Um percurso de vanguarda: Entrevista com Jorge Schwartz – Por Vássia Silveira

 Um percurso de vanguarda: Entrevista com Jorge Schwartz

 

Por Vássia Silveira*

 

Jorge Schwatrz

Jorge Schwatrz

Ele nasceu em 1944, em Posadas, Argentina, e aos 16 anos mudou-se com a família para o Brasil. Filho de judeus húngaros, Jorge Schwartz credita à imigração parte de suas escolhas: “O imigrante tem uma flexibilidade e um senso da realidade talvez um pouco diferente das pessoas que nascem em um chão firme”, explica. Professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionou por mais de trinta anos Literatura Hispano-Americana, e autor de diversos livros – dois deles premiados com o Jabuti: Obras Completas de Borges (Ed. Globo, Prêmio Jabuti de Tradução) e o Fervor das Vanguardas (Companhia das Letras, Prêmio Jabuti de Teoria e Critica Literária) –, Schwartz esteve em Florianópolis, no final de outubro de 2014, participando como palestrante convidado do evento grafos, traços, gravuras: a ênfase da literatura nas artes visuais, na Universidade Federal de Santa Catarina (a palestra tratou sobre a edição brasileira, organizada por Schwartz, do Almanaque O Cavaleiro Azul (Der Blauer Reiter), lançado por Wassily Kandinsky e Franz Marc, em 1912). Dono de um humor refinado, ele fala nesta entrevista um pouco sobre sua trajetória – da ida ao Kibutz, nos final dos anos 1960, até à direção do Museu Lasar Segall, cargo que ocupa desde 2008 –, sua paixão pela análise de textos, o interesse pelas artes visuais, o trabalho da mãe, a fotógrafa Madalena Schwartz, a importância de Antonio Candido em sua vida e a preocupação com os novos formatos digitais.

 

VS: O senhor acabou de vencer o Prêmio Jabuti pelo livro Fervor das Vanguardas. Qual foi sua reação ao saber da notícia?

JS: Pra mim foi uma novidade. Não imaginei que a editora fosse indicá-lo. Não é por excesso de humildade, mas porque acho que não há nada que eu diga que já não esteja escrito. Mas a Walnice Nogueira Galvão me dizia todo ano “Jorginho, você deveria juntar” (os artigos escritos).  Então, quando eu fiz uma lista dos textos vi que realmente havia um livro, havia coerência na loucura. Eram repertórios que dialogavam entre si e isso me estimulou a levar adiante a ideia. Então sim, é um reconhecimento, estou felicíssimo! E outra coisa: Como venho da literatura, de alguma maneira, o livro me legitima dentro da área das artes visuais, na qual estou hoje.

 

VS: Como foi sua ida para o Museu Lasar Segall?

JS: Bom, depois de 32 anos na Universidade de São Paulo (USP), a possibilidade de aposentadoria é sempre muito tentadora. Não é uma decisão fácil, porque ela é irreversível: você sabe qual o teu passado, mas não sabe o teu futuro. Na época, eu tinha 59 anos, achei que se eu quisesse fazer algo novo, talvez fosse melhor sair da universidade. Então comecei a fazer curadorias, trabalhando de forma autônoma, fiz grandes exposições. E tive muita sorte, tenho que reconhecer: A diretoria anterior a minha no Museu Lasar Segall, formada pela Denise Grinspun e pela Roberta Saraiva, tinha saído e houve um comitê de busca, cogitaram alguns nomes. Sei que me telefonaram e me perguntaram se eu tinha interesse. Honestamente, caiu do céu! 

 

V.S: O senhor também falou em sorte, ou dessa casualidade quando fez referência, no texto de abertura do Fervor das Vanguardas, à sua viagem para o Kibutz e a posterior entrada na universidade de Jerusalém – que não havia sido planejada…

J.S: Não, não foi planejada. Eu, por uma espécie de crise, por não saber o que queria da vida, fui para o Kibutz, porque era o mais fácil pra mim naquele momento. O que quer dizer mais fácil? Eu tinha 21, 22 anos, tinha feito um ano de Economia na PUC, mas não gostei daquilo, e também não sabia o que queria. Então fui para lá e se não fosse a Guerra dos Seis Dias (1967), eu não teria ido para a Universidade de Jerusalém com bolsa. Foi uma guerra vista de uma forma muito vitoriosa, a comunidade judaica internacional colaborou muito, a experiência nada tem a ver com o que está acontecendo hoje em Israel. E aí surgiram as bolsas, os cursos de verão, e foi aí que eu descobri não o mundo da literatura, porque eu já gostava de ler, mas o mundo da análise literária. A Universidade Hebraica de Jerusalém era realmente uma universidade excepcional, de enorme qualidade. Mas eu devo confessar: só neste final de trajetória estou mais reconciliado com o que quero; com o que eu gosto de fazer. Porque antes, mesmo com o doutorado já feito, eu tinha muitas dúvidas. Veja, fui orientado pelo Antonio Candido e lembro que ele sugeriu, de leve, que eu trabalhasse com uma revista do final do século XIX, chamada Americana. Achei aquilo um pouco árido. E fui para o Modernismo, no doutorado. E o Modernismo foi quem realmente me abriu essa interlocução arte/literatura; Brasil/Argentina, quer dizer, me reaproximou das minhas próprias coisas, eu me aproximei da minha língua.

 

V.S. Mas antes mesmo dessa opção em estudar o Modernismo, imagino que por ser filho de Madalena Schwartz (fotógrafa) o senhor tenha recebido, de alguma forma, uma educação visual… E também transgressora, não?

J.S: Sim, o que a minha mãe fez no início dos anos 70 é vanguarda de verdade (risos).

 

V.S.: O senhor pode falar um pouco a respeito desse trabalho?

J.S.: Sou totalmente suspeito porque acompanhei muito de perto o trabalho dela. Minha mãe sempre encontrou em mim um interlocutor, um estímulo. Ela deixou um grande acervo, que hoje está no Instituto Moreira Salles, mas essa série recentemente publicada (Crisálidas), imagina, foi exposta no MASP em 1974! Foi surpreendente, totalmente inusitado. Outros fotógrafos, depois, fotografaram travestis, mas a forma como a minha mãe retratou esses seres, foi diferenciada. Não devemos esquecer  que ela foi imigrante, assim como eu. E o imigrante tem uma flexibilidade e um senso da realidade talvez um pouco diferente das pessoas que nascem em um chão firme, digamos, estabelecido.  A gente está, talvez, mais disposto a se arriscar, além de ter um olhar diferenciado. Voltando ao Kibutz, eu acho que a minha ida para lá, minha trajetória, tem a ver com essa disponibilidade para a modificação e também para assumir um certo risco: não ter certeza me levou a experimentar coisas. Tem gente que já nasce sabendo o que quer, tem modelos: filhos de médicos vão para a Medicina; outros se profissionalizam por oposição: o pai é cientista, então ele vai para o comércio ou para a música. No nosso caso, foi assim um “salve-se quem puder” (risos).   Agora minha mãe, somada a essa questão da imigração e do risco, era uma pessoa com inquietudes permanentes. A gente se estabeleceu no Centro de São Paulo e pelo fato de ter uma lavanderia, conviveu com muita gente interessante, porque naquela época gente interessante ia morar no Centro. Aqui ela começou um curso de fotografia. E o talento se revelou muito rapidamente. Ela mergulhou de cabeça, trabalhou muitíssimo para várias editoras, instituições. Ela começou aos 45 anos e deixou uma obra. Pessoalmente, ela era o contrario de sua fotografia: era pequenininha, muito suave, muito insegura, muito carinhosa, muito disposta a ouvir e a conversar.  Ela tinha uma atração genuína pelas pessoas, e se decepcionava muito, evidentemente. Mas não resistia a um rosto interessante.

 

V.S.: Há alguma chance de a gente ver no Lasar Segall a exposição que foi exposta no Masp, da Madalena Schwartz?

J.S.: Não, nenhuma. Eu jamais faria no museu uma exposição de fotos da minha mãe. Porque há um problema de conflito de interesse.

 

V.S.: Mas a artista não está acima do laço familiar?

J.S.: Ah, não sei… É uma questão de ética. E não falta espaço para a minha mãe. Como o acervo está no Instituto Moreira Salles, na última SP-Arte, que é uma exposição de galerias, estavam lá, gigantescas, as fotos dela… Nossa, fiquei emocionadíssimo!

 

V.S.: Como é o público do Museu?

J.S.: O Lasar Segall tem um público cativo, está no coração de milhares de pessoas da cidade de São Paulo. Nós temos uma área educativa muito forte, reconhecida, já foi referência no Brasil quando não tinha área educativa nos museus, hoje tem. Mas o Museu recebe umas 8 mil crianças de escolas ao ano e isso é bem importante. Eu sou de uma geração que não tinha o hábito de visitar museus: eu nunca frequentei um museu, quando criança. Meus pais estavam muito ocupados para ir a museus, e não era hábito em geral. Hoje você não consegue andar nos museus, virou lugar de peregrinação, e isso é muito bom: eu acho que tomou o lugar das igrejas! (risos)

 

V.S.: Voltando à Literatura, na introdução de seu livro Vanguardas Latino-Americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos (1995), após citar uma crítica feita por César Vallejo, em 1926, o senhor chamou a atenção para o fato de que as vanguardas brasileiras eram sistematicamente excluídas das publicações que tinham como objetivo refletir sobre os movimentos vanguardistas na América Latina. Isso mudou de lá para cá?

J.S.: Sim, eu acho que mudou um pouco porque o que você via muito era livro sobre poesia latino-americana, pensadores latino-americanos e o Brasil nem aparecia. Isso foi sendo corrigido: América Hispânica é uma coisa, América Latina é outra. A barreira da língua continua, mas nem se compara! Os países se dão menos as costas e também a estruturação da universidade no Brasil e nos outros países permite intercâmbios que a gente antes nem sonhava! Imagine, a universidade nunca fornecia passagens na minha época! A pós-graduação cresceu demais, há muito intercâmbio. Agora, há também muito menos risco, dá a impressão de que todo o conhecimento e a cultura são produzidos e filtrados por teses, não existe mais espontaneidade… Por exemplo: a famosa viagem que o Mário de Andrade fez pelo Amazonas, hoje, só se alguém tivesse uma bolsa! (risos) Há um pragmatismo muito grande nesse sentido.

 

V.S.: Esse mesmo livro (o Vanguardas Latino-Americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos) foi dedicado ao Antonio Candido, qual a importância dele na sua vida?

J.S.: Falar do Prof. Antônio Candido é algo muito especial… Eu tive muita sorte: em 1971, ele me aceitou, com a última leva de orientandos. E eu realmente não sei por que ele me aceitou! (risos)

 

V.S.: Bem, ele não iria aceitar qualquer um…

J.S.: Não, acho que foi um ato de intuição. Lembro que após o doutorado, quando comecei a orientar eu perguntei a ele: “Professor, o que o senhor recomenda para alguém que orienta pela primeira vez?” Aí ele disse, sem piscar, porque ele sempre tem respostas rápidas e certeiras: “Se você tiver qualquer dúvida sobre a pessoa, é melhor você não aceitar” (risos). Então eu segui um pouco esse conselho… Mas eu acho que ele também se arriscou! (risos).  Com relação à dedicatória foi uma decisão difícil pra mim:  Ou eu pedia pra ele fazer uma introdução, ou uma orelha; ou eu dedicava a ele, não podia fazer as duas coisas. E aí eu decidi dedicar (risos), achei que era mais importante. Nunca pedi pra ele escrever sobre o meu trabalho, eu acho que se tivesse pedido ele dificilmente teria recusado, pelo comportamento que ele tem com os orientandos. Agora é uma experiência além de acadêmica, humana. Veja, não trabalho no campo das ciências sociais, não trabalho a relação da literatura com a sociedade, e eu, pra te falar a verdade, do ponto de vista, digamos ideológico, estético, estava muito mais próximo do que o Haroldo de Campos fazia, do que do Candido. Mas veja que o Candido orientou o doutorado do Haroldo de Campos. A Morfologia do Macunaíma, imagina… O Haroldo não era aluno da pós-graduação, nunca foi! (risos) Mas precisou do doutorado para poder lecionar na PUC; o Décio Pignatari também fez tese com o Cândido, são curiosidades. E eu frequento o Mestre até hoje. Ele é um modelo de ser humano, um fenômeno! Acho ele excepcional: está com 96 anos, super lúcido, e ele fala da gente como a meninada. Ai, eu falo, “mas professor, a meninada está com 70 anos” (risos); ele diz que o maior orgulho da vida dele são os orientandos.

 

V.S.: O senhor pode dizer a mesma coisa dos seus orientandos?

J.S.: (risos) Sim, tive também muita sorte com meus orientandos. Alguns eu fui encontrando, outros me procuraram… Eu tenho orientando por todo o Brasil, fora do Brasil, na Argentina, no Uruguai; gente querida, estão todos trabalhando em universidades, temos uma boa relação. Então, sim, tenho o maior orgulho.

 

V.S.: Em Aula Magna proferida em agosto deste ano, Marilena Chauí fez duras críticas à política atual de produtividade acadêmica. Segundo ela, a USP “como suas congêneres, transformou-se numa fábrica de produzir diplomas, teses, tendo como parâmetro os critérios da produtividade: quantidade, tempo, custo. Esse horror do currículo lattes”. O que o senhor pensa a respeito?

J.S.: Estou totalmente de acordo. Eu, por exemplo, no início da carreira, podia fazer o mestrado em cinco anos, que acho que é o tempo que deve levar. Isso foi drasticamente reduzido, o número de créditos, tudo. Impossível fazer uma reflexão em dois anos! Não tem como… A gente foi muito levado pelo modelo americano: A palavra crédito, é uma palavra que vem do banco, do mundo financeiro. Não é uma palavra que venha do universo da reflexão filosófica – você ter créditos, receber créditos. Tem a ver com os tempos que estamos vivendo. Você às vezes precisa de um ano para pensar num artigo, para refletir. Para fazer um artigo seminal, precisa desse tempo e o critério de produtividade não permite isso. Não permite um tempo de amadurecimento, você é engolido pela burocracia, pelos tempos de produção, isso é muito ruim para as ciências humanas. Tem professores que hoje teriam que trabalhar em outra coisa, que eram sábios, mas que não publicaram. O Rui Coelho, por exemplo, era um homem que dava grandes aulas, tinha um conhecimento extraordinário, mas nunca deixou isso registrado no papel. Esse modelo não tem mais possibilidade de sobreviver na academia moderna e, ao mesmo tempo, você vê profissionais de congresso: eu não vejo como uma pessoa que vai a dois, três congressos ao ano tem tanta coisa de novo para dizer… Fico impressionado!

 

V.S.: O que o senhor acha das novas mídias, o senhor tem acompanhado os novos autores, os contemporâneos?

J.S.: Não, não tenho. É preocupante porque há uma aparente contradição. Por um lado, está se publicando mais livro do que nunca! No prêmio Jabuti se inscreveram 2.500 títulos, em 27 categorias, então é um número absurdo, dá a impressão de uma efervescência. Além disso, as grandes feiras continuam, o livro infanto-juvenil está melhor do que nunca. Mas, por outro lado, veja: eu ando muito de metrô, de ônibus, e não vejo ninguém lendo. As pessoas estão nos celulares, de uma forma irritante. Então são textos breves, inventaram o twitter, tem o kindle… Enfim, eu não leio em formato eletrônico! Percebo que estou ficando conservador e velho, fiz 70 anos – sete ponto zero, para não ficar tão impressionado com a minha própria idade: eu não faço mais anos, agora faço upgrade (risos).

 

V.S.: Em relação a essa brevidade do texto, sobretudo nos formatos eletrônicos, é possível que a gente esteja diante de uma vanguarda sem perceber?

J.S.: Acho que ignorância não é vanguarda. Há uma perda enorme de acesso ao texto escrito.

 

V.S.: Por que investigar a literatura?

J.S.: Eu acho que primeiro pela curiosidade e pelo prazer. Nós vivemos em um mundo em que poucas são as pessoas que fazem algo que esteja diretamente vinculado ao que elas gostam. Então você poder fazer da literatura uma forma de sobrevivência, é muito bom! Eu gosto de analisar texto, gosto de analisar poesia, gosto de analisar conto. Com romance me dou menos bem, porque não tenho paciência e não lido bem com grandes estruturas romanescas. Tenho uma percepção mais metonímica do mundo, mais fragmentada, tenho dificuldade de uma percepção mais estrutural das coisas. Não tenho o menor senso de orientação! E tem a ver com isso: eu entro aqui e não sei pra que lado ir, tenho que tomar muito cuidado pra não me perder. Me dá muito angústia isso. Mas eu gosto e… acho que devo fazer bem, porque até me deram um prêmio! (risos)

 

 

 * Bacharela em Letras Espanhol, mestranda em Estudos da Tradução (UFSC).