Entrevista com Antonia Javiera Cabrera Muñoz – Por Mary Anne Warken S. Sobottka

Entrevista com Antonia Javiera Cabrera Muñoz

Por Mary Anne Warken S. Sobottka[1]

 

Antonia Javiera Cabrera Muñoz

Antonia + antipoesia & Nicanor Parra

Antonia Javiera Cabrera Muñoz é professora do curso Letras Português e Espanhol da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM, campus JK, em Diamantina, Minas Gerais. Defendeu sua tese de doutorado em maio de 2009 no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, sob o título Antipoesia em Lear rey & mendigo de Nicanor Parra. Anos antes, em janeiro de 2006, teve a oportunidade de conhecer o poeta Nicanor Parra (1914-) com quem conversou durante toda uma tarde fria do verão chileno. Essa visita impactante definiu o seu projeto de pesquisa. A obra Lear, rey & mendigo (2004), de Nicanor Parra, objeto de estudo da tese, foi a consolidação de um trabalho que iniciou nos anos 90, quando, a pedido do Curso de Teatro da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Nicanor Parra faz sua tradução da obra King Lear de William Shakespeare. De acordo com Muñoz esse trabalho foi considerado por Parra como a síntese de sua poética: a antipoesia. Na performance dessa obra se pode apreciar a oralidade do espanhol chileno neste texto escrito.

Atualmente faz pós-doutorado sobre a música no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Sua pesquisa está sob a supervisão acadêmica do Prof. Dr. Ricardo da Costa, do Mestrado em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.

 

  1. (Mary Anne Warken) Qual a sua nacionalidade, brasileira ou chilena? Comente um pouco sobre os possíveis contrastes culturais. Especialmente com relação ao idioma.

(Antonia Javiera Cabrera Muñoz) Bem, eu nasci no Brasil, em Florianópolis, em 1977. Minha educação deu-se integralmente em Florianópolis, mas, como meus pais eram chilenos e fixaram residência na capital catarinense, os contrastes culturais sempre me marcaram. Os contrastes que mais me marcaram são a formalidade chilena no trato com as pessoas, a educação, o patriotismo cheio de protocolos e com forte influência da tradição campeira, as comidas típicas e a profunda ligação da minha família com o campo chileno, já que minha mãe, embora nascida em Valparaíso e criada em Viña del Mar, tinha suas raízes em uma antiga família do povoado de El Belloto. Meu pai nasceu em 1938 em Santiago e se criou de forma bem modesta no bairro de São Miguel, atual bairro de São Joaquim. Meus avós paternos eram da cidade de Parral, no Sul do Chile, e chegaram a Santiago nos anos 30 em busca de trabalho. Em relação ao idioma, lembro-me da influência exercida pelos meus pais, Jaime Rubén Cabrera Cabrera e Helvecia Enriqueta Muñoz Maldonado, e minha avó materna, Helvecia Leonora Maldonado Serrano. Adquiri bastante o espanhol só de ouvi-lo em casa e de viajar ao Chile. Com 9, 10 anos de idade eu já dominava bem o espanhol chileno. Somente comecei a aprender formalmente a língua espanhola quando ingressei no Curso de Letras da UFSC em 1996. Pela primeira vez senti uma enorme diferença entre o espanhol que eu falava e aquele que eu aprendia na Universidade. Lembro-me de que na minha adolescência eu tentava ler a literatura chilena, como a poesia de Pablo Neruda (1904-1973), e de que, desde pequena, eu adorava ouvir músicas tradicionais e histórias de família quando viajávamos ao Chile. Por último, lembro-me com carinho da minha avó paterna, Ema Rosa Cabrera Cabrera, em nossa casa de Florianópolis, cantando músicas da Violeta Parra enquanto fazia tricô. Ela tinha 90 anos. E as cantava baixinho, sem aquele lirismo pegajoso. Era a própria pronúncia chilena!

 

  1. (M.W.) Na sua prática docente na UFVJM são trabalhadas questões que envolvem a tradução e os estudos da tradução?

 

(A.M.) Na minha prática docente eu não costumo abordar a tradução do ponto de vista dos estudos da tradução, mas como uma atividade advinda da leitura literária. O nosso Curso de Letras – Português e Espanhol é recente, de 2012, e atualmente está sob a revisão de seu Projeto Pedagógico de Curso. Espera-se que o novo PPC entre em vigor a partir de 2018. Nas novas ementas, incluímos conteúdos dos estudos da tradução entremeados aos conteúdos de língua. Esses conteúdos, quando aparecem, relacionam-se mais com a linguística textual e a de corpus.

 

  1. (M.W.) Qual a sua área de pesquisa no momento?

(A.M.) Atualmente faço pós-doutorado sobre a música no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616). Minha pesquisa está sob a supervisão acadêmica do Prof. Dr. Ricardo da Costa, do Mestrado em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Essa pesquisa nasceu motivada por um convite que me foi feito pela comissão organizadora do II Festival Internacional de Música Histórica de Diamantina – “De La Mancha ao sertão: o ibérico na tradição musical do Brasil”, para participar como palestrante e debatedora de uma mesa-redonda sobre Ariano Suassuna e Miguel de Cervantes intitulada “O ibérico na arte armorial” em 20 de fevereiro de 2016 no Instituto Casa da Glória, e como declamadora de trechos do Dom Quixote no concerto do grupo de música medieval e renascentista espanhol Capella de Ministrers (Valência) em 23 de fevereiro na Igreja de São Francisco, em Diamantina. Meu trabalho no Museu do Diamante com o Grupo de Estudos em Educação da Imaginação (CNPq), sob minha coordenação, as participações no II Festival, além da coordenação do projeto “DISCO: um projeto de formação de discoteca em música clássica para apreciadores do Vale do Jequitinhonha – Minas Gerais, Brasil”, aprovado no Programa de Apoio à Cultura e à Arte da UFVJM – PROCARTE, entre 2014 e 2017, me fizeram retornar à pesquisa acadêmica. Desde 2017, sou membro do grupo de pesquisa “Arte, Filosofia e Literatura na Idade Média” (CNPq), coordenado pelo Prof. Ricardo da Costa.

 

  1. (M.W.) Com respeito a sua tese de doutorado defendida na PGLIT, Antipoesia em Lear Rey & Mendigo de Nicanor Parra (2009), o que lhe motivou trabalhar Nicanor Parra e especialmente a obra Lear, rey & mendigo (2004)?

(A.M.) A chegada a Nicanor Parra, na verdade, foi inusitada. De 2003 a 2008, eu trabalhei na Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, em Criciúma, como professora do Curso de Letras – Português e Espanhol. Em 2005, uma professora de língua espanhola, a Prof.ª M. Sc. Maria de Lourdes Souza Farias, estava fazendo seu mestrado na UNESC sobre Violeta Parra sob a orientação do Prof. Dr. Gladir da Silva Cabral, na época professor do Curso de Letras – Português e Inglês. Eu havia começado o doutorado nesse ano, mas eu estava inclinada a mudar o tema da minha pesquisa, embora mantendo o estudo da performance, pois participava há anos como violinista do Grupo “Corpo de Letra” do Núcleo de Estudos de Literatura, Oralidade e Outras Linguagens – NELOOL, da UFSC, coordenado pela minha orientadora da tese, a Prof.ª Dr.ª Alai Garcia Diniz. Essa colega me propôs irmos ao Chile em janeiro de 2006, para que ela pudesse conhecer o Chile, adquirir material e, quem sabe, fazer uma entrevista com Nicanor Parra, com quem Violeta manteve uma estreita ligação. Por sorte, estivemos em sua casa de Las Cruces em 03 de janeiro de 2006, com quem conversamos durante toda uma tarde fria do verão chileno. Aquela visita impactante para mim definiu o meu projeto de pesquisa. Em uma antiga livraria de Valparaíso, achei Lear, rey & mendigo e outras obras suas. Por causa de minha paixão pelos clássicos e porque a tradução era em “espanhol chileno” – o que me aproximava ainda mais da minha história familiar, eu aceitei o desafio de estudá-lo. Depois dessa visita eu fiz mais duas à sua casa de Las Cruces. Estudar Nicanor Parra nunca esteve em meus planos iniciais, mas essa viagem impactou-me de forma muito positiva. Não tinha um desejo acadêmico, por assim dizer, de estudar o Rei Lear de Nicanor Parra ou outra obra sua, mas o estudo resultou de uma confluência de fatores afetivos, artísticos e intelectuais. A motivação da pesquisa foi pura obra do destino!

 

  1. (M.W.) Você considera que o espanhol que lemos nessa obra é o espanhol do Chile, ou, é mais uma criação poética na escrita de Parra?

(A.M.) Sim, ela é perfeitamente transparente em relação ao espanhol do Chile. Há afirmações do próprio Nicanor Parra sobre isso, assim como, nos estudos sobre a obra. Sua proposta antipoética aparece na tradução, mas sem o conhecimento do espanhol chileno mais genuíno é impossível de se entender sua antipoesia e o motivo de ele haver escolhido justamente Shakespeare naquela que ele chamou de a sua “síntese antipoética”, Lear, rey & mendigo (2004). O material poético é chileno, mas a metodologia é shakespeariana. Acho que faltou eu analisar mais essa natureza do texto poético Parra-Shakespeare na minha tese.

 

  1. (M.W.) Em Lear, rey & mendigo poderíamos ter uma teoria da tradução para pensar a mesma obra de Parra, ou seja, você considera que para traduzir a obra parriana poderíamos nos guiar pela mesma prática de Parra ao traduzir Shakespeare?

(A.M.) Acho que existe, sim, uma teoria da tradução, porque ele trabalhou nessa obra durante 12 anos. O trabalho foi árduo e demandou muito esforço intelectual de sua parte. Mas acredito que a antipoesia só acontece no Chile. Ou seja, ficou claro para mim durante o período em que fiquei no Chile (de novembro de 2008 a abril de 2009) que o Lear, rey & mendigo não é uma obra destinada a outro público hispano-americano ou mesmo ao espanhol, mas para o público chileno. É um “local universal” bem localizado. Acharia impossível termos uma tradução no Brasil de algum texto de Shakespeare se não fosse feita pela mão de um poeta-dramaturgo ou de um professor/ crítico literário que não dominasse com causa o bardo inglês. Ariano Suassuna (1927-2014), grande leitor da literatura espanhola, fez uma adaptação de uma novela exemplar de Miguel de Cervantes, El Casamiento Engañoso (1613), para o teatro, O Casamento Suspeitoso (1957), ambientado no sertão nordestino. Essa peça já é um anúncio da arte armorial, portanto, de sua poética, que incluía a tradução e a adaptação de formas e conteúdos ibéricos.

 

  1. (M.W.) Na sua opinião, quais aspectos da obra de Parra não podem ser esquecidos ao momento de traduzir a escrita desse autor chileno? A oralidade no texto, o humor, a intertextualidade? Seria possível a tradução de Lear, rey & mendigo ao português?

(A.M.) O trabalho de um verdadeiro tradutor literário é complexo, ainda mais em se tratando de Shakespeare. Mas não podemos negar que a tradução tem a “mão” do antipoeta Nicanor Parra. Nisso, teríamos de ter, em primeiro lugar, um estudo aprofundado de sua proposta antipoética e destacar na tradução o que nela se apresentaria de mais notório. Para mim, esses aspectos são: a oralidade genuinamente chilena, o humor chileno, incluindo seus ditos e refrãos, a variedade de tipos humanos e o que Parra chama de “parlamentos dramáticos”. Em várias entrevistas, ele afirma que o antipoema não é mais do que um “parlamento dramático”, cujo significado é “um verso branco shakespeariano”. Por isso, não acredito que seja possível a tradução de Lear, rey & mendigo ao português, se não se preservar a riqueza do espanhol chileno e a psicologia do público a quem vai destinada.

 

  1. (M.W.) Comente um pouco sobre quais dificuldades que você visualiza para a recepção da obra de Parra no Brasil.

(A.M.) Acredito que a principal dificuldade da recepção da obra de Nicanor Parra no Brasil seja o fato de que, nos Cursos de Letras, estamos na maioria das vezes às voltas com as grandes “vacas sagradas” da literatura hispano-americana, como Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Gabriel García Márquez, e nos esquecemos de que ainda existem grandes nomes em plena atividade. Nosso mercado editorial publica muito mais esses autores e ficamos com a sensação de que, sem eles, a literatura hispano-americana não existiria. No entanto, no Chile, Nicanor Parra é referência obrigatória para qualquer aspirante a poeta e escritor. Sem Nicanor Parra não há como se entender a literatura chilena dos séculos XX e XXI. As obras de Enrique Lihn (1929-1988) e Roberto Bolaño (1953-2003) devem muito a Nicanor Parra, assim como as obras de poetas mais jovens, como Adán Méndez (1968-) e Alejandro Zambra (1975-). Ficaríamos sem entender o que é a literatura chilena e, principalmente, teríamos uma visão limitada da literatura do nosso continente. Aos 103 anos completados no último dia 5 de setembro, Nicanor merecia ser mais estudado no Brasil.

 

[1] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (PGET-UFSC), Bolsista CAPES. E-mail: warkenespanholufsc@gmail.com