ENTREVISTA COM MYRIAM ÁVILA
ENTREVISTA COM MYRIAM ÁVILA
Myriam Ávila publicou recentemente Diários de escritores (Abre, 2016), um estudo de fôlego sobre o gênero “diário do escritor”. O livro de Myriam ajuda a preencher uma lacuna bibliográfica sobre o tema, ainda bastante escassa em português, embora, segundo a autora, “o interesse pelos diários de escritores vem na esteira de toda uma valorização da produção ‘não-literária’ (correspondências, dispersos e marginália) e dos escritos autobiográficos que têm ocupado a crítica nas últimas décadas”.
A seguir, uma breve entrevista que a autora concedeu especialmente ao jornal “Qorpus”.
QORPUS: O estudo dos “diários de escritor” comprovariam a afirmação de Giorgio Agamben segundo a qual toda obra literária é autobiográfica?
R.: Valéry já dizia que mesmo o texto teórico é sempre um fragmento de uma autobiografia. Walter Benjamin propôs que uma narrativa adquire autoridade ao ser mergulhada na vida do narrador. Se tomarmos o caminho etimológico, toda obra, toda escrita mediada pelo próprio corpo pode ser chamada de autobiográfica. Do diário, pode-se dizer que não é o menos encenado dos textos, por mais que tente se prender ao real.
QORPUS: A leitura de diários de escritores ajudaria sempre na “compreensão” de suas obras?
R.: Não gostaria de afirmar que sempre, mas, às vezes até na contramão, o diário do escritor revela alguma coisa sobre sua postura criativa. Blanchot argumenta que Virginia Woolf escreve seu diário para “não se perder naquela prova que é a arte, que é a exigência sem limite da arte”. Isso diz muito da poética de Woolf, de seu rigor com relação a sua própria literatura. Mas o diário não explica um romance, por exemplo. A “Gênese do Dr. Fausto” de Thomas Mann, que é um relato sobre a construção da obra, não aumenta nossa compreensão do livro. Nem o “Diário dos moedeiros falsos” de Gide ilumina a obscuridade da ficção. Ao, aparentemente, tentá-lo, Mann e Gide escrevem novas obras, não explicam as anteriores.
QORPUS: Há diários reelaborados ficcionalmente, como o de Gunther Grass, citado no seu livro. Nesses diários, haveria pistas esclarecendo o processo de “manipulação”? Por outro lado, não sofreriam todos os diários algum tipo de reelaboração ficcional?
R.: Eu digo no meu estudo que, no diário, o autor exercita uma voz que pode muito bem se tornar a sua “voz de escritor”. O diarista que é escritor lida, nos cadernos íntimos, com o mesmo material com que trabalha sua obra – as palavras. É impossível dissociar totalmente uma coisa da outra. Diários como o de Grass partem da ideia de que vida e ficção não conseguem hoje ser mais dois âmbitos separados. Quanto ao leitor contemporâneo, está preparado e disposto a colaborar com a necessária encenação do cotidiano.
QORPUS: Poderia comentar a escolha das obras analisadas no seu livro?
R.: Digo, na introdução, que o acaso é o grande amigo do pesquisador. Gosto dos encontros não preparados, das perdas irrecuperáveis, do papel das contingências no trabalho de pesquisa. Assim, os diários que privilegiei no meu livro são como aqueles objetos que não propriamente tentamos colecionar, mas que vão se agregando a nossa vida e criando um laço invisível com ela. Escrevi, talvez, sobre os diários que me “pediram” para comentá-los, como, para Caetano Veloso, o cantor canta “somente o que pede pra se cantar”. Lewis Carroll faz parte da minha vida, Lima Barreto e Mansfield deram-se as mãos naturalmente na minha leitura, Mann fala da minha experiência na Alemanha, Frieiro foi uma personagem que conheci pessoalmente e cuja presença, para mim, ainda povoa as ruas de Belo Horizonte. Etc.
QORPUS: Qual a explicação para a escassez no Brasil de estudos sobre os diários?
R.: Existem estudos sobre diários em geral e sobre diários de viajantes. Mas os diários de escritores brasileiros, além de serem escassos, têm sido usados mais como um apoio para o estudo da obra literária. Como cada diário é personalíssimo, falta a muitos a percepção de que o escritor não escreve sozinho e sim em conjunto com os seus contemporâneos e seus precursores de eleição. Para mim, o diário de escritor é sempre um testemunho desse esforço comum em direção à literatura.