“Qorpus” entrevista Sérgio Alcides

“Qorpus” entrevista Sérgio Alcides

 

Sérgio Alcides. Foto de Rodolfo Caesar

Sérgio Alcides.
Foto de Rodolfo Caesar.

 

  1. O seu livro, “Armadilha para Ana Cristina” (ed. Verso Brasil, 2016), uma coletânea de ensaios sobre poesia contemporânea suscita muitas discussões que vão além da poesia, algumas polêmicas. Uma delas diz respeito à discussão dos chamados “estudos de gênero”, que, muitas vezes, como afirma, “é a tentativa de dar à condição de mulher um caráter explicativo”, no entanto, mais do que isso, o que parece incomodá-lo é o fato de essa corrente ter se transformado em “disciplina emancipada”. Poderia discorrer mais sobre isso?

Sérgio Alcides

Agradeço a pergunta, que me dá a oportunidade de esclarecer melhor meu ponto de vista e evitar mal-entendidos. É sempre melhor ser execrado pelo que você pensa do que pelo que pensam que você pensa… Considero inquestionável a legitimidade dos “estudos de gênero”, e talvez tenha me expressado mal ao tocar nesse ponto, no ensaio que dá título ao meu livro. A influência do feminismo nas humanidades e nas ciências sociais foi formadora para mim também, e só posso vê-la como benfazeja, desafiadora, estimulante. O que eu desejava questionar é a suposta existência “emancipada” de uma “literatura feminina”, entendida como um recorte identitário, cobrindo a literatura escrita por mulheres e tendendo a atribuir um teor explicativo a esse dado de gênero. É verdade que a Ana Cristina Cesar foi pioneira – como afirmei – na adoção de um enfoque feminista sobre a literatura, e isso tem consequências decisivas no trabalho criativo dela: a perspectiva do feminino é indubitavelmente intrínseca e dificilmente poderá ser ignorada por quem deseje fazer uma aproximação crítica a essa autora. Também é verdade que ela se aventurou em teorizar a sério sobre uma possível (e a meu ver bastante plausível) “natureza feminina” da literatura, e ela não estava de jeito nenhum sozinha nessa aventura. No entanto, as proposições “a escrita é feminina” ou “a literatura é feminina” são bem diferentes da idéia de uma “literatura feminina”. Sobretudo porque, nesses casos, o gênero da autoria nem chega a ser um objeto de consideração necessária: a escrita ou a literatura não seriam menos feminina se o gênero do autor for masculino, nem mesmo quando se tratasse de alguém frequentemente apontado como sexista (Faulkner, por exemplo). Não sei até onde eu iria com essa questão. Talvez não muito longe, por falta de competência (no mínimo). Mas reconheço que é uma questão válida, boa para pensar. E suponho que aí a noção de “identidade” não se hipertrofia necessariamente como no outro caso. Em outra parte do livro, mais para o fim, explicito melhor (acho eu) minha implicância. Toda a proliferação mais ou menos militante de novas disciplinas ligadas à maré alta do multiculturalismo no ensino universitário se arrisca a repetir – por falta de reflexão rigorosa, por ojeriza à teoria – exatamente as mesmas inconsistências e os mesmos essencialismos hoje denunciados com tanta unanimidade na noção de uma literatura “nacional”, igualmente definida pela identidade dos autores: a “literatura brasileira”, a “literatura francesa”, a “literatura ugandense”. São disciplinas importantes em escolas e universidades do Brasil, da França, de Uganda. Não acredito que tenham tanta importância assim para o público, nem para o brasileiro, nem para o francês, nem para o ugandense, muito menos para o alemão, o norte-americano ou o venezuelano. Mas, quando a universidade se enrijece e vira as costas para a sociedade ou arvora-se em tutora da sociedade, aí tudo se complica demais… Faria sentido então um manual intitulado A formação da literatura feminina ou um capítulo sobre “A literatura feminina como sistema”, ignorando toda a massa de crítica já feita ao grande clássico de Antonio Candido, cujo ponto hoje insustentável é precisamente o seu atrelamento a um critério nacional, preso à identidade nacional. Praticamente todas as (extraordinárias) qualidades da Formação (que são inúmeras) nada ou pouco devem a essa moldura teorizada com precariedade, em volta de um problema identitário. Mas, se o feminino pode ser e muitas vezes é intrínseco, não necessariamente será explicativo: trata-se de assunto para um começo de conversa, não para a conclusão de uma tese. É um ponto de partida, não de chegada. Acho que uma leitura crítica de Ana Cristina Cesar dificilmente poderá partir de qualquer lugar que não se relacione de algum modo com a temática do gênero feminino. Mas será um desperdício – e cairá numa armadilha – se terminar reduzindo toda uma arte tão refinada e complexa, sobretudo tão pessoal, única mesmo, a um problema de identidade. Uma tarefa razoável para a crítica seria o estabelecimento de especificidades; a redução destas a um molde acadêmico prévio segue uma orientação oposta, mais seduzida pelos estereótipos do que pelas singularidades irrepetíveis.

 

 

  1. Outra questão bastante instigante que você traz à tona é a de que “há razões para crer que muitos livros tenham mais compradores do que leitores”. Nos tempos atuais, parece-me, não existem nem muitos compradores nem muitos leitores… Poderia desenvolver essa sua ideia?

 

Eis aí um enigma. É evidente que o mercado livreiro no Brasil teve uma grande expansão nas últimas duas décadas. Não tenho números (gostaria de tê-los, sei que existem em algum lugar). Mesmo assim é avassaladora a quantidade de publicações, expostas em grandes redes de livrarias ou vendidas por elas na internet. É verdade que muitas livrarias pequenas e encantadoras fecharam as portas, mas isto se deve antes à competição selvagem das grandes redes do que a uma queda da venda de livros. Também é verdade que a crise recente vem ameaçando essa expansão nos últimos dois ou três anos, provocando o fechamento de editoras importantes, golpeando ou até inviabilizando as menores, e dando o tiro de misericórdia nas livrarias de bairro. É uma crise estúpida, uma crise de estupidez. Ou serão várias crises conglomeradas num regurgitamento sem precedentes. Nestas alturas, enquanto lutamos para manter o pescoço acima do lamaçal inundante, é difícil mas vale a pena relembrar o que era a realidade editorial e livreira do país no final dos anos 1990 ou no início da década zero. Na Argentina, diziam que Buenos Aires tinha mais livrarias do que o Brasil inteiro, e só na Avenida Corrientes havia mais do que no Rio. Quantas livrarias bem fornidas tinha, por exemplo, (para citar uma metrópole do Nordeste) o Recife? E Curitiba? E Goiânia? O negócio do livro se expandiu de lá para cá, se profissionalizou muito – é a chamada “economia do livro”, a “cadeia produtiva do livro”. Isso me leva a crer que livro, no Brasil, vende bem, ou mais ou menos, e vai vendendo. Só não me parece razoável é supor que a qualidade da leitura se deduza da quantidade de vendas… Porque isso já descarrila da “cadeia” contábil, é algo que não se conhece a partir de hard data. Mas pode ser objeto de conjeturas interessantes. A poesia, por exemplo. É um lugar-comum que “poesia não vende”. Será verdade mesmo? Eu, quando cheguei a ter algum dinheiro na conta para comprar livro de poesia, pelo fim dos anos 1980, não tinha muito o que comprar. Havia gigantes que todo mundo lia e queria ler mais, mas era péssima a situação editorial das obras de Murilo Mendes, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Mário de Andrade e outros tantos, até mesmo de Manuel Bandeira (com a exceção honrosa de Drummond). Hoje todos os grandes poetas brasileiros do século XX (e olhe que não são poucos!) estão disponíveis em novas edições de alcance nacional, geralmente bem razoáveis ou até ótimas. Um por um, desde Oswald de Andrade até Vinicius de Moraes, ou até Mário Faustino, com muitos acréscimos posteriores, como Orides Fontela, Leonardo Fróes e Max Martins. São dezenas e mais dezenas de livros de poesia, publicados por várias editoras, na maioria comerciais, só excepcionalmente subsidiados. Se poesia não vende, então por que é tão publicada? O que acontece com as centenas de milhares de livros de Drummond, Cecília, Murilo e Cabral impressos todos os anos por Companhia das Letras, Global, CosacNaify e Alfaguara? Essas editoras não querem lucrar? Publicam poesia por espírito filantrópico? Filantropia, no Brasil? Sei não… Mas tenho uma hipótese: para mim, a maioria desses autores vende bem devido a um fator inercial que tende a se esgotar, que é o prestígio acumulado em décadas passadas, quando era muito maior o interesse público pela poesia e por tudo o que extrapola a mera banalidade industrial do “entretenimento”. Esses nomes permanecem relevantes como “ecos” do ruído que produziram no passado, numa esfera pública hoje bem menos arejada do que foi entre as décadas de 1940 e 1960. Meu livro Armadilha para Ana Cristina é também uma tentativa de dar ouvidos em público ao barulho possível de outros poetas, posteriores, que começou a soar depois e ainda não terminou de reverberar. Isso numa época estranha, neste país estranho, onde um adulto supostamente bem instruído, formado em escola privada, sabe quem é Batman, quem é Xuxa, quem é Wesley Safadão, e permanece assiduamente informado sobre essas criaturas, através da TV, da internet e dos principais jornais do país, mas nunca ouviu falar de Armando Freitas Filho, Sebastião Uchoa Leite ou Donizete Galvão.

 

 

  1.  Aproveitando a pergunta acima, no que tange à poesia, quem a lê hoje no Brasil?

Acho que a resposta anterior já satisfaz, em parte, essa pergunta. Muitos leitores de poesia espalhados pelo país inteiro estão condenados a uma atividade mais ou menos cadaverosa, porque para eles a poesia é uma coisa de celebérrimos defuntos, CDA, Vinicius, Bilacs e badulaques de antigamente. Como se a leitura de poesia pudesse reduzir-se ao seu aspecto privado, secreto, na quase completa ausência de um debate público vigoroso e abrangente. Saiu mais um volume de Bandeira? Então o sujeito vai lá e o compra, no site de uma rede virtual, ou numa loja de shopping. Saiu um livro novo de Lígia Dabul? Aí ele nem fica sabendo, não sabe quem é, acha que não lhe diz respeito, como se fosse coisa para especialistas, não para leitores de poesia. É este o nó, acho eu. Os leitores ainda existem – é a esfera pública que se rarefez. Mas, vamos ser bem claros: onde é que se formam leitores de poesia senão na própria esfera pública? Quem acha que é na escola merece os meus parabéns, pelo otimismo. Já eu tendo a achar que é nela que eles mais frequentemente se deformam. (Tudo isto, até esta linha, para resistir à resposta óbvia – mas insuportável e até abjeta para mim – de que hoje quem lê poesia são os próprios poetas; porque, se for assim mesmo, então é preferível parar de escrever poesia desde já).

 

 

  1. Você afirma que o isolamento das artes, “cada uma no seu gueto”, é empobrecedor para todas. Até que ponto as universidades são responsáveis por isso?

Acho que as universidades têm seu quinhão de responsabilidade, mas a meu ver o problema principal está no ensino médio, por um lado, e na imprensa, por outro. O espetáculo cívico a que assistimos no Brasil dos últimos anos é muito revelador do nível grotesco a que a sociedade chegou sem uma educação consequente, pública e laica, que prepare para a vida adulta, civil e responsável e não para vestibulares, enens e nhenhenhéns tentaculares de uma vida dominada pelo consumo e suas fantasmagorias, a ânsia de distinção social e o frenesi das comunicações em tempo aparentemente real. Da mesma forma, ninguém minimamente lúcido hoje, nem à esquerda nem à direita, deixa de verificar o vertiginoso vazio de informação e de crítica em que vivemos num país onde as comunicações são um negócio parasitário cujos principais produtos são a distorção e a manipulação. Esses dois problemas se retroalimentam, porque o amesquinhamento educacional é muito conveniente para a vejaminação das consciências. Com isso se estreita e se pulveriza a possibilidade de existência de um público cultivado, amplo, heterogêneo, irredutível a uma classe social, um bairro privilegiado, uma tendência partidária ou qualquer outro particularismo. Mas é a existência desse público a condição decisiva para esse interseccionamento das artes que só pode ser benéfico para cada uma delas, evitando que se convertam no esperanto de uma maçonaria de iniciados e especialistas. Ou que se deixem abduzir completamente pela lógica do mercado, comodificadas ao ponto de se tornarem irreconhecíveis.

 

 

  1. Uma outra questão polêmica que você levanta é a de que a crítica estaria “restrita” à universidade; uma das razões é que a imprensa destacaria acima de tudo a “indústria de entretenimento”. Será que os textos dos professores universitários não ficariam confinados em publicações acadêmicas apenas?

 

A universidade precisa ater-se a uma lógica que, em si mesma, não é favorável à crítica: ela é um sistema vertical de hierarquia, títulos, carreira, bancas, formulários, formaturas e formatações, beca e capelo, tradições, retrato dos fundadores e busto de inolvidável e magnífico benfeitor. Isso é legítimo por não ser uma finalidade em si, mas um modo de assegurar a educação superior, a pesquisa de ponta, a produção do conhecimento a partir do genuíno desejo de conhecer e da autoridade de quem já conhece a pretende difundir seu saber e sua experiência. Dentro disso, enquanto pode resistir um pouco ao ridículo de suas formalidades, a universidade pode conseguir grandes coisas, coisas indispensáveis à sociedade e à vida moderna e livre, como a excelência em ciências puras, o progresso em ciências aplicadas, a formação de quadros jurídicos (ai de nós!), engenheiros, médicos, dentistas, veterinários, biólogos, a educação nas humanidades e nas ciências sociais que pode gerar o acúmulo de massa crítica necessário às liberdades civis e à superação de muitas mazelas sociais e existenciais. Então, como escrevi em alguma parte desse meu livro, o trabalho universitário é crítico, sem dúvida, mas ele não é em sentido estrito a crítica. Esta se exerce extramuros, em público, em plano presumivelmente horizontal, sem banca e sem didatismo, amparada só no prestígio auferido sem atas acadêmicas, com a capacidade de arrazoar e persuadir a partir de um conhecimento em constante dinamismo. Acho que a existência de um interesse público forte pela crítica impele o âmbito universitário a responder, por sua vez, com o melhor de si, abrindo-se mais para a sociedade, comprometendo-se melhor com suas finalidades mais nobres. Na situação oposta, o resultado é a crescente clericalização da universidade (sobretudo nas humanidades), com a tendência de alienação e rotinização que é a própria criptonita do conhecimento, com todos os formulários, relatórios, projetos de pesquisa e pareceres de uma igreja perfeitamente esclerosada. Daí a extrema dificuldade que os “acadêmicos” têm de falar em público sem assumir essa persona de “professores” da sociedade, com aquele soporífero ar didático, aquele tédio magistral, como se vestissem uma batina mental inextirpável, que os torna tão desinteressantes e ineficazes fora de suas inscrições hierárquicas originais. Minguando a crítica real, com o rebaixamento do “público” à bilheteria da indústria do entretenimento, também a universidade começa a se esterilizar e perde a noção de seus verdadeiros compromissos. Mas todas essas observações mais ou menos antipáticas também se arriscam, aqui, à mesma esterilidade, se não servirem para nutrir algum inconformismo ativo – ativo e criativo – além de uma confiança mais aguda (conquanto mais azeda) tanto na necessidade humana da poesia quanto na própria poesia como forma de intervenção livre no mundo, como incômodo vital e como inspiração aberta para quem a quiser viver.