Fratura Exposta – Shasça
Fratura Exposta
Shasça*
1. ESCURIDÃO. SILÊNCIO ROMPIDO POR SOM EM OFF: PASSOS DE ALGUÉM CAMINHANDO PAUSADA E FIRMEMENTE. AOS POUCOS, OS PASSOS VÃO SE MULTIPLICANDO. CORTE SECO NO SOM DOS PASSOS. ACORDES DA 5ª DE BEETHOVEN (TCHAN TCHAN TCHAN TCHANNN!!!). SILÊNCIO. ATOR DECLAMA CARTÃO DE VISITA.
Ator (voz calma, firme, quase debochada):
dentro de mim vos garanto
há um jekyll e um hyde
não sei qual vos apresento
qual de maior intensidade
LUZ FORTE SOBRE A PLATÉIA. PALCO VAZIO
Segundo Ato
2. ESCURIDÃO. BOLERO DE RAVEL (TRECHOS).
Ator brada em off:
LEVANTEM AS BARRAS DAS SAIAS!
CONTINUA O BOLERO. FOCO DE LUZ ACOMPANHA ATOR QUE ENTRA. ATOR DECLAMA SARCÁSTICA E RITMADAMENTE O RAP
Ator:
não te assustes minha nega
hoje não tou afim das tuas belas coxas
o buraco é mais
na verdade tem buraco pra cá…
e o que vos trago
meus queridos
é apenas um singelo convite
façam vossa escolha e
pau na jaca!
aqui
não há a pré tensão
de vos oferecer outras paisagens
é apenas outra viagem
pela nossa mesma casa
apenas outro olhar
injetado de sangue e de talhes
sobre algo
que apenas sobrevoado temos
nestes tempos que voam
às janelas em pal-m
pedras lançar
mãos aos cacos
é sob as unhas que se encontram
os sinais de quem se foi na calada
não no olho arregalado
nas garras
assim o ensinam os sherloques
just an american movie
deserto estrada posto bar
uma garçonete gorda e sorridente
alguém pede carona
a vida de tocaia
toda superfície
é nada além
um convite
FOCO APAGA-SE.
3. VOLTA O SOM DOS PASSOS. PROJEÇÃO DO VIDEO URBE I
SONS URBANOS. ATOR DECLAMA FRATURA EXPOSTA. CENAS URBANAS PIPOCAM NA TELA. FOCO NO ATOR
Ator:
tênis havaianas cromo alemão solas nuas
e apesar de tudo
destinos nus
num único sentido
contra-mão
calçadas feridas explícitas
passadas calmas coxas aflitas
fingir desviar a atenção para o sexo dos cães na esquina
(sequiosos
babam pudicos olhos)
apreender o viver precisum est
as várias terras da Terra
nos empurram contra o muro da miséria
a fome não vem só do agreste
sob todas as pontes queimam-se secas panelas
enquanto a quitanda urbana oferece prateleiras de cassetetes
cães camburões (SOM DE SIRENE) invasões
rajadas sobre a desnutrição baderneira
que cisma que merece melhorias nos currais
além do alambrado cada vez mais forte
da pós-moderna arquitetura ante-o-mendigo
e apitos e sirenes noturnas diurnas diárias
entrementes
eternas diarréias continuam um serviço
que não se completa
à luz dos olhos da cega justiça
de há muito
embebidos de sangue e tramóias
que escorrem das coberturas palanques
smokings & batinas
transbordantes da sua balança
4. TRECHO DE “O GUARANI” DE CARLOS GOMES MIXADO COM SONS DE FLORESTA E DE GUERRA (TIROS?) FOCO NA ATRIZ QUE ENTRA GRITANDO NÃO CARA-PÁLIDA!
Atriz:
sei que só
não salvarei a tribo
mas não serei o batedor
que dirá à cavalaria
qual é a melhor hora para o ataque
não me cativam
teus espelhos e contas de vidro
TIRO. ESCURIDÃO. ATRIZ SAI. VOLTAM SONS E CENAS URBANAS. FOCO NO ATOR
Ator:
a fratura
exposta na vitrine planetária
signo da presente velha estética
arreganha-se
ganha o espaço
neste mundo que é só deste
ao contrá
rio de todas crenças
a fratura exposta arremete-se
contra a atmosférica derme
a
po
dre
c
sida
sede de conquista
o fedor de urina do bêbado caído
insiste e invade o nariz dos passantes
é sua aura
ainda se pode desviar torcer o nariz
não há como tapá-lo
e o que é com (ou sem) esforço ignorado
rompe a tênue película do disfarce
refluindo como o esgoto da privada
já nos dizia dos Anjos
“a consciência é este morcego”
BALADA SERTANEJA. PROJEÇÃO DO VÍDEO CÃO SEM LUZ
há bares com sisudas gravatas assépticas
bares coloridos com o brilho do momento
bares
pai (distribuindo a vida entre
o balcão, o chão e as lambidas
no saco do patrão)
mãe (boca que já nem sabe
quantos corpos percorre
até o fastio
no flagelar de uma noite)
filha (espremido por dedos amarelados
de cigarro
o pequenino seio
como se já fosse
a bucha que breve será)
5. RAP/BATUCADA QUASE-COTIDIANO (DO CHICO). FOCO MUDA PARA ATRIZ QUE DECLAMA COTIDIANO III.
Atriz:
o olho sem brilho
a cara suja
a barriga vazia
a roupa rasgada
esperando a mãe
voltar da ronda
trazendo o rango
quem chega é o pai
outra vez bêbado
atira-a ao chão
do quarto/sala/cozinha
e estupra-a
outra vez
chocante!
diria o surfista
6. PROJEÇÃO DO VÍDEO ÁLBUM DE FAMÍLIA. VALSA DE STRAUSS NUM CRESCENDO. FOCO NO PAR ATOR/ATRIZ QUE DANÇA SENSUALMENTE. VOZ GRAVE EM OFF DECLAMA BAILEEM TOM DE SERMÃO.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabom pai de família
é aquele que encabeça abaixo-assinado
pra expulsar as putas
que ultrajam sua pacata cidade
e quando sua filhinha faz quinze aninhos
enfeita-a de branco e jóias
e a leva pela mão
ao leilão anual do clube
ESCURIDÃO. SONS URBANOS. FOCO NO ATOR.
Ator:
o murro na boca o baque o calafrio
o nosso mal estar
nossa pressa em nos limparmos dos respingos
do sangue
que insiste que testemunhemos que esta vida
existe
e de novo
reflui
como aquele esgoto
que como vitrines de shoppings
papos bovinos inspirados em teses
7. PROJEÇÃO DA IMAGEM DIGERINDO A REVOLUÇÃO. FOCO NA ATRIZ QUE DECLAMA OLHANDO PARA A TELA.
Atriz:
O intelectual não come
Estuda o cardápio e arrota
ESCURIDÃO. FOCO NO ATOR. TRECHOS DA 5ª DE BEETHOVEN.
Ator (ou ator/atriz em jogral):
chopp & gorgonzola
ninfetas preibóis putas reputados
cidadãos surpreendidos pelo sol
na volta da ronda pelo prazer
de ter prazer
como tudo que se mistura à moral sucupirana
daqueles olhares dos que acordam mais cedo
para em meio a pragas e maledicências
lavar as calçadas e os becos coloridos de
camisinhas e vômitos
sombrios porque frustrados olhares
que se abrem e fecham com as galinhas
por não terem com quem pecar
(como será trocar o perfume
da dama-da-noite
pela náusea do pinho sol
às seis?)
chuto de leve o chapéu do cego
ele agradece e me abençoa em nome de deus
pelas moedas que não lhe dei
é meu modo de caminhar
e hoje é o meu tempo
8. ESCURIDÃO. VOZ GRAVE EM OFF DECLAMA TROVA DE PÓLVORAEM TOM DE AMEAÇA.
tivesse poder e pontaria
pra num átimo de segundo
dar um fim neste mundo
por vezes não exitaria
ESCURIDÃO. SOM DE EXPLOSÃO, DESMORONAMENTO, VIDRO ESTILHAÇANDO. TRECHOS DO BOLERO DE RAVEL. FOCO NO ATOR.
Ator:
feridas cachorro/menino
ciscando nas latas de lixo
sei não há sangue neste meu lado
lodo latino
quem há de derrubar portas?
mortos banguelas sorriem para a tela
estrabicamente
um olho na marca da calcinha
outro nos rostos/fuzis
não cavo trincheiras
não espero o derradeiro tiro
salto espreito passo de fino
apesar de ti
amo-te meu irmão
porém minha vida é meu caminhar
meu tempo podre atoleiro
farinha pouca meu pirão primeiro
farinha muita meu pirão primeiro
não me interessam palpos de aranha
quem ama não mente
mata
mas são tantos
nem sei em quem atirar
(talvez em ti primeiro)
sei que toda a morte é vã
e tenho que caminhar
meu tempo é este
voa
não nasci para ser ponta de lança
tampouco fiel escudeiro
sigo
vendo meu peixe
sem tirar-lhe as escamas
sem palavras prá depois
apenas outra bactéria
exposta nesta fratura
DECLAMAÇÃO TERMINA COM ACORDES FINAIS DO BOLERO.
9. ESCURIDÃO. FOCO SOBRE ATOR E ATRIZ QUE PASSEIAM DE BRAÇOS DADOS.
Ator (outro?) (em off):
TURNOS
Findo o noturno repasto,
faz-se mister uma volta.
Gentil, ele oferece o braço
a ela que, discreta, arrota.
Devido ao ausente repasto,
mais urgente é a volta.
FOCO NOUTRO CASAL (BONECOS?) ESCONDIDO NA PENUMBRA
Ele, punhal junto ao braço;
ela, de olho na Rota.
PROJEÇÃO DO VÍDEO NOITE
Bêbados e doidivanas
navegam em caravanas.
E, sob a luz do neon,
a fofa barriga burguesa
e o vestido azul-turquesa
versus a fome de plantão.
CASAL DE BONECOS É LANÇADO SOBRE ATOR/ATRIZ. GRITO. CAEM OS QUATRO. JUNTO COM GRITO, ACORDES DE TRECHO DA 9ª DE BEETHOVEN EM FADE OUT.
ADENDOS
VÍDEOS:
1. URBE I – montado a partir de 3 cenas sobrepostas:
– cena 1 (filmada rente à calçada, imagem acelerada): pés calçados e descalços caminham em várias direções
– cena 2 (câmera sobe dos pés até à cintura dos passantes, imagem em velocidade normal sobreposta em fade in sobre imagem dos pés): pernas caminham em várias direções
– cena 3 (câmera sobe dos pés até tomar o coro inteiro dos passantes, imagem em slow motion sobreposta em fade in sobre imagem dos pés) pessoas anônimas (desfocadas) caminham em várias direções cruzando umas com as outras.
2.CÃO SEM LUZ – um homem puxando algumas cordas, devagar como se marchasse. A corda está amarrada a uma mesa em torno da qual um homem grisalho, uma mulher de meia idade e uma adolescente estão sentados. Mesa com copos e garrafas. O homem grisalho, sentado entre as duas, beija a mulher enquanto aperta o seio da adolescente.
3.ÁLBUM DE FAMÍLIA – filmagem de making off de foto com família em pose tradicional.
4. NOITE – pessoas caminhando à noite em calçada; sons de risadas, copos e de carros que passam.
FOTOS:
DIGERINDO A REVOLUÇÃO – pessoa em traje social levemente despojado; sentada à mesa sorve um café enquanto lê um livro em cuja capa lê-se Bakunin; num pratinho à sua frente há um pão-de-queijo já mordido.
*Aluno do Curso de Cinema da UFSC.