Entrevista com Barbara Biscaro – Telemakos Endler

ENTREVISTA COM BARBARA BISCARO

Telemakos Endler*

Nessa entrevsita, Barbara Biscaro, doutoranda na UDESC, atriz, cantora, dramaturga e diretora do espetáculo “A Menina Boba”, fala de seu trabalho e de seu processo de produção.

Barbara Biscaro

 

TE. Como se iniciou e foi o processo de montagem do espetáculo “A Menina Boba”?

BB. Eu sempre tive muita admiração pelo trabalho de Cláudio Santoro, que é o
compositor das músicas. E sempre buscava partituras dele quando eu visitava
novas bibliotecas. Um dia eu fui à biblioteca da UNICAMP e achei as
músicas da “Menina Boba”. Achei o nome muito curioso, li a partitura, mas na época achei muito difícil para cantar. Guardei na gaveta e pensei que um dia faria alguma coisa com aquilo, porque aquilo me atraia.
Quando teve o prêmio Elisabete Anderle, aqui do Estado de Santa Catarina, mandei um projeto de pesquisa em voz, me propondo a estudar aquele ciclo e tirar algum material daquilo.
Meu projeto foi aprovado e foi quando eu realmente peguei as canções
e comecei a entender o que havia por trás delas. Estava escrito nas partituras que eram poemas de Oneyda Alvarenga. Foi então que descobri a biografia dela, a qual achei fantástica. Fiz uma primeira montagem deste espetáculo em 2010, com o pianista Alberto Heller, um pianista bem conhecido aqui de Florianópolis. Nós fizemos uma montagem juntos, que tinha algumas coisas que tem hoje na remontagem, mas era outra coisa totalmente diferente e utiliza o piano. Fizemos algumas apresentações com o espetáculo, mas depois paramos porque era muito difícil circular com o piano, pois demandava muita produção. Ano passado inteiro e este ano fiquei trabalhando para fazer uma adaptação sozinha, cantando tudo à capela, o que acabou dando super certo.
Passei o ano inteiro ensaiando, fazendo as gravações e experimentos usados utilizando o estúdio da UDESC. Depois acabou que consegui montar esta nova versão, que é bem diferente da primeira versão, mas tinha muito da pesquisa, dos movimentos e ideais que hoje formam o espetáculo. Mas são dois espetáculos completamente diferentes.

TE. De onde veio a sua admiração por Cláudio Santoro?

BB. Comecei a fazer aula de canto aos quinze anos. Chegou um momento que tive que decidir que repertório musical eu gostava de cantar. Sempre gostei muita da música erudita brasileira do século XX. E o Cláudio Santoro é um compositor emblemático desta geração. Fiz várias matérias da música na minha graduação e conheci-o através das minhas professoras de canto e amigos da música. Fui então conhecendo o repertório. Na faculdade ainda montei o primeiro espetáculo no qual, também, me auto dirigia, e tinha várias músicas dele. Logo, fui conhecendo a obra dele e buscando material sobre ele em outros lugares porque aqui é muito difícil achar material.
Inclusive, o teatro nacional de Brasília chama-se Cláudio Santoro. Ele é amazonense, mas ele viveu quase sua vida inteira em Brasília.

TE. Nas primeiras versões havia um pianista em cena. Como foi trabalhar com um músico e quais foram as dificuldades da produção, além de ter um piano em cena?

BB. Nós, do teatro, sempre queremos nos envolver com a pessoa e queremos que ela crie o seu material. Quando fui trabalhar com o musico, percebi que a lógica é totalmente diferente. O músico é uma pessoa muito prática e fazendo aquilo que é para ele fazer já basta. Então eu criei um espetáculo baseado na dramaturgia minha e de outra pessoa, o que foi fantástico.
Fazer um espetáculo às vezes não é tão difícil quanto produzi-lo. O Alberto é um pianista muito conhecido e requisitado nacionalmente e ficava muito difícil de marcar apresentação com sua agenda. Além do mais não tinha dinheiro nenhum e eu ficava sem graça com esta situação, mesmo ele sendo um grande parceiro.
Cogitamos a ideia de fazer uma versão com um piano digital. Mas perderia
toda a improvisação que ele fazia com o instrumento do piano, pois ele tocava dentro do piano, nas próprias cordas do piano. Aprendei muito tocando com ele. Foi uma versão, mas agora o espetáculo já é outra coisa.

TE. De onde vem o interesse do estudo pelo corpo-voz?

BB. Eu tenho uma formação bem plural. Eu sempre fiz teatro e entrei na faculdade de cênicas porque eu tinha esse grande sonho de fazer teatro. Paralelamente ao teatro, como já falei anteriormente, comecei a fazer aula de canto aos 15 anos, porque alguém me falou que para eu ser atriz precisava saber cantar. E eu não sei o porquê levei isto a sério e fui fazer aula de canto. E eu me apaixonei pelo universo do canto, tinha prazer pelo canto e em fazer os exercícios, achava muito bom. Comecei a trabalhar profissionalmente com musica em paralelo ao teatro. Desde o primeiro semestre da faculdade eu participei do projeto de pesquisa da graduação de técnicas corporais para
o ator durante 5 anos, onde fazíamos um intenso treinamento corporal físico entrando na área da dança. Então, eu tinha estes três mundos: eu fazia faculdade de teatro, cantava e dançava todos os dias. Comecei a ficar muito confusa. Eram três lugares completamente separados, mas eu estava envolvida nesses três mundos. E durante a faculdade já comecei a ficar incomodada com este separação e me questionar o por que destes
mundos não se juntarem. Então, comecei a desenvolver uma pesquisa pessoal tentando buscar alternativas para este corpo que dança, canta e constrói uma dramaturgia sem estar necessariamente ligada à algo especifico, a exemplo do teatro musical onde tem os papéis e uma estrutura fechada. E eu estava interessada em coisas mais alternativas, mais experimentais. Foi a partir desta formação plural que eu tive, que fui tentando, ao meu modo, juntar o que eu achava que poderia ser juntado, ou separar. Enfim, fiz e ainda faço muitas pesquisas tentando buscar o que faz sentido. Depois que comecei a
mexer com isso, conheci outros artistas que faziam isso e passei a ter mais referências e mestres. E o espetáculo é reflexo do ponto na qual minha pesquisa se encontra.

TE. Como houve a transposição da teoria para pratica? Quais foram os outros
aprendizados importantes que se teve nesse processo além dos estudos de corpo-voz?

BB. Na verdade minha pesquisa sempre foi bem prática. A teoria vem da reflexão da prática. Eu acho muito difícil ler uma teoria de alguém que faz reflexões sobre o teatro e transpor para a prática. Para mim é mais confortável fazer e depois refletir sobre o que eu fiz. Inclusive hoje uma das críticas que se faz à academia é que a teoria acaba embotando a prática. Eu me identifico com uma corrente que acha que a prática teatral vem primeiro e depois vem a reflexão sobre o que está acontecendo. São só visões
diferentes e não há certo ou errado.
O fato de eu ensaiar sozinha é sempre um aprendizado. É necessário muita
disciplina, motivação e força de vontade. É sempre um aprendizado entrar numa sala sozinho e propor a criar. Na remontagem ensaiava quatro vezes por semanas, fora as aulas de canto e dança que fazia.
E na versão do espetáculo, agora, a construção da dramaturgia também foi outro aprendizado e muito enriquecedora. Hoje eu sou muito satisfeita com a dramaturgia do espetáculo. Ela da conta do que eu imaginava que ela poderia ser. Eu tinha várias cenas e quando ensaiava mudava a ordem das cenas até achar uma ordem que eu achasse lógica como atriz. A única coisa que não mudou foi o final. E este recurso de montar o quebra-cabeça com as várias peças que têm, pode ser um recurso que eu utilize nos próximos espetáculos.

TE. Como foi o processo da dramaturgia? Esta transposição das ideias do livro para a peça?

BB. Me baseei em um livro de cartas escritas entre Mário de Andrade e Oneyda
Alvarenga, publicado em 1983, onde ela escreve a introdução do livro a próprio punho.
Retirei do livro as partes que achava mais interessante e fui recortando nos ensaios, até chegar nos textos que eu escolhi para o espetáculo. Tem pedaços escritos por Oneyda, alguns trechos do Mário e grande parte que fui construindo oralmente e por escrito.
Depois eu li uma tese sobre a escrita epistolar do Mário de Andrade que
menciona o trecho que a Oneyda escreveu sobre a morte dele, no dia em que ele morreu.
Tem muito pouco material escrito sobre Oneyda Alvarenga no Brasil e retirei este trecho da tese.

TE. Como que é se auto dirigir?

BB. No início eu até gravava os ensaios, porque eu nunca me vejo de fora. Mas teve uma hora que eu desisti porque é muito ruim ser diretora de si mesma. É uma outraconexão que você precisa ter, e vai apenas criando. Não é melhor, nem pior. É um outro jeito de pensar. Talvez se o espetáculo tivesse um diretor seria muito diferente.

TE. Sobre a composição do figurinho de “A Menina Boba”: a saia utilizada por você no espetáculo possui vários bolsos. Ela foi feita para o espetáculo?

BB. Ela foi feita especialmente para o espetáculo. Tenho uma amiga que mora em São Paulo que também dirige seus próprios espetáculos e quando estamos em processo de criação sempre conversamos para trocar ideias. Foi ela que descreveu uma saia que a sogra dela tinha: uma saia marrom com uns botões. Quando voltei pra casa tive a ideia dos bolsos. Quando pedi pra costureira ela ficou apavorada com o número de bolsos.
Depois de pronta fui ensaiar e ver o que a saia me daria de possibilidades. Depois que fiz tudo isso fiz várias associações e gosto da ideia que tudo saia do corpo da figura que esta em cena, e acredito que isso faz parte da poética do espetáculo.

TE. Porque a escolha de um monólogo?

BB. Primeiramente, porque eu queria muito fazer o espetáculo e não depender de ninguém que quisesse ensaiar e tivesse tempo para isso. Segundo, que o material já estava todo em mim e não fazia muito sentido voltar na pesquisa e colocar outra pessoa na cena. Acredito também que durante a vida também encontramos parceiros artísticos, pessoas com as quais nos identificamos e temos prazer de trabalhar junto. E enquanto não encontra estas pessoas, que não é simples, vou fazendo as coisas sozinhas.
Basicamente, não é por motivo estético, é por motivo prático. A produção de
monólogos é um fenômeno do teatro hoje, porque é muito mais fácil de produzir e circular.

TE. Além da mecanização do som, a iluminação e o cenário são portáteis e você mesmo que manipula os elementos. Você acredita que os atores contemporâneos buscam apresentações independentes?

BB. Não sei se é isso que os atores em geral procuram. Mas isso é sempre uma
escolha e no meu caso eu busquei isso. Eu queria poder fazer tudo. Por exemplo, tem pessoas que não abrem mão da iluminação cênica porque acham a iluminação super importante. Eu também acho que é, mas não preciso daquela luz convencional do refletor. Eu me contento com a iluminação do espetáculo como é hoje.
Eu decidi manipular tudo sozinha por um problema puramente prático, o de não querer depender de ninguém. E depois foi muito divertido precisar manipular tudo, porque as manipulações tanto da iluminação quanto do som viraram ações cênicas.
Descobri que a técnica não precisa ser necessariamente mecânica. Ela pode fazer parte da cena e resolver um problema técnico. Ano retrasado dirigi o monólogo “Luiza”, de uma companhia de Itajaí onde a atriz também manipulava o som e a iluminação não mudava. Então, de uma certa maneira eu já venho apostando neste ator que controla a técnica.
Não que isso seja uma regra. Vai muito do que o ator tem vontade de fazer, pois alguns já me falaram que não se sentiriam seguros para fazer. Então foi uma escolha, e nessa escolha se determinou a estética.
Queria ter muito essa independência para poder viajar e apresentar em qualquer lugar. Por exemplo, viajei alguns meses atrás para a Europa e eu podia fazer tudo sozinha e não dependia de ninguém. E isso é muito legal.

TE. Inclusive, com essa sua viagem,  “A Menina boba” ganhou uma versão em italiano. Apresenta alguma alteração além do idioma? Teve alguma coisa interessante que surgiu nessa alteração de idioma? Já foi apresentado aqui no Brasil esta versão? Tem previsão de (nova) encenação aqui?

BB. A peça foi traduzida por uma amiga minha e além do idioma, o resto é
exatamente tudo igual. Somente é outra pessoa que faz as vozes em off do Mário de Andrade em italiano. E é muito divertido fazer em outra língua, porque existe outra sonoridade. Além disso é ótimo estar em outro país apresentando algo seu e as pessoas estarem compreendendo tudo. Isso é muito gratificante. Inclusive, já estou pensando em fazer outras versões em outras línguas. Ainda não apresentei esta versão em italiano no
Brasil, mas tenho planos de entrar em cartaz com esta versão no próximo ano,
principalmente para escolas de italiano.
Na sexta-feira passada (14/12/12), gravei o espetáculo nas duas versões (italiano e português), mas principalmente para fins de produção, como a facilidade para inscrição em festivais. Também ainda não tinha o registro completo do espetáculo, e talvez disponibilizarei no Youtube e no blog.

TE. Já sabe em qual língua será a próxima versão?

BB. O inglês talvez seja uma nova versão. Em Gales, eu já fiz uma
versão um pouco improvisada: uma mistura em inglês, português e italiano. Não fiz somente em italiano porque as pessoas não compreenderiam nada e fazia dois meses que não apresentava em português, e estava me sentindo insegura em retirar totalmente o idioma italiano.

TE. Você acredita que o espetáculo necessite ser entendido, ou o que vale é a poética da cena?
BB. Em Gales, tive retorno das pessoas falando que não precisariam entender o que eu estava falando para entender o que era o espetáculo. Mas acredito que o mínimo de informação que você passa para a pessoa ajuda na riqueza do espetáculo. E as pessoas ficaram felizes que eu fiz a parte em inglês porque elas puderam entender o fio condutor da história. Não que esse entendimento se fizesse necessário.

T.E. O espetáculo mostra a trajetória de Oneyda Alvarenga. A poética da cena é bem mais forte que o drama (se é que há). Você considera o seu espetáculo “pós-dramático” de acordo com a classificação de Lehmann?

BB. Prefiro não rotular nada. E acho que o pós-dramático é algo que são os outros que te consideram. Mas meu trabalho de uma maneira geral é desvencilhado de um texto dramático e é um teatro de ação. O texto para mim é um ponto de partida e não um ponto de chegada. O que não é certo e também não é errado, é uma escolha. Mais com certeza o meu trabalho faz parte desta vertente que deixa o texto dramático para apostar
em outras formas de se vivenciar a cena.
Talvez seja uma tendência natural hoje tecermos a própria dramaturgia. É um
legado interessante, onde não há regras e é bem libertador. Apesar de muitas pessoas reclamarem que não tem uma história ou que não faz sentido. A busca do sentido não está no texto, está em outra coisa, e tem pessoas que têm dificuldade de entender isso.

TE. Quais foram as melhorias que a peça sofreu durante as várias versões?

BB.A peça teve duas versões completas, mas não há como falar em melhoria porque cada versão foi para um caminho diferente. A primeira versão era musicalmente mais consistente, pois era baseada na improvisação do pianista e o Alberto era incrível. Já a segunda versão é mais teatral, onde eu apostei mais nas falas e nas ações para poder construir a dramaturgia porque eu não tinha o piano para me ajudar. Além disso, para suprir a falta de uma pessoa em cena, usei o recurso das gravações das vozes em off, tanto da minha própria voz como da voz masculina. E confesso que quando estava para
estrear esta nova versão eu fiquei com medo, pois tudo dependia de mim.

TE. Ainda há o que melhorar? O que você esta buscando aprimorar no espetáculo atualmente?
BB. Ainda tem o que melhorar. Existe uma coisa bem especifica que faz parte do modo como eu trabalho hoje, onde todas as partes físicas são improvisadas. Existe apenas uma parte do espetáculo que tem partitura. O resto é improvisado. Eu sei o que preciso fazer, mas o modo como que chego naquilo muda cada vez que eu faço o espetáculo. Eu deixo este espaço do improviso para que algo de novo aconteça em cena, pois esta improvisação me atrai. Claro que com o tempo você acaba tendo um repertório
e faz certas coisas, mas também podem surgir coisas diferentes. Nunca se sabe o que pode acontecer. Então, desse modo sempre estou criando coisas novas e quando estou em cena acontecem coisas que não foram pensadas. Por exemplo, na parte da leitura da carta eu nunca leio igual, eu sempre improviso junto com a minha própria voz na gravação. E como eu acabo continuamente fazendo treinamento e cantando, isto acaba interferindo e aprimorando o espetáculo. Além disso, quanto mais eu apresento, mais eu amadureço o material e entendo o que estou fazendo. Eu aprendo muito fazendo o
espetáculo. Sonho que o espetáculo seja um lugar de experimentação e não seja algo fechado que de enjoo de fazer a mesma coisa sempre. Não é simples e nem sempre possível, mas sonho com este caminho.

*Ator e aluno do curso de Artes Cênicas da UFSC.