Entrevista com Paula Glenadel – Sérgio Medeiros

Sérgio Medeiros entrevista com a escritora, tradutora, ensaísta e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Paula Glenadel.

 

Paula Glenadel

Paula Glenadel

 

SM- O seu livro, “Rede”, transforma a cultura contemporânea num brechó… Hoje estaríamos todos — fruidores, críticos e artistas — usando roupas antigas, velhas?

PG – Sim, decididamente. E não são apenas roupas. O brechó, na verdade, é um lugar muito interessante, onde todo tipo de coisas parecem ganhar vida, onde elas nos interpelam – sobre o humano, como não poderia deixar de ser. Os surrealistas, de certo modo, inventam essa alegoria, ao elegerem como extremamente interessantes os precoces dejetos da sociedade industrial, pela vertiginosa poesia do envelhecimento desses objetos que surgem como promessas de uma novidade estonteante, mas já contêm na origem a sua ruína. O interesse deles pelos “mercados das pulgas” é bem revelador. Por isso, coloquei uns quadros surrealistas no porão. O brechó também é um lugar de desierarquização cultural, de hospitalidade, onde o cacareco mais reles convive com o objeto de luxo abandonado, passado adiante. Do alto desses objetos, toda uma promessa de democracia nos contempla… O brechó funciona como uma alegoria da memória, da história, afinal.

SM- De certa forma, você propõe um alegre (ou irônico e sarcástico, mas sempre saboroso) massacre de velhas divindades da arte moderna, tal como Borges, no seu conto “Ragnarök”, havia feito com os deuses da literatura clássico. Diz o argentino: “Sacamos los pesados revólveres (de pronto hubo revólveres em el sueño) y alegremente dimos muerte a los Dioses”.

PG -Imagino esse movimento de deposição de nossas divindades um pouco como um espetáculo de Guignol, onde os fantoches (fetiches?) levam um monte de cacetadas e levantam depois para continuar a receber golpes, para depois se levantarem novamente, e assim sucessivamente. É terrivelmente engraçado. O que me parece mais importante é a consciência que se reaviva com isso, a consciência de que todos nossos valores têm, digamos numa linguagem poética já um pouco envelhecida, uma aurora e um crepúsculo. Nietzsche já falava disso no século XIX, mas cada geração que nasce continua a ver seus valores como verdade e oprimir os outros com eles… ah, tome cacetada! A forma teatral do texto dá corpo a esse movimento.

SM- No posfácio, você menciona a “pós-crítica”. Em que medida “Rede” seria um exemplo nacional dessa tendência crítica contemporânea?

PG -Eu não saberia (não gostaria de) falar em função de uma generalidade, seja ela nacional ou transnacional. Cada vez mais percebo que me afasto disso, inclusive é a razão pela qual passei a tentar (acho que Rede é basicamente essa tentativa) a crítica no singular. Assim muito por alto, eu diria que na era do “pós-utópico” de que já falava Haroldo de Campos em 1984, a crítica teria, necessariamente, de acompanhar essa perspectiva, reinventando-se como discurso sobre a arte em uma configuração cultural dentro da qual a arte tampouco (re)conhece seus limites e seu potencial. Uma das possibilidades para essa crítica é fazer-se também arte (ou quase uma arte, para citar a expressão de Mallarmé de que me apropriei em 2005 para dar o título de um dos meus livros de poesia).

SM – Texto difícil de classificar – experimento verbal, crítica, tradução, citação etc. –, “Rede” apresentada pela editora como poesia. O que é poesia hoje para você?

PG – Bem, há pelo menos duas coisas aqui. Uma, é que a editora decerto tem mais necessidade de classificação do que a autora, uma vez que trabalha diretamente com o “mercado”. Outra, é que efetivamente, para mim, hoje, e isso muito em função de um convívio com escritores franceses contemporâneos com os quais venho trabalhando nas minhas pesquisas universitárias e que não habitam placidamente esse rótulo de “poetas”, como Nathalie Quintane, poesia é uma relíquia. Algo que já não existe mais “como tal”, devido sobretudo a essa reversibilidade moderna entre verso e prosa (já está lá em Baudelaire, em Rimbaud, entre outros) que diluiu as oposições entre discursos poéticos e não poéticos. Mas posso fazer versos, se quiser tocar nessa relíquia; e, com efeito, gosto intensamente de ler versos. Agora, numa perspectiva do “como se”, essa “poesia” recente vem tentando praticar um tipo de discurso que escuta e fala dentro da linguagem, que ecoa a nossa linguagem, a nossa linguagem “barbarizada”, isto é, tornada estranha às coisas da cultura, uma vez que “cultura” passa a ser mais um nicho do mercado. Poesia, hoje, para mim, seria uma tarefa de cupim (ou de fêmea de cupim, lembrando Manoel Ricardo de Lima, e não longe de Lautréamont) – insignificante, não apenas pela pequenez, mas pelo insignificar como procedimento corrosivo das tábuas desse cenário.

SM- A ideia de obra como performance, ou de fruição como performance, parece ser particularmente visada pela sua reflexão.  A “performance” é hoje em dia apenas um clichê, um estereótipo artístico e crítico?

PG – Não tenho certeza. É possível que eu tenha significado isso, afinal… Involuntariamente. Porém, sublinho que é um dos personagens que critica a performance, e que outros se encantam por ela. Nenhum deles detém minha crença, ou melhor, todos eles são virtualidades minhas, personagens que já fui ou poderia ter sido, ou que serei, quem sabe, um dia. Um sujeito = uma rede. Por outro lado, se tudo pode virar estereótipo hoje em dia, por que a performance não o poderia também? Não cabe manter uma utopia da performance como um lugar privilegiado dentro de uma oposição entre texto e corpo, entre obra e vida. A linguagem também é performática ou, no mínimo, performativa. O corpo também é estereotipado. Depende da circunstância.

Por acaso, escrevo estas respostas num computador onde uma de minhas gatas hoje resolveu urinar. Suponho que ela terá localizado o cenário onde faço minhas pequenas “performances” poéticas e improvisou a dela em cima da minha (quem conhece gatos sabe bem a diferença entre o urinar comum e o performático); mas eu a relanço aqui no espaço dessa resposta, também performaticamente, ou quase. Isso também é rede.