-se necessário deixar a obra falar em si.
E, para isso, significa “afastar” os conceitos pré-concebidos moldurados pela herança da estética moderna: a obra como um conjunto de características; a obra da perspectiva do juízo de gosto e, obra como matéria enformada. Além, claro, da biografia do autor.
Nelson Rodrigues já foi e continua sendo por muitos sacralizado, e por outros tantos profanado, como é o caso de Oswald de Andrade que em 1952 declara que Nelson é um grande pateta, tolo, reacionário, taradão e outros tantos adjetivos.
Oswald continua insultando Nelson Rodrigues quando este, crê em Deus, e declara “que a única solução para o problema sexual é a castidade” e também “o homem que não compreende a grandeza de um convento não compreende nada”.
Radicalismos à parte, porém se escutarmos a frase de Nelson Rodrigues sem a sustentabilidade dos “ateus”, visto que na época em que Oswald de Andrade solta essa crítica, predominava (e ainda predomina) entre a classe “inteligentinha” brasileira, como diria o filósofo cínico e trágico Luiz Felipe Pondé, a perspectiva materialista histórica do filósofo Karl Marx, que tinha e ainda tem entre a bandeira sustentada, o ateísmo. Eis a famosa frase marxiana: “a religião é o ópio do povo” (antes de levá-la a sério, talvez fosse interessante pensar sobre, afinal, hoje em dia o que é ópio do povo? Poderia ser o facebook e outras tantas possibilidades. Apenas hipótese).
Recapitulando, “SE” (stanislavskiano, ou seja, “mágico”, para além do bem e do mal) escutássemos a frase de Nelson Rodrigues “a única solução para o problema sexual é a castidade” e levássemos à sua profundidade, tornar-se-ia possível levantar muitas reflexões.
Por exemplo, a época que vigora a “esteira” da condição humana hoje, como diria Zigmund Bauman em seu livro “Modernidade líquida”, é fluída, ou seja, relações familiares e amorosas, emprego, e relação com a própria cidade estão tudo fluído, sem estrutura.
Então, hoje em dia, dentro de uma relação amorosa tudo vale. Vive-se o império do “eu”, (como diria Pondé, em seu artigo – a “Espiritualidade das Pedras”). Tudo para satisfazê-lo. As relações, de maneira geral, estão efêmeras. O “eu” têm desejos e não se dá o luxo de frear. A luxúria toma conta de muitas relações, mas como o pecado não está na moda, então perde-se o senso de responsabilidade e de compromisso com o outro e consigo mesmo.
Isso porque vive-se uma época de “extrema” liberdade do individuo (que por vezes acaba sendo a sua prisão) .
Nesse sentido, na busca de aprofundar as relações humanas, e mostrar a fragilidade da sua condição é que dialoga-se com a obra “A mulher sem pecado” de Nelson Rodrigues. Pois, ao dispor-se à escutá-la, foi possível por meio dessa perspectiva, compreender como o império do “eu” destrói relações. Nas palavras de Pondé: “o império do “eu” se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo “resolvido”. Nada é mais típico dessa angústia estéril do que sempre atento às próprias dores.”
“A mulher sem pecado” foi a primeira peça de Nelson Rodrigues, escrita em 1941. Sábato Magaldi, em “Teatro completo de Nelson Rodrigues – volume I”, revela que nesta obra contém em germe todas as características do dramaturgo. O drama é composto em três atos. Trata-se de um ciúme doentio da personagem Olegário para com sua mulher Lídia. Para testar a fidelidade da mulher, o protagonista finge estar paralítico dependente de uma cadeira de rodas e da atenção da esposa. Contrata dois empregados Inézia e Umberto para descreverem o cotidiano da patroa em todos os detalhes. Sua neurose é tamanha que implanta nos pensamentos da esposa o “pecado” ao questionar sobre sua imaginação:
Olegário: […] Você vai me convencer que nunca viu um que a impressionasse? Vai? Um rapaz moreno, forte, de costas grandes, assim. Você nunca beijou um homem desses? Beijou, claro! Não tem ninguém – ninguém – tomando conta de sua imaginação.
Depois dessa fala, Lídia passa a pensar sempre nesta possibilidade. Então, resolve fugir de casa com o empregado. Olegário fica com a sua solidão e com sua mãe, uma velha senhora que passa a peça inteira muda, enrolando um paninho e sem querer comer.
Para além das características visíveis na dramaturgia, as obras de Nelson Rodrigues, em particular “A mulher sem pecado”, pode ser considerada universal, pois trata-se de questões “comuns” que expõe a fragilidade de toda relação humana.
É necessariamente nesse “comum” que Nelson Rodrigues mergulha na miserabilidade do homem. Há quem diga que sua obra não é universal porque não chegou à recepção estadunidense, como afirma a atriz e pesquisadora Cláudia Tatinge Nascimento em seu estudo sobre a recepção de Nelson nos Estados Unidos (“Nelson Rodrigues nos Estados Unidos: estranha familiaridade”).
Porém, para além da recepção, momento em que a estética moderna adere à subjetividade do espectador como medidor da obra de arte, a obra de Nelson Rodrigues fala desse “comum”, das neuroses, da angústia que se mistura entre realidade e ficção no cotidiano de qualquer mortal.
A questão talvez seja a banalidade desse “comum”. Assim como Hanna Arendt percebeu no julgamento de Eichmann em Jerusalém a banalidade do mal, ou seja, para todo mal há uma justificativa. Também pode ser o mesmo para o “comum” tratado nas obras de Nelson. O comum é tão comum, tão óbvio, que não precisa ser pensado, questionado. Será?
Talvez seja nas entre-linhas, nos detalhes desse “comum”, que a mulher sem pecado e toda a vasta obra de Nelson Rodrigues pede para ser escutada e até mesmo estranhada. Já diria Bertolt Brecht em sua peça didática a exceção e a regra:
Mas a vocês nós pedimos: no que não é de estranhar descubram o que há de estranho! No que parece normal vejam o que há de anormal! No que parece explicado vejam quanto não se explica! E o que parece comum vejam como é de espantar! Na regra, vejam o abuso e, onde o abuso apontar procurem remediar!
Sendo assim, esse “comum” rodriguiano pede para ser estranhado, pois não há nada de comum e de normal uma senhora (mãe de Olegário) ficar enrolando um paninho sem parar. No mínimo questiona-se: que angústia é essa? Afinal, a maior parte das rubricas do texto de a mulher sem pecado mostra que as personagens estão angustiadas.
No fundo, qual seria o verdadeiro motivo, desesperador, do ciúme do protagonista? Medo da morte? Medo de ficar sozinho? As relações são frágeis. Este “comum” rodriguiano nada tem de habitual, precisa ser profanado como fez o próprio Nelson Rodrigues com o que é “comum”. Nelson Rodrigues profanou o comum. Para o filósofo italiano Giorgio Agambem em seu Livro “Profanações”, uma proposta profana move-se conscientemente entre o dizível e o indizível. Na profanação há paradoxos, há metáforas, como é o caso da personagem (dona Aninha, mãe de Olegário, que passa a peça inteira, sem falar, sem comer e enrolando um paninho). No mínimo “este comum”, este gesto tão banal nos solicita o pensamento.
* Graduada em Educação Física pela Universidade Estadual de Maringá. Especialista em Artes pela Faculdade de Artes do Paraná- Curitiba. Mestranda em Teatro pela Universidade do Estado da Santa Catarina. Graduanda em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa Catarina.
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A propósito de Nelson Rodrigues
Alinne Fedrigo*
Em pleno século XXI, em que vivemos em uma sociedade extremamente capitalista, o que nos move é o pensamento. O pensar nos faz querer respostas e, consequentemente, duvidar e questionar essas respostas. Flusser define dúvida como um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou o começo de outra.
Nisso se confirma que o ser humano sempre está em busca de respostas para confortá-los em suas dúvidas e crenças. Logo, o ponto de partida da dúvida é sempre uma fé. O estado primordial do espírito é e tem de ser a crença, não a dúvida.
Descartes, e com ele todo o pensamento moderno, aceita a dúvida como imutável. A última certeza cartesiana, que o popularizou – “penso, logo, existo” – deve ser lida como: “duvido, logo, existo. E em meio toda essa crise existencial que incomoda e faz duvidar as crenças, surge Nelson Rodrigues, uma figura um tanto inusitada que faz com que suas obras fiquem marcadas no Brasil.
Os personagens de Nelson sempre foram apresentados sem estereótipos, não tem vilão ou o mocinho da vez, são seres humanos inseridos em uma sociedade com regras e ditadores dizendo como um cidadão deve se portar. Dentro desse quadro moral Nelson quebra com a moralidade apresentando personagens que lutam contra seus sentimentos, agem por impulso em suas decisões, traem, se suicidam, são assassinadas, etc. Assim como em “A esposa de todos”, Edith que se considera mulher de todos, sabe que ao se casar com Carlinhos, suas vontades estariam reprimidas e sua fidelidade submetida a ele.
Em muitas de suas peças ele deu foco a mulher brasileira e suas necessidades e frustações.
Apesar de sua fama aqui no Brasil, Nelson Rodrigues não foi aceito tão fervorosamente em outros continentes. Alguns diretores como Luiz Arthur Nunes aponta a falta de tradução para sua linguagem típica regional e com tudo fazendo com que os estrangeiros não compreendam o contexto das obras.
No texto “A esposa de todos” temos a presença de dúvida e questionamento por parte dos personagens, Edith com a dúvida de se casar ou não com Carlinhos e ele com o questionamento de o porquê que Edith está em dúvida se ela diz gostar dele. Isso causa certo estranhamento, pois Edith afirma não poder casar com Carlinhos pelo simples fato de ser mulher de todos, onde partimos do pressuposto que toda mulher deseja casar-se e ser amada por um único homem, vemos aqui uma profanação de algo sagrado. De acordo com Giorgio Agamben, a profanação seria uma assinatura que devolvemos ao uso de algo sagrado. Dentro desse contexto e naquela época sabemos que o casamento era algo sagrado e que essa configuração de personagem profana –o.
Nelson já retrata essa mulher contemporânea querendo sair das amarras da sociedade capitalista e moralista que as perseguiram até o século 21. Uma mulher que pode ser independente, que não precisa casar para constituir uma família. Que ela pode escolher e ter liberdade em suas decisões.
Sabemos que as obras de Nelson Rodrigues perduram até hoje, mas se pararmos pra pensar já o esquecemos, assim como um monumento. Robert Musil, diz que um monumento é construído para ser adorado e observado pela multidão. Entretanto, nos acostumamos com aquela visão estética que já não o percebemos mais. Assim aconteceu com Nelson. Sabemos de sua história, suas obras e que existem criticas a seu respeito, mas já não o lemos mais.
Com isso nos faz pensar que para voltarmos a olhar para Nelson precise de uma nova configuração de suas obras, pois sua forma de escrita e seus personagens polêmicos já fazem parte da sociedade, se tornou comum uma prostituta, um assassinato ou uma traição. Profanar as leituras de Nelson traria uma nova visão do público, pois o sagrado será mudado. Dar um novo uso aquela leitura que hoje já é cansativa por ser comum. Trazer o sagrado de volta para a esfera do universo contemporâneo, isso sim traria Nelson Rodrigues ao século XXI.
* Aluna do curso de artes cênicas da UFSC.
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Anti- ou Pró Nelson Rodrigues?
Ronaldo Pinheiro Duarte*
“Anti-Nelson Rodrigues” é uma peça carregada de elementos estilísticos, tipicamente rodriguianos: as gírias e expressões usuais, as rubricas emocionais, a conhecida maneira de abordar o universo familiar, as frases do autor na boca de seus personagens, tudo isso está ali, de forma diferenciada através do “Happy End” e das referências quase biográficas, por vezes citando a si próprio como um personagem, também da ficção, detalhes um tanto inusitados, para um texto de Nelson Rodrigues, mas todos os ingredientes tradicionais dos textos do, tão comentado, montado e respeitado dramaturgo, estão ali, Cláudia Druncker no texto “Anti-Nelson e o Elogio do Ridículo” na Revista Osíris confirma, “provavelmente, o elemento mais inesperado, em se tratando de Nelson Rodrigues, é o desfecho. De resto, o texto é inconfundível”.
Não se pode ignorar o fato dessa peça ser de Nelson Rodrigues, principalmente, quando o título trás o nome do próprio. O que leva, inclusive, o leitor a refletir sobre a relação título/obra. Toda a fácil ligação da obra com o seu criador logo gera polêmica. Por que ANTI-Nelson Rodrigues? Ainda que, para muitos, o autor faça jus ao comentário de Márcio Renato dos Santos, no “Caderno G”, da “Gazeta do Povo”, “Rodri¬gues desmente uma de suas máximas, ‘Toda unanimidade é burra’. Ele é unânime. A crítica o aponta como o mais importante dramaturgo brasileiro.
Mas no caso de “Anti-Nelson Rodrigues”, os críticos, sequer chegam a uma unanimidade sobre a relação do título. Cláudia Drucker afirma: “Os críticos debatem se o título corresponde ao texto ou não”. Para Drucker, nessa peça estão “várias das frases proferidas durante o período em que Nelson migrou para o colunismo. […] Várias falas da peça já tinham sido proferidas nas memórias ou, pelo menos, são compatíveis com elas”.
Há o autor ali na peça sim, mas disfarçado de “Salim” e outros, há a citação ao autor, apenas para enaltecê-lo até na ficção, por isso, um título “Pró-Nelson Rodrigues”, embora de mau gosto, faria menos incoerência com o texto, ou daria mais pistas de suas reais intenções enquanto autor do que “Anti-Nelson Rodrigues”, sem falar no fato de ser mais “ex-covarde” do que disfarçar tudo isso com pseudo-autenticidade.
Mas Nelson Rodrigues acreditava ser autêntico, tendo em vista suas falas no filme documentário em curta-metragem, “Fragmentos de Dois Escritores”, onde diz claramente, “Eu procuro dizer o que sinto e o que penso. Isso é muito duro. O sujeito ter um mínimo de autenticidade… Porque nós somos os falsificadores. O homem falsifica valores, falsifica gestos, falsifica sentimentos, o homem se falsifica para os outros, o homem se falsifica para si próprio, de forma que o sujeito que consegue um mínimo de autenticidade. Esse é o herói. E eu me sinto, de vez em quando, um pouco herói, porque acho que conquistei esse mínimo de autenticidade”… Mas como diria Vilém Flusser, em “A dúvida”, “As tentativas dos espíritos corroídos pela dúvida de reconquistar a autenticidade, a fé original, não passam de nostalgias frustradas… As “certezas” originais postas em dúvida nunca mais serão certezas autênticas”.
Por inúmeros motivos a mencionada peça é considerada “menor” pelos críticos de Nelson, segundo Claudia Drucker, inclusive, “Sabato Magaldi e Ruy Castro, historiadores decisivos da obra Rodriguiana, dedicam pouquíssimas páginas a essa peça”. Seria o cansaço? O autor justifica no filme “Fragmentos de Dois Escritores”, “Toda a minha obra teatral foi escrita no fim do dia e quando eu já estava absolutamente estourado”.
Em 2012, dez anos, em Florianópolis André Carreira conseguiu fazer um paralelo entre autor e obra muitíssimo esclarecedor sobre o universo psicológico de Nelson Rodrigues, não seguindo o pudor do texto, resolveu declarar o título Anti-Nelson Rodrigues seu ponto de partida para saborear a explícita relação do autor com a peça, seus comentários foram projetados durante a obra, num jogo multimídia, entre projeções de vídeo, teatro, cinema e música ao vivo, brincando com a falta de tempero do texto, fazendo de o “Anti-Nelson Rodrigues” um “Totalmente Pró-Nelson Rodrigues” para celebrar o centenário de nascimento do autor.
Isso é o que acontece com essa obra. Depois da morte e consagração do autor, que se transformou, numa espécie de monumento brasileiro, como diz Robert Musil no livro “O Melro e outros escritos de obra póstuma publicada em vida” no texto “Monumentos”, “tudo o que é duradouro perde o poder de impressionar. Tudo o que constitui as parede de nossa vida ou, por assim dizer, os cenários de nossa consciência perde a capacidade de representar algum papel dentro dessa consciência”. Essa peça vira mais uma homenagem para lembrar o autor enquanto monumento e os artistas contemporâneos a têm realizado muito bem.
A peça acaba tornando-se uma porta para conhecer melhor o autor depois de sua consagração, mas prova, também, que ele não é unanimidade, não é 100% aproveitamento, que sua convicção pela autenticidade, estava longe de ser real. Era, também um manipulador da “tesoura e cola” citadas por Antoine Compagnon em seu livro “O Trabalho da Citação”, mas que preferiu, talvez por cansaço, talvez por ingenuidade recortar e colar de si próprio, principalmente na peça Anti-Nelson Rodrigues, e não abriu mão da idéia de autenticidade, talvez aí, indícios do por que esse autor não tem boa aceitação no exterior. Faltou assumir tanto seu “recorta e cola” de si mesmo, quanto dos outros, libertando sua escrita do autor, permitindo que ela alçasse voos mais distantes.
* Aluno do curso de artes cênicas da UFSC