Entrevista com Yéo N’gana – Martha Pulido

Entrevista com Yéo N’gana – Martha Pulido

 

Yéo N’gana

Processo criativo em No Trânsito da Vida

  1. Títulos – Seus poemas carecem de títulos. Como você decidiu que “Ode a um pote” ganharia título, e como e por que você dá ao livro o título extraído de um verso de um dos seus poemas?

YN’. O pote foi um acontecimento que sucedeu durante as minhas reflexões. Foi um lindo presente que recebi da professora Marie-Hélène Catherine Torres. Após saborear o conteúdo, pus-me a pensar no seu trajeto, na sua viagem até chegar a mim, quer dizer: o ‘pote’ foi fabricado em Marrocos, na África, vendido na França na Europa e, consumido no Brasil nas Américas. Esse percurso triangular do pote lembra também outro percurso, histórico, sim, e não menos importante para reflexão e merecia ser registrado. Diz o ditado: ‘afasto-me da África, mas a África nunca se afasta de mim’. Quanto ao título do livro, nasceu antes do poema.

  1. Estrutura dos poemas – Tendo em vista que seus poemas variam entre dois, três, quatro, cinco e seis estrofes, cada estrofe variando quanto ao número de versos, e este último também se aplica aos poemas de uma só estrofe, cujos versos vão de seis a até 28, sendo que um dos poemas, o de doze versos e outro de dez versos, se apresentam como poemas visuais, um de intensidade descendente e outro de intensidade ascendente, como você decide a estrutura dos poemas?

YN’. Bem observada a questão do visual. Veja que o próprio poema, ao se corporificar, ganha forma junto com a intensidade do sentimento ou da observação especificamente nos casos aos quais você se referiu. O verbivocovisual dos concretistas me influenciou um pouco também. Do resto, não tive uma estrutura formatada. E os números de versos e de estrofes constituem um exemplo claro de que não quis nada homogêneo.

  1. Rima – Ao ler seus poemas, sentimos uma musicalidade, claro, uma fluidez, que, no entanto, não é dada por uma rima preestabelecida nem por uma forma poética determinada que você se proponha a utilizar. Uma vez que já não acreditamos na inspiração, mas, sim, que a escritura poética é um ato de sensibilidade, que implica um pensamento científico, como você pensa a musicalidade do poema?

YN’. A musicalidade de um poema é, de certa forma, o eco da música que o leitor escuta. Noutras palavras, a música do poema, independentemente, do idioma faz apelo a um imaginário, a uma vivência. Ler os versos do músico grego Terpandro ou do griô Fassake, sempre será diferente de um leitor para outro em termos de ritmo, de estrutura, de música, etc., cuja descodificação exige uma viagem no tempo. Pode, este leitor, até tendo acesso à música da Antiga Grécia ou do Mali daquela época, deixar de cair num exercício de recomposição, de recriação? Não há certeza.

Concordo que tem, consciente ou inconscientemente, uma corrente científica dentro e fora da poesia. Isto é, tanto no saber como no sabor. Não quis me impor um carcão, uma estrutura que não facilite a fluidez da leitura e do pensamento. A musicalidade do poema ou de cada poema deve seguir o ritmo e os passos de cada leitor.

  1. Temas e caráter dos poemas – Entre os poemas, há aqueles de caráter autobiográfico, ao passo que outros aparecem como observações de fatos externos, e dentro dessas duas modalidades de tratamento dos poemas, os temas variam entre amor e sensualidade, natureza e angústias existenciais, que, por sua vez, referem-se a religiosidade, cidadania, solidão e à impossibilidade de expressar essas angústias com a precariedade da linguagem. Como se dá a escolha dos temas? Como você estabelece essa diferença entre uma poesia autobiográfica, que é mais interior, e uma poesia mais observadora, que tem a ver com a natureza da língua?

YN’. Interessante e muito complexa esta pergunta. Dela, subjaz outra que é: qual é o limiar entre realidade e ficção? Uma história assim pintada em versos ou em prosa não cai na ficção? Os fatos são totalmente internos? Ou externos? Afinal, faço mais perguntas do que respondo.

Primo, no que se refere à escolha dos temas, não tive um método específico. Fui escrevivendo. E viver é caminhar. E o caminho está repleto de todos os temas susmencionados que foram se revelando como a paisagem vai se revelando a um viajante. Fui ‘tentando’ refletir sobre cada um, ciente da sua complexidade, abrangência, e, até certo ponto, do alto grau de subjetividade no seu tratamento.

Secundo, para responder à diferença entre poesia autobiográfica e a observadora, proponho o seguinte exercício: levante-se e vá para perto da janela, ou onde quer que seja, e observe atentamente o cenário, um lugar específico. Faça isso três vezes: no princípio do mês, no meio e no fim. Grave-se descrevendo dito cenário apontando para suas belezas ou dizendo o que se pode ou não ser melhorado. E no mês seguinte, faça o balanço. Perceberá que conforme seu estado de espirito, condição física e afins, seu apreço do cenário muda. Daí pergunto: estamos diante de uma observação interna ou externa?

Tercio, a natureza da língua condiciona ou pode condicionar a forma como um sentimento, uma impressão é vazada. Palavras como gbôduq, wambele, tchologo, acauã, imbu entre outras são atreladas a imaginários específicos. Cada termo, além do referente físico que representa, possui também um referente simbólico cujo significado exige, do leitor, um percurso bidirecional entre Costa do Marfim e Brasil. Essas palavras escritas de outra forma, ou seja, se fossem ‘traduzidas’, as imagens que elas evocam ou evocaram em mim sumiriam simplesmente.

  1. A língua estrangeira impacta a escrita da sua poesia? Você não apenas é multilíngue, mas também multialfabetizado, essas diferentes escritas se conciliam ou criam um conflito produtivo no momento da criação poética? Você já havia escrito poesia em outras línguas ou são as línguas estrangeiras que impulsionam esse movimento de criação poética?

YN’. Sem dúvida, aprender uma língua é aprender uma lógica de pensamento. Falar nessa nova língua sempre será uma outra experiência. E essa experiência influi na escrita. Na hora de escrever, não me preocupo com o aspecto multialfabetizado. Pois, só de parar para pensar nisso, já pode bloquear o pensamento, a reflexão. Já escrevi em francês, inglês, vez por vez, em espanhol, e agora em português.

  1. Para um poeta é sempre importante ler muita poesia, ler seus contemporâneos, mas também os poetas canônicos. Você lê poesia? De que épocas? Em que línguas? Você acha que para um poeta é importante conhecer a história da poesia em cuja língua se escreve?

YN’. A leitura é, sem dúvida, muito importante. Mais importante ainda não é a quantidade de poemas lidos, mas, sim, os silêncios entre cada leitura. As reflexões feitas e as conclusões delas tiradas. A chance do poeta é viver em (certa) comunidade. Consideremos o poema como um retrato ou um conjunto de retratos. Cada retrato traz um ângulo diferente de um mesmo cenário, de uma mesma sociedade. E, a autarquia privaria simplesmente o poeta desses ângulos, das opiniões e experiências dos demais escritores que compartilham com ele o mesmo espaço. Ademais, a poesia pode ser uma experiência interior ou exterior; e nisso, ler os contemporâneos é um exercício necessário. Ler os canônicos, além de fundamental, não é negociável. Assim colocada, sua pergunta ajuda a indagar: qual canônico? Canônico para quem? Não saberei responder. Pois, Gao Qi, Li Dongyang, Li Yu são alguns dos poetas mais influentes e canônicos da poesia chinesa Ming. Tanto como Balla Fassake é, além de grande orador, um personagem conhecido na costa subsaariana da África e presente no imaginário dos poetas Bambara pelas suas composições. Se perguntar nos arredores, perceberá que pouco se sabe sobre eles. A questão de cânone fica cada vez mais complicada.

Leio poesia sim. Sou eclético. Não me restrinjo a uma época específica. Leio em francês, inglês, português e espanhol. Escutava poemas épicos em senufo e diúla na infância, talvez passo a lê-los futuramente.

Não acho compulsório o poeta conhecer a história da poesia da língua em que escreve, porque, para mim, não existe “a” história da poesia, mas, sim, “uma” história da poesia. Caso tiver acesso a uma dessas histórias no seu idioma de composição, me parece necessário, até por questões de cultura, saber da evolução da dita poesia.

1.  Teria algumas orientações (dicas) para oferecer àqueles que gostariam de se tornar poetas?

YN’. Para debutar, que tenha um trabalho que lhe dê o sustento (risos). Em seguida, que seja um leitor consciente e um andejo lúcido quando enveredar pelos versos. Retomando parte da sua pergunta (3), “a escritura poética é um ato de sensibilidade, que implica um pensamento científico”; o candidato ou aspirante a poeta deve ser capaz de concatenar seus gostos literários e a dinâmica social. Alias, é disso que se trata também. O motto passa a ser: ler muito e ler de tudo. Todo texto possui, até certo ponto, sua própria poesia: desde textos relacionados à matemática, à química, ao direito, à aviação, etc. Basta observá-los atentamente para notar que têm suas metáforas, suas sutilezas, suas alusões, seus ritmos e, sobretudo, seus olhares sobre a sociedade. A poesia é, sim, uma ciência que ainda não subscreveu a um método específico embora nunca tenha deixado de ser ‘experimental’. Portanto, não há uma orientação especial ou uma dica oficial para se escrever poesia. Então, experimente!

 

Yéo N’gana, poeta da Costa do Marfim, entrevista concedida a Martha Pulido, sobre a raiz da publicação do livro No Trânsito da Vida, Edição eBook Kindle, 2018.