Entrevista com o multiartista Ricardo Aleixo – Por Sérgio Medeiros

Entrevista com o multiartista Ricardo Aleixo 

Por Sérgio Medeiros

 

Ricardo Aleixo no Cabaret Voltaire

Poeta e performer consagrado, Ricardo Aleixo publicou em 2017 o livro “Antiboi”, que foi lançado na FLIP, onde oralizou trabalhos novos e antigos e obteve, como sempre, a imediata aprovação do público. Nesta entrevista inédita, ele discorre sobre sua obra, refletindo sobre o verso e a performance, entre outros temas relevantes.

 

1) Você faz performances dentro e fora do Brasil. No que consistem, em linhas gerais, essas performances, apresentadas ao longo dos anos em lugares muito distintos?

Cada performance minha é radicalmente diferente da que a precedeu, ao mesmo tempo que fixa pontos do trabalho vocal e corporal que desenvolvo já desde o início da década de 1990, quando conheci a obra teórica de Paul Zumthor. Comecei pelo mais básico: tentando devolver uma voz à letra dos meus poemas. Em termos estruturais, a coisa não ia muito além de um recital de poemas, em que eu, acompanhado ou não por algum instrumentista, ou tocando eu mesmo o violão, me empenhava na busca de formas de entoação que ficassem entre o canto e a fala cotidiana. Eu sentia que o meu corpo, naquele tempo, já buscava ir mais longe, por isso me aproximei o mais que pude de gente da dança e do teatro, artes que eu amava à distância. O momento de ruptura, de decisão e abertura de caminhos se deu em 1999, quando comecei a desenvolver, em parceria com o músico e ator Gil Amâncio, o trabalho de composição intermídia que resultaria, no ano seguinte, na formação da Sociedade Lira Eletrônica Black Maria. Amâncio integrava a Cia SeráQuê, de dança, e me convidou para fazer parte do grupo, numa experiência que me levou a um entendimento da dança desde dentro. Poder dançar, sem deixar de cantar, entoar ou fazer qualquer das outras coisas que eu já fazia no palco me liberou inteiramente para mergulhos mais radicais. Como apreciador das diversas correntes da poesia sonora e da música vocal de experimentalistas como Phil Minthon, Meredith Monk, o Walter Franco de “Cabeça”, o Naná Vasconcelos de “Africadeus” em diante e outros, me vi em condições de finalmente juntar todas as hipóteses “vococorporais” num único projeto (que ainda envolvia/envolve o uso de vídeo, objetos visuais/sonoros), de base intermídia ou transmídia. Ao longo de todos esses anos, o que venho fazendo é, em resumo, criar o que chamo de “roteiros de errância” – desenhos estruturais da cena a ser montada, os quais me permitem improvisar quando e como quero. Essa estratégia de composição, digamos assim, permite que o espectador não falante do brasileiro transcenda a barreira linguística e atente para aspectos que, de outra forma, seriam identificados como “periféricos” em relação ao “texto”, aqui entendido como “algo que se ‘tece’ com a língua, visando a exprimir uma significação”, para citar esse grande pensador da cultura que é Muniz Sodré.

 

2) A língua portuguesa usada por você incorpora outros vocábulos e outras sonoridades, quando o público da performance é “novo” ou “estrangeiro”?

Você viu que eu usei, na resposta anterior, o termo “brasileiro” para designar a língua em que escrevo, falo e performo. Valho-me, também, às vezes, do neologismo “pretoguês”, criação da feminista negra Lelia Gonzalez. É menos uma questão de fazer algo que gere proximidade entre a minha poesia e as possíveis expectativas do público, e mais a aceitação de sugestões criativas que ocorrem no âmbito da performance: um gesto que me leva a entoar com o jeito de cantar ou falar da minha mãe, do meu pai, da cantora Clementina de Jesus ou de alguém que nem existe; uma palavra inventada na hora, em meio a um “improvox”, que eu transformo em célula rítmica, por vezes com o apoio de pedais de efeitos – e sempre a partir do uso de técnicas vocais inortodoxas. A questão da língua vai, progressivamente, sendo deixada de lado, à medida que eu percebo, no olhar e nos jeitos de corpo das pessoas na plateia, se aquilo está fazendo algum sentido para elas, se estão se divertindo, se sentindo bem ou não, compreende?

 

3) O que são a música e a dança para você enquanto poeta da palavra que publica livros regularmente?

São meios de materializar, a partir do corpo, nossa “mídia primária”, como o definiu Harry Pross, minha concepção pessoal de poesia expandida. O próprio objeto livro eu tendo a perceber como um corpo vivo, quando estou em cena. Eu danço com ele, extraio sons do folhear de suas páginas, percuto-o como um tambor, me entrego a uma possível relação com ele. Posso mesmo dizer-lhe, Sérgio, que não penso, durante a performance, que estou dançando, cantando, performando ou fazendo algo ainda sem nome. Só estou, ali, presente. Sendo. Na melhor das hipóteses.

 

4) O manto tem muitos sentidos, inclusive hoje em dia um sentido irônico (veste dos santos e dos reis)… Poderia comentar os sentidos e usos do manto com que você se cobre (se oculta? se protege?) nas performances?

Meu poemanto, tão querido e essencial para a minha saúde criativa… Escrevi longamente sobre ele num poema-ensaio publicado no livro “Modelos vivos”, de 2010, cuja leitura eu recomendo a quem porventura se interesse em saber detalhes sobre sua confecção. Penso e sinto o poemanto como um jeito de lidar com a presença da morte na minha vida, no espaçotempo da performance. Nem me oculto sob ele, nem ele me protege de nada. Eu me relaciono com ele – e com a energia de quem nos vê em cena, aquela coisa toda negra, drapejada de letras brancas, em contínuo movimento, a reconfigurar o espaço a cada vez que faz do próprio corpo um espaço ora expandido, ora contraído. Não sei se ele é mais do que isso.

 

5) O texto escrito sempre precede a performance ou, como sucede nas apresentações da poeta chilena Cecilia Vicuña, às vezes ele é um registro do que o poeta oralizou ou cantou de maneira mais ou menos improvisada (ou em transe) no palco?

Pode ser uma coisa ou outra. Mesmo quando leio linearmente um texto, acabo inserindo uma outra mudança na leitura: de timbre, de intensidade, de alturas, de ritmo, de conjugação da voz com o olhar, a posição do corpo ou com a distância da boca em relação ao microfone. Depende muito da plateia, do meu estado de ânimo ou da disposição das palavras para o jogo. risos.

 

6) Você está lançando uma antologia poética. Poderia nos dizer algo sobre os poemas selecionados?

A antologia é fruto de um muito honroso convite que me foi feito, no ano passado, pela novíssima editora Todavia, para inaugurar a linha de poesia da casa. Com a colaboração do Leandro Sarmatz, de quem logo me tornei amigo, defini alguns dos principais pontos que atravessam as minhas tentativas de poesia, desde o começo, no final da década de 70. O volume, que trará cento e poucos poemas, justifica-se, também, pelo fato de que completei, em novembro, 25 anos de poesia publicada em livro. Como ainda estou longe de dar por concluído o meu processo de criação, isto é, como estou certo de ainda não ter feito o meu melhor, a antologia representa, para mim, um exercício de revisão do já feito, em busca da identificação do que é de fato fundamental na minha escrita, em contraposição ao que é, de algum descartável, em termos de futuras possíveis tentativas. Sai agora em abril.