“A vida passa pouco a pouco”: Claudia Voigt entrevista com Swetlana Geier – Tradução de Silvania Gollnick

“A vida passa pouco a pouco”:  Claudia Voigt entrevista com Swetlana Geier

 

Tradução de Silvania Gollnick*

 

Swetlana Geier

Swetlana Geier

http://www.spiegel.de/spiegel/print/d-70228808.html

 

Swetlana Michailowna Iwanowa nasceu em 1923, em Kiev. Estudou filologia alemã e linguística comparada na Universidade de Freiburg, na Alemanha. Casou-se com o violinista Christmut Geier e teve dois filhos. Fez sua primeira tradução de um texto literário em 1953, uma história de Leonid Andreyev. Em 1988, com 65 anos, começou a retraduzir os grandes romances de Dostoiévski para o alemão. Seu trabalho foi premiado muitas vezes.

Essa entrevista teve lugar na casa de Swetlana Geier, em Freiburg, quando ela contava com 87 anos de idade, poucos meses antes de sua morte. Foi concedida a Claudia Voigt, editora da revista alemã Der Spiegel, e publicada em 26.04.2010. Por já conhecer o filme que o diretor Vadim Jendreyko fez sobre a sua vida, e considerando o seu depoimento de grande valor para nossos estudos, iniciei de imediato a tradução da entrevista, que atraiu minha atenção dentro de uma disciplina da PGET, Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC, em 2014. A Sra. Geier fala sobre sua juventude em Kiev, quando da ocupação de Stalin e dos alemães, e sobre suaexperiência como tradutora. Fazendo uso de analogias, ilustra ideias a respeito do processo tradutório e da linguagem, explicando questões abstratas com simplicidade: entre outras coisas, salienta a perspectiva ampla, a noção do todo, que o tradutor deve manter em seu trabalho e relembra que a linguagem é o ambiente formador da subjetividade e da identidade do ser humano. Após longas e insistentes negociações, o Professor Werner Heidermann finalmente conseguiu fechar a compra dos direitos de publicação da entrevista por um preço razoável, a fim de divulgarmos esta minha tradução da entrevista.

 

 

Spiegel: Sra. Geier, o filme A Mulher com os Cinco Elefantes, sobre sua vida e seu trabalho como tradutora, foi indicado para o Prêmio do Cinema Alemão (Deutscher Filmpreis). Um filme sobre uma senhora idosa que traduz literatura russa para o alemão é mesmo um projeto incomum. O que a senhora pensou quando o diretor Vadim Jendreyko lhe propôs isso?

Sra. Geier: Fiquei perplexa, pois não é minha área. Eu realmente não sirvo para ser retratada, não é do meu temperamento, nem é minha profissão. Disse ao Sr. Jendreyko que não queria ser interpelada nem incomodada, que nada poderia ser exigido de mim.

Spiegel: A senhora está com 87 anos, nasceu em Kiev, em 1943 veio com sua mãe para a Alemanha. Ficou famosa com as novas traduções dos grandes romances de Dostoiévski, os chamados cinco elefantes. Alguma vez sua vida lhe pareceu tema para um filme?

Sra. Geier: É certo que pratiquei a invisibilidade por 40 anos; no meu entender, esse é o papel da minha vida. Pois, traduzir é um modo de vida. É como a vida de um músico. Quando ele prepara o Concerto para violino de Brahms, o mundo consiste do Concerto para Violino de Brahms, a preparação se torna total. Para mim, há mais de 20 anos, o mundo é Dostoiévski e, com este, nos debatemos e temos variados graus de êxito.

Spiegel: A senhora já tinha 65 anos de idade quando começou o primeiro romance de Dostoiévski. Traduzir Dostoiévski era seu desejo há muito tempo?

Sra. Geier: É exatamente como querer casar com um príncipe. Também deve ser tão raro quanto conseguir o príncipe. A grande literatura é inatingível para nós, pessoas medianas.

Spiegel: O que a senhora aprendeu com Dostoiévski?

Sra. Geier:  Crime e Castigo é um dos textos mais comoventes e, como todos os grandes textos, tem um ritmo próprio. Este ritmo é um presto, portanto, é o mais rápido que existe. Mas no último parágrafo do livro, nas últimas seis ou sete linhas, uma palavra é repetida; em russo, essa palavra é postepenny. É uma palavra lenta, também por conta do duplo “n”. Significa allmählich (pouco a pouco), aliás, uma maravilhosa palavra alemã. O romance todo transcorre, portanto, num ritmo rápido e, no último parágrafo, a expressão “pouco a pouco”é repetida três vezes. Isso quer dizer alguma coisa: a vida passa pouco a pouco. Se depois de ler esse romance tivermos aprendido apenas isso, já teremos aprendido o suficiente. A violência é rápida e repentina, a vida passa pouco a pouco.

Spiegel: A senhora mudou o título de Schuld und Sühne (Culpa e Expiação) para Verbrechen und Strafe (Crime e Castigo). Por que?

Sra. Geier: Basta um aluno do primeiro semestre olhar no dicionário e fica claro: foi um pecado de meus colegas. Há duas palavras na capa desse livro: prestuplenije e nakasanije. Crime e Castigo. Não há espaço para o arbítrio. Foi uma negligência. Muitas vezes, é apenas com muita cautela que se pode dizer “certo” ou “errado” ao traduzir. Raramente fica claro. Os limites de um conceito num idioma, os limites de um conceito noutro idioma. Neste caso, porém, não é preciso especular; é só conferir no dicionário.

Spiegel: Com que idade a senhora começou a aprender alemão?

Sra. Geier: Com cinco ou seis anos, e francês ao mesmo tempo, pois era filha única. Tinha aulas particulares. Minha mãe achava que em tempos de turbulência só podia haver um dote: idiomas. Minha professora de alemão não era realmente uma mulher instruída, mas era uma professora fantástica; ela não sabia o que fazia, mas tinha um instinto pedagógico. Quando eu tinha de ler para ela e traduzir um texto em alemão, ela sempre dizia: “nariz para o alto ao traduzir”. Não se traduz como uma lagarta, que devora seu caminho através de uma folha, traduz-se a frase a partir do voo do pássaro. Trata-se do todo.

Spiegel: A senhora passou a infância e a juventude, nos anos vinte e trinta, em Kiev. Lá, no começo da década de trinta, a população passou uma grande fome, planejada por Stalin. Com isso, ele queria forçar os camponeses da Ucrânia a ir para fazendas coletivas.

Sra. Geier: Sim, presenciei tudo isso, foi pavoroso. Ainda pequena vi um morto pela primeira vez. Fui passear com meus pais e, de repente, meu pai ficou para trás e disse: vá com sua mãe. Virei, é claro, e perguntei porquê. Então, vi como ele tirou um lenço do bolso. Havia uma pessoa caída perto do caminho de terra. Meu pai cobriu-lhe o rosto. Tinha morrido de fome, em meio a um campo de trigo.

Spiegel: Sua família também passou fome?

Sra. Geier: Não, nós não; meu pai tinha um cargo importante na administração agrícola. Era especialista em melhoramento de plantas, sobretudo de beterraba e tabaco.

Spiegel: No final dos anos trinta, quando Stalin ordenou o “Grande Expurgo”, seu pai chegou a ser preso.

Sra. Geier: No dia em que foi preso, ele tinha 58 anos.  Por ter olhos castanhos ou azuis, por ser de direita ou de esquerda. Ele faz parte dos 20 milhões que foram presos naquela ocasião. Há homens, porém, nos quais há algo, e não se pode assassiná-los assim de passagem. Pode-se torturá-los, pode-se tentar quebrá-los, mas não se pode abater esses homens tão facilmente. Meu pai foi solto. Em 12 de maio de 1939. Morreu no dia 28 de dezembro. Em consequência da prisão.

Spiegel: Decorreram apenas poucos anos entre a tortura a seu pai, pelos stalinistas, e o assassinato de uma amiga judia, muito próxima da senhora, durante a ocupação de Kiev pelos nazistas. Que diferença havia, em sua opinião, entre esses dois regimes?

Sra. Geier: Eles são plenamente comparáveis. Se tento descrever meu pai quando foi solto, as fotos dos prisioneiros dos campos de concentração são a melhor comparação. Como aquelas pessoas se pareciam, assim parecia meu pai quando foi solto. Penso que assassino é assassino; isso não depende de suas ideias. É algo que, hoje, não se avalia com suficiente precisão. Não há fim que possa justificar um meio injusto. Leia Dostoiévski. Estas são questões muito antigas, que o ser humano consegue resolver cada vez menos.

Spiegel: Quando a senhora veio para a Alemanha com sua mãe, em 1943, recebeu uma Bolsa Humboldt. Como foi isso?

Sra. Geier: Preciso dizer que até hoje admiro muito a Alemanha, por eu ter recebido essa bolsa de estudos. Afinal, embora levada para longe, eu fazia parte de um povo contra o qual a Alemanha estava em guerra na época. Anteriormente, tive de servir de intérprete por um ano em Kiev, num canteiro de obras da Dortmunder Union Brückenbau AG. Desse modo, minha mãe e eu conseguíamos cartões de racionamento. Meu nome foi então sugerido para a Bolsa Alexander-von-Humboldt, enquanto as pessoas ainda se matavam nos campos de batalha.

Spiegel: Foi pesado para a senhora saber que, afinal, tenham sido os nazistas que lhe deram essa oportunidade?

Sra. Geier: Devo dizer: sim, foi pesado para mim? Ou devo dizer: não, não foi pesado para mim? O que se deve responder a uma pergunta dessas?

Spiegel: A senhora iniciou o curso superior em Freiburg. Posteriormente frequentou, entre outros, os seminários de Heidegger.

Sra. Geier: A universidade estava como que ressecada por falta de água; era como terra morta, rachada, havia uma sede tremenda. Foi uma época grandiosa. Fiquei sentada ali, trêmula. Após dez períodos de russo, tinha, sim, terminado o curso, mas não sabia se meu alemão seria bom o suficiente. Anotei tudo. O primeiro seminário que ouvi foi “Sobre a essência do trágico”. Eu odeio papelada, na realidade, não guardo nada. Mas, esses primeiros rabiscos eu guardei. Pode-se derramar lágrimas sobre eles.

Spiegel: A senhora anotou em russo ou alemão?

Sra. Geier: Em alemão. Os seminários de Heidegger ficavam tão cheios que, ocasionalmente, alguém tinha o pé esmagado, isso não é exagero.  Quando estávamos lá sentados, e ele falava, entendíamos tudo. Ao sair, não sabíamos mais nada. Ouvi-lo, porém, era um prazer colossal. Eu não tinha perguntas para ele, não queria nada dele. A mim interessava aquele homem, que fazia malabarismos e nunca deixava uma bola cair. Era um grande fascínio.

Spiegel: A senhora só voltou a Kiev depois de mais de 60 anos. O filme A Mulher com os Cinco Elefantes mostra a senhora nessa viagem.

Sra. Geier: Eu não voltei. Visitei a cidade.

Spiegel: Por que somente depois de tantos anos?

Sra. Geier:Seria muito interessante para mim, se ao visitar a Rússia me acontecesse exatamente como na França, onde todo mundo diz: oh, madame, a senhora fala um francês maravilhoso. No entanto, depois de algum tempo lá, percebo que estou fora do idioma. Mas regressei à Rússia como entro num outro aposento. Apesar disso, não gostaria de viver lá. Onde estou é a Rússia. Não preciso pegar um trem.

Spiegel: Onde estou é a Rússia. O que a senhora quer dizer com isso?

Sra. Geier: Acho que está escrito nas estrelas que russos e alemães podem ter as mais fecundas controvérsias. Nenhuma nação está tão ocupada com outra quanto os russos com os alemães e os alemães com os russos. Com certeza, por serem materialmente mais pobres, os russos são mais independentes do que os alemães. Para os alemães, mesmo para a geração mais jovem, a casa própria vale muito. E o idioma vem em auxílio. O alemão vive graças a seus verbos auxiliares. Ser e ter. Eu tenho. Mas, se não tenho, então algo não vai bem.

Spiegel: E na Rússia?

Sra. Geier: Em russo nem posso dizer isso. O alemão diz: eu tenho uma casa. Sujeito, predicado, objeto direto. Em russo, perde-se o objeto direto e, então, não se é mais sujeito. Se diz:a casa está comigo. Por esta razão, se eu não fosse russa, ia querer tornar-me russa. As coisas só ficam comigo por um tempo limitado. Não é fantástico? Se os alemães pudessem entender isso! Somos mais livres. Todos os pobres russos que não têm nada! Eu não gostaria de viver lá com uma família, pois é muito penoso; mas os russos são mais livres.

Spiegel: Isso tem suas raízes no idioma?

Sra. Geier: Linguagem é ser humano. Ela não expressa algo, é o ser humano. Forma o pensamento.

Spiegel: É por ter sido formada pelo idioma russo, que a senhora sempre permaneceu russa, mesmo depois de quase 70 anos na Alemanha?

Sra. Geier: Sou feliz demais por saber como me formei; e tenho muito a fazer, demais.

Spiegel: Quando se traduz milhares de páginas de Dostoiévski, não se fica sabendo um bocado a respeito de como são formadas as pessoas e também nós mesmos?

Sra. Geier: Claro. O que se faz deixa marcas. Minha mãe, que tinha um alemão imperfeito, falava tão bonito: tudo tem de pagar. Se a senhora se despede de mim, por exemplo, e volta para casa, não importa se eu lhe agradei ou não, algo fica com a senhora, algo que não é mais possível remover. Em cada encontro algo passa para o outro. Gigantes como Dostoiévski nos tocam e, se tivermos sorte, de modo mais duradouro.

Spiegel: Quando uma tradução é bem-sucedida?

Sra. Geier: Quando se lê com gosto. Quando os termos correspondem.

Spiegel: Há outros critérios?

Sra. Geier: É preciso conhecer o idioma. Quero dizer com isso, que mesmo cinco semestres de filologia românica não representam conhecimento algum de francês.

Spiegel: E o que representa?

Sra. Geier: Louça e talheres para comer e beber. Não é suficiente comer com as mãos. É preciso conhecer os idiomas e é preciso conhecer o assunto.

Spiegel: A senhora é conhecida por ditar suas traduções, por não as escrever a senhora mesma. Qual é a vantagem disso?

Sra. Geier: A linguagem não depende do papel. A linguagem vive no ar e a linguagem vive do ar. Mesmo aquilo, que tenha sido escrito por alguém em algum momento – até mesmo o Fausto, de Goethe, ou um texto de Puchkin – nasceu originalmente na imaginação. É por isso que, no primeiro momento, não quero ver o novo texto, mas dizê-lo.

Spiegel: Quantas páginas de Dostoiévski a senhora traduziu?

Sra. Geier: Não contei. São muitíssimas.

Spiegel: Tem alguma frase favorita?

Sra. Geier: Não, tenho muitas frases favoritas; e tenho muitas palavras favoritas. O livro mais contundente e mais desconcertante, o mais grandioso, com a construção mais simples deve ser Crime e Castigo. Entre os erros de meus antecessores e os descuidos dos editores está o hábito de suprimir repetições, mesmo de grandes autores. Ora, há uma palavra que Dostoiévski usava com muita frequência. E é sabido que ele tinha pouco dinheiro e que sempre ficava sem velas e sem alimentos. Possivelmente pensaram: bem, ele tinha condições de trabalho desfavoráveis, podemos ajudar esse homem. Se repetidas vezes ele escrever “subitamente”, então, na tradução, vamos reduzir ao habitual o número das palavras “subitamente”.

Spiegel: Como se diz “subitamente” em russo?

Sra. Geier: Diz-se “wdrug“. É claro que me interessei em saber porque Dostoiévski usa “subitamente” tantas vezes. Pois, “subitamente” significa que o conhecimento é limitado. Você não sabe que atrás de você tem uma aranha grande que caminha logo acima de sua cabeça. Sabemos apenas aquilo que vemos, o que não vemos é o que, para nós, acontece subitamente. Essa é uma dimensão do homem terreno, que é dependente de seus sentidos. Sabemos pouco, ouvimos pouco, não suspeitamos de nada. Existe uma consciência, contudo, para a qual não há “subitamente”, a consciência divina. E é muitíssimo interessante que em Dostoiévski, justamente em Crime e Castigo, a palavra “subitamente” ocorra com tanta frequência, pois ele narra a respeito da limitada percepção do ser humano.

Spiegel: A senhora ainda quer conversar, ou será que lentamente está ficando cansada?

Sra. Geier: Cansada? Não conheço esta palavra. Desde que meus filhos eram pequenos, não tive mais férias e também não sinto necessidade de tempo livre. É o conto de fadas do nosso tempo: poder ganhar a vida de forma independente,fazendo o que mais se gosta.

Spiegel: No filme sobre sua vida pode-se ver que a senhora gosta muito de cozinhar.

Sra. Geier: E cozinho para muitos. Quando penso que vim para a Alemanha apenas com minha mãe, e que agora estou rodeada pelos netos mais encantadores! Tenho sete netos, dez bisnetos e mais dois chegarão nas próximas semanas. Gosto muito de cozinhar para todos eles. Ainda tenho características primitivas de um povo não-sedentário: provisões.

Spiegel: A senhora faz conservas?

Sra. Geier: Preciso ter as coisas para aguentar firme por duas ou três semanas; isso é algo que sua geração não conhece, e já nem seus pais.

Spiegel: Com isso a senhora se sente segura?

Sra. Geier: A senhora pode vir, trazer três pessoas, e sempre terei o suficiente.

Spiegel: Existe algo que a senhora cozinha especialmente bem?

Sra. Geier: Sei fazer bolos muito bem, e acho que me viro com legumes e verduras.

Spiegel: A senhora cozinha seguindo receitas?

Sra. Geier: Isso já passou há muito tempo. Cozinho de acordo com o que tenho.

Spiegel: Essa grande família vive perto da senhora?

Sra. Geier: Todos podem chegar em poucas horas, se for necessário. O filho mais velho de minha filha tirou agora alguns dias de férias e me recomendou vivamente para tomar conta de mim e não morrer antes que ele volte. Não podia ser melhor.

Spiegel: Sra. Geier, obrigada por esta conversa.

* possui graduação com bacharelado e licenciatura em Letras Português-Inglês pela Universidade da Região de Joinville (1977), graduação e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007 e 2005) e está concluindo o bacharelado em Letras – Alemão, também na UFSC (2016).