Qorpus entrevista o professor, tradutor e estudioso da obra de William Shakespeare José Roberto O’Shea

Qorpus entrevista o professor, tradutor e estudioso da obra de William Shakespeare José Roberto O’Shea

 

Os dois primos nobres (1613-1614), peça pouco conhecida de William Shakespeare, escrita em conjunto com John Fletcher, chega agora ao Brasil em tradução de José Roberto O’Shea, que vem se dedicando a traduzir e estudar a obra do dramaturgo inglês. Atualmente, José Roberto O’Shea é considerado um dos maiores especialistas em Shakespeare do país.

 

Qorpus: Por que Os dois primos nobres não recebeu da crítica e dos leitores a mesma atenção dada a outras peças de Shakespeare?

A resposta a essa pergunta nada tem de simples. Para mim, a questão é, digamos, misteriosa. A hipótese frequentemente apresentada — que a desatenção da crítica e dos leitores decorreria do fato de The Two Noble Kinsmen não ter sido incluída no célebre Fólio de 1623, primeira coletânea “completa” das peças shakespearianas, e que a não inclusão, por sua vez, decorreria do fato de a peça não ser de autoria exclusiva de Shakespeare — não se sustenta, pois o próprio Fólio de 1623 não contém apenas peças escritas por Shakespeare sem colaboração. Na verdade, o Fólio inclui peças de coautoria já comprovada, e até outra peça escrita por Shakespeare em colaboração com o próprio Fletcher, Henrique VIII (ou Tudo É Verdade). Sabemos que no caso de The Two Noble Kinsmen a coautoria já está assinalada no frontispício do in-quarto de 1634, primeira publicação da peça, no qual, aliás, o nome de Fletcher aparece antes do nome de Shakespeare. No entanto, a despeito dessa explicitação de coautoria, e de importantes apropriações e re-escrituras de The Two Noble Kinsmen nos séculos XVII e XVIII, a peça permaneceu durante séculos atribuída ao cânone de John Fletcher e seu parceiro Francis Beaumont, e só a partir do século XX foi finalmente admitida ao cânone shakespeariano. E se a “desatenção” em relação à peça não se explica, necessariamente, devido ao fato da colaboração autoral, tampouco o será por não ser encenável ou encenada; ao contrário, consta, por exemplo, que o texto tenha sido selecionado para reinaugurar o Globe Theatre, em Londres, reconstruído após o incêndio que reduziu a cinzas o primeiro Globe, em 1613, e a peça foi selecionada para a inauguração do belo e prestigioso Swan Theatre, em Stratford-upon-Avon, um dos palcos da Royal Shakespeare Company, em 1986. Para complicar, a dificuldade em se resolver esse dilema da “desatenção” não se aplica exclusivamente a Os dois primos nobres, mas também a outros extraordinários poemas dramáticos shakespearianos, por exemplo, Cimbeline, Rei da Britânia ou Tímon de Atenas. Em suma, as hipóteses de desatenção decorrente do fato da colaboração autoral, de suposta carência de encenabilidade, ou de suposta qualidade dramática inferior não se sustentam. Longe de mim pretender mitificar a questão, mas, a despeito das possíveis consequências de uma equivocada exclusão do cânone, receio que resta definir um porquê deveras convincente quanto ao relativo “ostracismo” a que Os dois primos nobres tem sido legada.

 

Qorpus: As peças de Shakespeare se dividem em tragédias, comédia e peças históricas. Os dois primos nobres se enquadraria em qual delas? Ou é uma peça com características próprias?

Os dois primos nobres é classificada como tragicomédia, ou, na tradição dos Estudos Shakespearianos, como “romance”, ao lado de Péricles, Príncipe de Tiro; O Conto do Inverno; Cimbeline, Rei da Britânia e A Tempestade. Esse gênero esteve muito em voga, em Londres, no final da primeira década do século XVII. O próprio Fletcher oferece uma definição clássica de tragicomédia, no prefácio de sua peça The Faithful Shepherdess (1608-9), intitulado “To the Reader”:

A tragie-comedie is not so called in respect of mirth and killing, but in respect it wants deaths, which is inough to make it no tregedie, yet brings some neere it, which is inough to make it no comedie: which must be a representation of familiar people, with such kind of trouble as no life be questioned [i.e., with problems that are not life-threatening] (Fletcher, John. The Faithful Shepherdess A Critical Edition. Ed. Florence Ada Kirk. New York: Garland Publishing, 1980, pp. 15-16).

Embora, a rigor, em Os dois primos nobres não “faltem mortes”, a peça, de fato, apresenta vários elementos que “se aproximam” da tragédia, mas o denouement não configura uma catástrofe. Portanto, a definição de Fletcher parece útil para se classificar esse texto ricamente híbrido.

 

Qorpus: Poderia falar um pouco sobre a parceria entre William Shakespeare e John Fletcher?

Colaboração autoral era prática corrente no contexto teatral londrino à época de Shakespeare. Sabemos que a formação profissional baseava-se no modelo criado por mestres e aprendizes, de modo que no início de sua carreira Shakespeare trabalhou com dramaturgos mais maduros e experientes, e.g., aliou-se a George Peele para escrever Tito Andrônico, e a Thomas Nashe e Christopher Marlowe, para escrever a Primeira Parte de Henrique VI. Quando se tornou um “veterano” dos tablados londrinos, Shakespeare dividiu sua experiência e seu saber com teatrólogos mais jovens, por exemplo, George Wilkins, em Péricles, Thomas Middleton, em Tímon de Atenas, e John Fletcher, quinze anos mais jovem, em nada menos que três peças, Henrique VIII (a última peça histórica do cânone shakespeariano), Cardenno, ou Cardenna, Cardênio (baseada em um episódio da Primeira Parte de Dom Quixote) e Os dois primos nobres (baseada no “Conto do Cavaleiro”, o primeiro dos Contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer), sendo esta a última peça cuja autoria, como vimos, coautoria, associamos a Shakespeare. Não sabemos exatamente como a colaboração ocorria, mas a linguística computacional e a estilometria apontam Shakespeare como responsável pelo ato 1; ato 2, cena 1; ato 3, cenas 1 e 2; e a maior parte do ato 5, o restante cabendo a Fletcher, inclusive o Prólogo e o Epílogo.

 

Qorpus: Não é a primeira peça tardia de Shakespeare que você traduz (Péricles, Principe de Tiro, por exemplo, foi traduzida por você e publicada pela editora Iluminuras, em 2012). Existe de sua parte um interesse particular por essas peças tardias? Elas se diferenciam de alguma maneira de outras peças do dramaturgo inglês?

De fato, eu traduzi Cimbeline, O Conto do Inverno, Péricles e Os Dois Primos Nobres. Ou seja, dentre as peças tardias só não traduzi A Tempestade. Meu interesse particular nesse Shakespeare “maduro”, nas peças tardias, é a presença contumaz do sobrenatural (seja em termos de ação ou linguagem), da ação ritualizada, transcendental, da música e do espetáculo. Deuses, aparições, desaparecimentos, mortes e renascimentos, além de visões fantásticas estão invariavelmente presentes nesses textos tardios, sumamente teatrais – assim como o tema do relacionamento entre um pai e uma filha.

 

Qorpus: Poderia falar sobre o processo de tradução da peça? Por que escolheu traduzir o título, The Two noble kinsmen, por Dois primos nobres?  E o que o levou a querer traduzir essa peça especificamente?

Na tradição lusófona, o título tem sido Os dois nobres parentes. Ocorre que Palamon e Arcite são filhos de duas irmãs, portanto, primos de primeiro grau. Evidentemente, na condição primos, são parentes, mas, por questão de clareza e para ressaltar a proximidade do parentesco, optei por Os dois primos nobres, em vez de Os dois nobres parentes. O processo de tradução seguiu o de projetos concluídos ao longo dos últimos 25 anos. Em primeiro lugar, diante da grande variação, ou mesmo flutuação, textual atinente às primeiras versões impressas das peças shakespearianas, é preciso eleger o texto-base a ser traduzido, conforme fixado por um especialista (e.g. Arden, Oxford, New Cambridge, etc.), tarefa jamais fácil, mesmo em se tratando das chamadas “peças de texto único”, como The Two Noble Kinsmen. Em seguida, têm início a tradução e a anotação, concomitantemente, pois a anotação auxilia a compreensão e intensifica a fruição do texto não apenas para o leitor, mas para o tradutor também. Completada a primeira versão da tradução e da anotação, o manuscrito segue para minha revisora técnica, Marlene Soares dos Santos, Professora Titular Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao receber o manuscrito de volta da revisora, eu procedo à revisão final e encaminho os arquivos à Editora Iluminuras. O texto ainda passa por uma revisão editorial, e retorna a mim, em duas provas completas e subsequentes. Em todas essas etapas, retoques importantes são introduzidos.

 

Qorpus: Você pretende seguir traduzindo Shakespeare? Já tem outro projeto de tradução em vista?

Sim, com certeza, mesmo porque se trata de meu projeto junto ao CNPq (PQ), desde 1995. No momento, disponho de uma primeira versão completa e revisada de Tróilo e Créssida, tradução e notas, e estou concluindo o quarto ato da tradução e notas de Tímon de Atenas, ainda em primeira versão.