Lendo e traduzindo Solaris, entrevista com Eneida Favre – por Fabiana Gramonski
Lendo e traduzindo Solaris, entrevista com Eneida Favre
por Fabiana Gramonski*
Eneida Favre é bacharel em Letras Polonês pela Universidade Federal do Paraná e tradutora. Entre os autores poloneses que já traduziu, estão Stanisław Lem, Wisława Szymborska, Gustaw Herling-Grudziński, Hanna Krall, Andrzej Stasiuk, Adam Zagajewski, Wojciech Tochman, Anna Bikont e Joanna Szczęsna.
Fabiana Gramonski: Solaris, lançado em 1961, foi escrito pelo polonês Stanisław Lem, filósofo e futurólogo que dedicou sua vida a escrever romances de ficção científica. A obra foi traduzida em quarenta línguas e seus exemplares ultrapassam a venda de vinte e sete milhões. O livro recebeu duas versões cinematográficas, a primeira, em 1972 dirigida por Andrei Tarkovski e a segunda, uma versão americana, em 2002, produzida pelo diretor Steven Soderbergh. Em 2017, o livro ganhou uma versão em português a partir do original polonês por Eneida Favre. Como foi a experiência com a tradução da obra Solaris? Quais suas principais dificuldades?
Eneida Favre: ― A experiência de traduzir Solaris foi riquíssima para mim. Normalmente começamos a traduzir livros mais fáceis para depois nos aventurarmos por caminhos mais penosos. Mas, no meu caso, se deu o contrário, já comecei com um clássico e isso assustou, e muito!
Portanto a dificuldade inicial foi a pouca prática. Já havia traduzido dois contos e capítulos de livros, mas Solaris foi o primeiro livro “grande” inteiro que traduzi do polonês. Tinha um prazo não muito apertado, mas, por vezes, quando o texto se tornava mais complexo e o ritmo mais lento, ficava pensando se daria conta de terminar a tradução a tempo. Essa questão de calcular o tempo que a tradução vai levar, só adquirimos mesmo com a prática, traduzindo gêneros variados e autores diversos. Nos livros seguintes, esse problema diminuiu muito.
Outra dificuldade com Solaris foi manter o estilo de redação de Lem. Por exemplo, quem lê o livro nota que há vários parágrafos muito longos e repletos de minuciosas descrições, em que o autor escreve como num fluxo contínuo do pensamento. Em polonês, ele separou as diversas frases desses parágrafos por vírgulas, mesmo quando, no português, elas seriam normalmente separadas por pontos. No meu entendimento, se eu usasse pontos, destruiria aquele fluxo contínuo que me parecia tão importante no estilo do autor. Usar vírgulas estava fora de questão também, por tornar o texto praticamente incompreensível para o leitor de língua portuguesa. Então, optei por pontuar com pontos e vírgulas, que, apesar de tornarem o fluxo das frases um pouco mais lento que o original, não prejudicava tanto o ritmo como aconteceria se tivesse usado somente pontos. No entanto, creio que o uso de tantos pontos e vírgulas possa parecer estranho a alguns leitores. Mas não considero isso ruim, porque a estranheza nos permite ficar atentos ao fato de se tratar de uma obra escrita em outro tempo e inserida em outra cultura.
Outra dificuldade foi lidar com o rico vocabulário de Lem, um homem muito culto, inventivo, que lia muito e era admirador incondicional da ciência. Alguns termos que ele usou em 1959-1960, período em que escreveu Solaris, como, por exemplo, chamar de aeroporto (o que mantive) a base de lançamento de foguetes, ou a descrição de certos cenários e objetos da história, hoje, podem nos parecer um tanto ingênuos ou até engraçados, mas se pensarmos que, naquela época, nenhum homem tinha ainda viajado pelo espaço, o que só veio a ocorrer em 1961, e que ninguém tinha posto ainda os pés na Lua, percebemos como Lem era criativo e diferente de outros escritores de ficção científica, por basear seus relatos em fatos científicos conhecidos, que ele não parava de pesquisar. Daí, um rico vocabulário científico e também muitos neologismos, com os quais supriu as lacunas de vocabulário para as criações de sua mente prodigiosa. Volta e meia eu precisava fazer alguma pesquisa para entender sobre o que o autor estava falando. Precisei também do auxílio de um nativo da língua, o Prof. Piotr Kilanowski, que elucidou as dúvidas quanto a melhor tradução para determinadas palavras usadas por Lem e fez sugestões de grande valor.
Uma dificuldade menor, porém existente, foi manter o “tom” que o autor usou para cada personagem, isto é, cada um deles tem sua maneira peculiar de se comunicar com outro personagem. Kelvin e Snaut, por exemplo, usam uma forma mais coloquial em seus diálogos, já Kelvin e Sartorius são bastante formais em sua conversação, e, obviamente, as conversas entre Kelvin e Harey apresentam um tom mais intimista e amoroso. Tudo isso implica na escolha do vocabulário apropriado para cada situação. Mas é até divertido fazer isso, apesar de requerer bastante atenção.
Fabiana Gramonski: Sobre Solaris, o personagem principal é Kris Kelvin, um psicólogo que sai da Terra em expedição e chega a um planeta que gira em torno de dois sóis e com um único habitante “um oceano”. Ao aterrissar na base, encontra exatamente o que não esperava: além de dois tripulantes amedrontados, muito tumulto na estação, Gibarian morto e os “hóspedes”, que são fruto da própria psique, uma cópia personificada que age conforme as lembranças mais reprimidas e mostra as próprias verdades e os mais profundos segredos. Kelvin imagina que o oceano induz seu cérebro a alucinações e loucura, o mesmo pensamento de loucura o acalma, porque suas vivências são reais, afinal ele, como psicólogo, é especialista no assunto.
Os especialistas em cibernética são: Snaut, Sartorius e Gibarian. Snaut e os outros tripulantes partiram para o cosmo preparados para a solidão, para a luta, martírio e morte, prontos para encontrar um novo planeta habitável e ampliar a Terra e seus limites, desejando encontrar um espelho do próprio mundo. Snaut é um personagem enigmático, ele conduz o protagonista para a realidade do mundo de Solaris. Sartorius é um homem de poucas palavras e expressões, arrogante, fica trancado no laboratório e faz experimentos. Seu objetivo é exterminar os “hóspedes” para sempre, ele não quer mais presenciar a autorregeneração dos “visitantes” de uma forma tão rápida e inacreditável ao aniquilá-los. Gibarian é o personagem que cometeu suicídio por causa dos “hóspedes”, seus próprios fantasmas.
A personagem secundária é Harey, ela era a esposa de Kris Kelvin, que havia se suicidado há dez anos, deixando um bilhete escrito com cinco palavras que Kelvin carrega consigo. Cinco dias antes de sua morte, ele a abandonou e após a tragédia o psicólogo sentia-se culpado, a atitude de Kelvin fez com que ela injetasse uma alta dose de remédios, levando-a à morte. Agora ela está em Solaris como “hóspede” de Kris Kelvin, ela é uma cópia simplificada, reduzida a algumas falas e gestos, um ser que se autorregenera, criada pelo oceano de Solaris a partir dos sentimentos de culpa e medo de Kris Kelvin. Se você fosse resumir o livro em poucas palavras, o que diria?
Eneida Favre: ― Para mim o eixo principal do livro é colocado pelo personagem de Kelvin, quando ele conta que, certa vez, Veubeke, um diretor do instituto de solarística disse: “Como vocês vão se comunicar com um oceano, se não conseguem fazer isso uns com os outros?” Essa frase encerra a meu ver todas as tramas ocorrentes no livro: a busca desenfreada por entender o que está fora de nós, quando não conseguimos compreender os que vivem a nosso lado e nem entrar em contato profundo com os seus e os nossos próprios sentimentos e processos interiores (não é à toa que o protagonista é um psicólogo). Então, vejo Solaris como um questionamento da efetividade dessa busca em compreender o que é alienígena, sem antes, ou ao menos concomitantemente, tentar se aprofundar no âmago do espírito e do intelecto humano. Solaris é um livro eminentemente filosófico, em que Lem coloca na boca de seus personagens suas próprias crenças e especulações e nos instiga a pensar sobre nossos relacionamentos e sobre aquilo que esperamos de nós mesmos, dos outros e do futuro.
Fabiana Gramonski: Durante a leitura eu pensava ― Como surgiu nossa espécie? Para que existimos? Estamos sozinhos no universo? O que são sonhos? O que há no fundo do oceano? Tentamos compreender o outro enquanto não conseguimos desvendar nossos próprios segredos idealizando pessoas para nos relacionarmos. Temos problemas psíquicos e precisamos comprovar nossa saúde mental. Questionamos nossa fé naquilo que não podemos ver e tocar e sempre temos que escolher viver entre a razão e a emoção. Vejo os “hóspedes” como a representação dos nossos próprios sentimentos e processos interiores. Como você interpretou a criação dos “hóspedes” na trama?
Eneida Favre: ― Os hóspedes eram “os pesadelos”, os segredos mais profundos dos personagens, relacionamentos nos quais experimentaram algum tipo de sofrimento (moral? espiritual? psicológico? físico?) e que não foram bem resolvidos, deixando, ao menos no caso de Kelvin, um sentimento de culpa muito grande. Por isso mesmo, por fazerem parte ativamente de suas memórias afetivas, o oceano pôde percebê-los e, talvez ingenuamente, os trouxe de volta, dando aos personagens outra chance de lidar com as experiências mais conflitivas de suas vidas.
Fabiana Gramonski: Como você define Kris Kelvin?
Eneida Favre: ― Um homem atormentado por seu passado e pelas dúvidas que envolvem seu trabalho e suas crenças pessoais.
Fabiana Gramonski: O personagem principal, entra em conflito emocional pelas vivências reais na estação e pelo que diz a razão, procura encontrar sabedoria pela ciência e lê livros e artigos da biblioteca de Solaris. Nós na vida real também buscamos respostas para a nossa existência tentando obter equilíbrio, seja pelas características racionais ou por crenças que justificam algo incompreendido. Como você interpretou o fato de que Kris Kelvin, sempre que passava por uma situação desconfortável, ia à biblioteca para tentar encontrar relatos científicos e referências? Por que ele fazia isso nessas situações desconfortáveis?
Eneida Favre: ― Taí, essa sensação eu não tive. Sinceramente, para mim as idas à biblioteca eram um pretexto para que o personagem pudesse discorrer sobre os assuntos científicos aos quais Lem queria dar vazão. Toda vez que num capítulo Kelvin mencionava a biblioteca, eu pensava: Ai, meu Deus! Lá vem texto difícil! O pior de todos foi o capítulo 8, “Os monstros”, que é o mais pesado de todos tanto para traduzir quanto para ler. São muitas informações, muitos neologismos e muitas descrições minuciosas que requerem a atenção do leitor.
Então, eu não senti essa correlação entre situações desconfortáveis e idas à biblioteca. Para mim foi apenas uma estratégia de redação do autor, alternando os dramas humanos com as investigações científicas e entrelaçando-os numa unidade que, no fim, faria todo o sentido.
Fabiana Gramonski: Qual é a sua opinião sobre a crença do personagem principal, que não acreditava no Deus das crenças religiosas mas no Deus defectivo, com características humanas potencializadas, limitado, falível, que desejava sempre mais que poderia alcançar, aquele Deus que construiu os relógios e não o tempo, os sistemas mas não os fins. O Deus que criou o infinito como medida de sua potência e se tornou a medida do seu fracasso, um Deus desprovido de pluralidades, sem repetições. O Deus defectivo, que não é a redenção, não salva ninguém, não serve para nada, apenas é?
Eneida Favre: ― É uma crença completamente cabível, afinal, podemos crer e acreditar em tudo que quisermos, não é mesmo?
Fabiana Gramonski: Como foi traduzir especificamente essa parte, mencionada?
Eneida Favre: ― Sem problema algum. Complicado, emocionalmente falando, foi traduzir os trechos referentes à aparição da visitante de Gibarian, a mulher negra, nos quais ficou patente o racismo de Kris Kelvin (digamos assim… que o racismo era do personagem).
Fabiana Gramonski: Qual é a sua percepção sobre a Harey de Solaris?
Eneida Favre: ― Harey me pareceu ter sido uma mulher emocionalmente carente e, diria até, submissa e dependente. Suicidou-se por não ver sentido numa vida sem Kris. De certa forma repete um padrão bastante comum de mulher dos anos 1950, (obviamente, não estou me referindo ao suicídio). No entanto, quando reaparece como um ser formado por neutrinos, que por sua natureza não podia se afastar do homem que a tinha fixamente na memória, a personagem vai crescendo, ganha força e acaba se tornando bastante interessante, tomando decisões, apesar das limitações às quais estava submetida. Acho, no entanto, que ao fim do livro, fiquei com a sensação de que não a conheci bem, como uma personagem realmente secundária da trama.
Fabiana Gramonski: Qual é a sua interpretação sobre o final da obra? Kris Kelvin foi engolido pelo “mimoide” ou conseguiu sair?
Eneida Favre:― Não tenho ideia do que poderia ter acontecido depois. Será que Lem tinha? O fato de ter deixado o final em aberto nos permite especular e imaginar diversas continuações: ser engolido pelo mimoide, suicidar-se como Harey o fez, sair ileso, voltar para a Estação e, depois de algum tempo, mudar de ideia e voltar para a Terra, morrer idoso e solitário na Estação, ficar louco, e inúmeras outras finalizações possíveis, dependendo da criatividade, do estado de espírito do leitor e de sua interpretação da trama. Mas gosto de pensar que, apesar de não conseguir compreender o oceano, ao permanecer em contato próximo com ele e observá-lo continuamente numa prolongada estadia na Estação, obterá um maior entendimento de si mesmo, do universo e da vida, e, como consequência, alcançará sabedoria, harmonia e paz interior, que suponho seja um final feliz para qualquer ser humano.
*Estudante de Licenciatura em Letras Polonês na Universidade Federal do Paraná.
(fagramonski@gmail.com)