Entrevista com Christine Röhrig – Maria Aparecida Barbosa
Florianópolis, 06 de junho de 2011
ENTREVISTA COM CHRISTINE RӦHRIG
Por Maria Aparecida Barbosa*
Christine Röhrig trabalhou como editora na Cosac & Naify, na Unesp e na Paz e Terra. Coordenou a publicação no Brasil e traduziu diversas peças da Coleção Teatro Completo de Bertolt Brecht em 12 volumes. Faz parte do Núcleo Suspeito, grupo de artistas que atuam em diversas áreas, principalmente teatro e fundou o selo editorial “Publique-se”, com Claudia Warrak e Raul Loureiro. Coordenou a publicação e traduziu peças de autores do teatro contemporâneo alemão, como Bertolt Brecht, Heiner Müller, René Pollesch, Armin Petras, Dea Loher e Marius von Meyenburg . Autora das peças Marlene e o sapo e Via de Regra. Autora da livre adaptação e dramaturgia, do conto literário Um artista da Fome de Franz Kafka (Prêmio de melhor espetáculo no Arena Festival – Alemanha). Fez a dramaturgia e a tradução das canções de Wedekind para a encenação “Espírito da Terra”, direção Marcio Aurélio. Autora do livro infanto-juvenil “O sorriso de Ana“, publicado pela Cia. das Letrinhas (2008). Traduziu ‘Woyzeck” e “A morte de Danton“, de Büchner dirigidas por Cibele Forjaz; ”Fausto Zero“, de Goethe, encenada por Márcio Meirelles em 2001, Marcio Aurélio em 2003 e em 2004 por Gabriel Villela;“Parasitas“, de Meyenburg, até recentemente em cartaz em Porto Alegre, e “Esperando Godot“, de Samuel Beckett com direção de Marcelo Lazzarato. È coordenadora de estudos e do projeto Perdigoto da Paideia. Autora da peça para crianças “Mozart apaga a luz”.
Maria Aparecida Barbosa: Christine, fale um pouco de sua aproximação com o teatro. Como surgiu o interesse pelos dramaturgos de língua alemã? De quebra conte-nos que espécie de misterioso e suspeito núcleo é esse, do qual você participa.
Minha aproximação com o teatro se deu por acaso. Marcos Renaux, meu amigo e parceiro de muitas traduções, me apresentou um texto de Heiner Müller e começamos a traduzir desenfreadamente. Em 1988, Heiner Müller veio ao Brasil e passamos um período ao lado dele, acompanhando suas visitas e entrevistas. Depois fui cuidar da coleção de Teatro Completo de Brecht na Editora Paz e Terra. A coleção já estava em seu quarto volume e era coordenada por Fernando Peixoto e Wolfgang Bader. Esse trabalho foi para mim um curso intensivo de tradução dramatúrgica e da obra de Brecht, porque pude conferir o trabalho e aprender com os outros tradutores da coleção e trabalhar com diretores como Marcio Aurélio, Marcio Meirelles, Gabriel Villela para discutir minhas traduções que fui lapidando, aprimorando.
O núcleo suspeito é formado por um grupo de amigos artistas. Nos reunimos para leituras, organizamos performances, realizamos projetos principalmente na área teatral. O ator e diretor Alvise Camozzi é desse núcleo e realizei diversos trabalhos com ele.
MAB: Como chegou a Heiner Müller, um autor nada convencional?
Como eu expliquei, foi uma feliz coincidência. Depois que ele veio ao Brasil, passei a ter contato com ele. Ele mandava seus escritos dos quais me tornei grande apreciadora. Depois que ele morreu, participei de um encontro de tradutores de Heiner Müller em Berlin e conheci a sua mulher Brigitte e sua filha Anna e muitos que trabalharam com ele. Também tive a sorte de conhecer e de trabalhar com Peter Palitzsch quando ele veio ao Brasil a convite de Marcio Meirelles para encenação de “O declínio do egoísta Johann Fatzer”, texto de Brecht organizado por Heiner Müller, que traduzi e publiquei pela Cosak Naify. Palitzsch foi assistente de Brecht, dirigiu e atuou no Berliner Ensemble. Ele também criou o símbolo da casa. Diversas traduções que fiz foram encenadas no Brasil e assim, trabalhando com os encenadores, pude entender cada vez melhor e aperfeiçoar meu trabalho de tradução dramatúrgica.
MAB: Observando a extensa bibliografia de suas traduções de teatro alemão, fica tácita sua especialidade em teatro contemporâneo. Trata-se de uma preferência ou você tem outra explicação para essa convergência?
Novamente foi o acaso. Fui recebendo encomendas de trabalhos, em geral por indicação do Instituto Goethe de São Paulo que sempre foi um grande parceiro e apoiador ou os próprios encenadores me procuravam para traduzir determinado texto. Já a maior parte dos textos de Heiner Müller eu traduzi espontaneamente sem receber encomenda.
MAB: Eu gostaria que você falasse sobre sua trajetória como editora de textos dramatúrgicos. E devido à experiência, certamente você pode traçar um panorama do mercado atual, tanto do que concerne às traduções de textos dramatúrgicos, como também às edições de textos de autores brasileiros.
Curiosamente ingressei no mundo editorial editando, traduzindo e cuidando da Coleção do Teatro Completo de Brecht em 12 volumes. Acabei me tornando editora da Paz e Terra por nove anos, sob o comando do grande editor, pensador e político Fernando Gasparian com quem aprendi muito. Como comecei minha carreira traduzindo textos teatrais acabei pegando gosto e raramente me aventurei a traduzir outros gêneros, exceto a literatura infanto-juvenil. Assim, quando me tornei editora, meu interesse em publicar textos de teatro sempre esteve presente. Percebi também que quase não havia publicações nessa área e que havia uma demanda tanto nas universidades, como da parte de quem trabalhava com teatro. Depois de Brecht, publiquei peças de Heiner Müller, Sam Sheppard e por aí foi. De fato os livros não se tornaram best-sellers, mas também nunca foram “encalhes” e acabaram se pagando. Quando fui trabalhar na Cosak e Naify, Rodrigo Lacerda era o coordenador editorial. Na época apresentei a ele a proposta de coordenar uma coleção de textos dramatúrgicos com ilustrações e ele topou imediatamente. Fiz então tradução do Fausto Zero (Urfaust de Goethe), com a pesquisa de imagens do Rodrigo Lacerda e de Samuel Titan e com o projeto gráfico do designer Raul Loureiro. Depois, Samuel Titan que também foi editor da Cosak e é um excelente tradutor, engrossou o número de publicações nessa área em sua coleção “Prosa do Mundo”. Como editora, penso que sempre devemos apostar em novos títulos, prezando sempre a qualidade e o conteúdo. Sou da opinião que nesse meio devemos arriscar sempre, mas editar com qualidade. Cuidar muito bem de todas as etapas que envolvem a produção de um livro sem esquecer o projeto gráfico. Penso que livros, independentemente de seu conteúdo ou função, devem e podem sempre ser muito bonitos e bem editados.
MAB: Em Florianópolis fazer teatro tem se tornado possível e acessível. Existem mais grupos de teatro (itinerantes, pois faltam palcos), acontecem vários festivais (o FITA, internacional do teatro animado, o nacional Isnard Azevedo com apresentações gratuitas, o palco giratório etc.). Se ficarmos com o exemplo do teatro alemão, nos últimos tempos assisti a grupos locais encenando peças de Martin Walser, “Uma Visita”, de Peter Handke, “Pupilo quer ser tutor” e de Brecht, “Ascensão e Queda da cidade Mahagonny”. Nesse último caso, eu me lembro que não foi dado crédito ao tradutor da peça. Espero que o aprimoramento do trabalho de tradução encontre equivalência no reconhecimento da autoria da tradução.
Christine, os palcos brasileiros vão de mal a melhor? Você percebe tendência de crescente profissionalismo dentro do ramo teatral?
Penso que os palcos brasileiros vão cada vez melhor.
Sim, acho importante que se reconheça o trabalho e se dê o devido crédito ao tradutor, porque assim ele também estará assumindo sua responsabilidade no resultado final. Além disso, é dele o primeiríssimo trabalho numa encenação, sendo quase equivalente ao do autor. As palavras terão de “caber na boca”, não pode haver ruídos, há de existir fluência, o que torna o tradutor muitas vezes um adaptador do texto original.
MAB: Paideia parece ser uma iniciativa exemplar na zona sul de São Paulo, que partiu do diretor Amauri Falseti e da atriz e educadora Aglaia Push. Ouvi vários depoimentos elogiosos ao trabalho da Paideia, que inclusive transcende a encenação de teatro. Qual é a ideia da associação?
Para mim a Paideia é um exemplo a ser seguido. Fundada há mais de 10 anos por Aglaia e o Amauri, a Paideia é um projeto cultural que acaba refletindo e influenciando na construção e no fortalecimento do indivíduo na medida em que oferece conteúdos, novas formas, espaço para reflexão e para discussão. Conheci o trabalho da Paideia há oito anos e desde então participo do projeto. Aprendi muito com o grupo e principalmente com o Amauri que é um grande parceiro de trabalho e um excelente encenador. A Paideia é também um lugar de troca de experiências, de encontros, de aprendizados, um terreno fértil em que podem germinar sementes transformadoras.
MAB: Você acredita que a contínua exposição – em forma de contação de histórias, gastando saliva e soltando perdigoto, como você diz no seu programa de entrevistas, ou em potenciais atuações teatrais – seja um caminho para se fortalecer a auto-estima e a autonomia social? Somos colônia cultural?
Penso que podemos aprender muito com a experiência alheia. Ter a oportunidade de ouvir e de ver depoimentos de pessoas ligadas à cultura, de artistas e de profissionais de outras áreas, num mundo em que as informações são cada vez mais fragmentadas, mais estereotipadas, pouco processadas é de grande valor. Os convidados do perdigoto contam suas vivências, saberes e também despertam o interesse dos jovens da plateia para as diferentes possibilidades.
MAB: Por volta de 1980, a pedido de grupos teatrais brasileiros, o Instituto Goethe fomentou a tradução de peças de teatro do alemão ao português, foram publicados cerca de 50 “cadernos de teatro” em edições restritas. O curso de Alemão da UFSC solicitou um jogo completo emprestado à biblioteca de Porto Alegre, para fins de pesquisa. Espero que essas obras ocasionalmente sejam apreciadas e mesmo encenadas. Você conhece as brochuras?
Não conheço as brochuras, mas acho que cheguei a traduzir algumas das peças. Acho a iniciativa importantíssima. O teatro alemão tem muito a ensinar. É uma escola de muita qualidade e tradição. Não sei se as brochuras são consultadas. Parece que os textos também estão disponíveis na biblioteca digital deles, mas não tenho certeza. Penso que esse material deveria ser explorado, estudado e eventualmente montado.
MAB: Que projetos de tradução de teatro você desenvolve atualmente?
Continuo traduzindo textos dramatúrgicos por encomenda de encenadores, do Instituto Goethe e de Ricardo Muniz Fernandes e Matthias Pees, da Interiores Produções Artísticas Internacionais.
Ultimamente tenho traduzido e escrito para o teatro infanto-juvenil.
MAB: O curso de graduação em Artes Cênicas da UFSC foi criado há poucos anos e se apóia no tripé teoria, aprimoramento da atuação e direção teatral. Que práticas teatrais ou iniciativas você recomendaria à comunidade de discentes?
Acho esse o tripé ideal. Penso ser este o caminho para formar profissionais preparados. Conteúdo, experiência, senso crítico, dedicação exaustiva e talento são os ingredientes necessários para que se produza teatro de qualidade.
MAB: Obrigada pela entrevista, Christine.
* Maria Aparecida Barbosa fez Comunicação Social pela UFMG, Teoria de Teatro, Filme e Televisão na Universität zu Köln, é doutora em Literatura pela UFSC onde trabalha como docente de Letras/Alemão. Desenvolve pesquisa sobre literatura das vanguardas históricas e traduz literatura. Recebeu o prêmio de melhor tradução infanto-juvenil/FNLIJ 2011 pelo conto-longo de E. T. A. Hoffmann “A janela de esquina do meu primo” (Cosac Naify). Inicia pós-doutorado sobre a obra literária de Kurt Schwitters (manifestos, poemas, prosa).
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