Entrevista com Evando Nascimento
Entrevista com Evando Nascimento*
“Não desprezo o mercado, isso seria ingênuo, mas creio que a relação deve ser sempre crítica e desconfiada, sob o risco de trituração pela máquina” (Evando Nascimento)
Evando Nascimento estreou como ficcionista em 2008, então com 48 anos e uma excelente reputação como ensaísta e professor de teoria da literatura, com uma obra tão experimental que seu estatuto continua incerto: Retrato natural (diários – 2004 a 2007). Ler esse conjunto de fragmentos narrativos de aproximadamente quatrocentas páginas é comprovar cabalmente a importância da consciência literária para quem enverede pelo repisado campo da autoria.
Três anos depois, o elogiado escritor lançou um volume assumidamente de contos, Cantos do mundo, com o qual demonstrou que realmente não é dado a fórmulas e está decidido a produzir como se começasse sempre do zero. Comprovou, além disso, a disposição de fundir ficção e filosofia, em movimento balizado pelos extremos da liberdade de criação e da consistência da reflexão. Seu novo livro, Cantos profanos confirma isso.
Abaixo, o leitor encontrará perguntas formuladas por Ana Chiara, Antonio Cicero, Godofredo de Oliveira Neto e Karl Erik Schøllhammer, respondidas invariavelmente com erudição e inteligência. A incrível marca de trina e uma laudas se soma ao aspecto de alentado memorial para fazer pensar que Evando colocou em xeque mais um gênero, agora para caracterizar plenamente a entrevista como literária.
As pesquisas, leituras e análises – como aquelas que renderam livros dedicados, respectivamente, a Clarice Lispector e Jacques Derrida –, a coordenação da Coleção Contemporânea, o hábito de escrever bem mais do que publica, o desenraizamento como meio caminho para o cosmopolitismo, tudo é matéria de uma constelação temática que, abordada com didatismo e dissecada em bom texto, configura-se um todo articulado e resplandecente.
Karl Erik – Em que momento você começou a se sentir atraído pela escrita ficcional e poética? Foi um desdobramento de sua atividade de professor e crítico literário ou sempre existiu como corrente paralela e submersa à atividade reflexiva e teórica?
As minhas primeiras recordações estão ligadas, entre outras coisas, ao ato de ler e, mais tarde, ao de escrever. Lia-se muito lá em casa, no interior da Bahia, e de tudo um pouco: romances ditos sérios, outros água com açúcar, revistas, fotonovelas, histórias em quadrinhos, fábulas etc. Eu era o caçula e me sentia oprimido entre quatro e cinco anos, creio, porque era o único que ainda não podia ler como meus dois outros irmãos. Assim, um belo dia minha mãe me flagrou lendo por imitação. Já estava sendo alfabetizado, de modo que consegui quase sozinho, em casa, juntar letras, palavras e frases, até deslanchar de vez e alcançar os outros.
Meus primeiros contatos com a literatura foram decerto com as fábulas infantis e com a poesia romântica que líamos e recitávamos na escola primária: Casimiro de Abreu, Castro Alves, Gonçalves Dias, Fagundes Varela. Isso fez com que o desejo de escrever brotasse muito cedo, aos oito anos me lembro de ter feito um pequeno poema dedicado a uma prima, em cima do qual desenhei uma imagem. Era uma coisa muito tosca, mas expressava um desejo de mimetismo que penso estar no cerne da escrita literária e da atividade artística. Não há invenção ficcional e/ou poética que não implique alguma dose de mimetismo, por mais disfarçado que seja. E escrever sempre esteve e sempre estará associado, para mim, ao ato de ler. Posso ser um bom ou um mal escritor porque leio bem ou mal. Ler bem implica reinventar o que se recebeu, a dadivosa escrita do outro.
Em torno dos treze anos, escrevi meu primeiro romance, de umas cento e vinte páginas, na máquina Olivetti Lettera portátil de meu pai. Devia ser um pastiche horroroso de Erico Verissimo e Jorge Amado, autores que eu lia com paixão por essa época, ao lado de Machado de Assis e de José de Alencar. O título do livro era Aberração, algo impressionante para um púbere! Muito depois me deparei com esse título num livro de Bernardo Carvalho, acho que ele me roubou a ideia telepaticamente, pois temos a mesma idade (risos). Guardei o datiloscrito desse romance seminal, envolto num saco plástico transparente, até os vinte e três ou vinte e quatro anos, quando vim para o Rio cursar o mestrado na PUC. Com as muitas mudanças que fiz ao longo da vida, acabei perdendo esses originais, e não sei se isso é uma lástima ou uma felicidade…
Então bem antes de entrar para o curso de Letras, aos dezoito anos, eu lia e escrevia bastante, e desenhava também. Cheguei a arriscar umas histórias em quadrinhos com duas amigas de infância e depois sozinho, mas quase tudo se perdeu. Penso que esse pequeno relato demonstra que o escritor precede em muitos anos o professor, o crítico e o teórico. Diria exatamente o contrário: fui estudar Letras para ficar ao máximo em contato com a literatura e os estudos de linguagem, que também tanto amo. Como Flaubert, me deprimiria profundamente se tivesse trilhado outro caminho, com exceção das artes. E a paixão pelo desenho e pela pintura quase me fez enveredar pela atividade artística, paixão que conservo até hoje, embora há muito tempo já não desenhe como o fiz outrora. Me tornei apenas um grande frequentador de exposições e museus.
Mas os estudos universitários acabaram travando bastante a carreira de escritor, pois me tornei excessivamente exigente. Continuei a escrever, sobretudo contos, mas adiei o quanto pude o momento de publicação de um livro de ficção e/ou poesia. Lembro que quando terminei o doutorado, nos anos 1990, disse a mim mesmo que era hora de “servir apenas a mim”, uma definição um tanto ligeira, mas verdadeira, do escritor: aquele que serve antes de mais nada a si mesmo.
Hélas!, continuei servindo a outros e outras. Mas finalmente, em 2008, publiquei meu primeiro livro de ficção, o Retrato desnatural, pela Record. Não é preciso dizer que tenho muitos inéditos que ficaram fora desse primeiro volume ficcional. Estão em sua grande maioria no computador e um dia talvez os edite. O problema é que sempre tenho novas ideias e projetos que me impedem de reler textos do passado para a publicação. Estes ficarão talvez para sempre como meu arquivo inédito. Tenho inclusive um romance autoficcional de umas quinhentas páginas, escrito entre 1998 e 2000, que não publiquei por ser uma história de amor que acabou mal, como quase todas que findam, e não tive coragem jamais de relê-lo e prepará-lo para a publicação.
A referência à autoficção, nesse caso, não é interpretação retrospectiva, mas se deve ao fato de que conheci esse termo numa palestra da especialista franco-canadense Régine Robin, na UFF, em 1997. Tudo o que fiz desde então é uma expropriação desse que, para mim, é um dispositivo e não um gênero a mais, dispositivo que reinterpreto e utilizo a meu modo. Já expliquei isso num ensaio e em entrevistas.
Karl Erik – Como você percebe o movimento de sua escrita em direção à dissolução dos gêneros firmes da ficção e do ensaio? Como você caracterizaria sua própria escrita? Aforismo, miniensaio, poema em prosa, conto, diário e…
Essa é uma questão que está no cerne do que faço. Uma das primeiras vezes que tive um insight sobre a literatura que gostaria de escrever quando adulto foi em torno dos quinze, dezesseis anos, ou seja, no momento em que nem tinha ideia de que curso universitário viria a fazer. Foi um trecho de Em busca do tempo perdido, de Proust, traduzido e publicado numa revista masculina que há tempos não existe mais, a Status. Era um periódico bem superior à Playboy atual, não tanto pelas imagens de mulheres nuas, que não tenho mais como comparar, mas pelo fato de haver uma seção ligada à literatura. A revista promovia até mesmo um concurso anual de contos de que cheguei a participar com uma história intitulada “O homem de Neandertal” – decerto uma narrativa autobiográfica, inspirada no Lobo da estepe, de Hermann Hesse, livro que me deixara positivamente transtornado.
É claro que não ganhei nada, era apenas um pretensioso adolescente. Creio que quem venceu naquele ano foi Edla Van Steen, este nome muito “exótico” me impressionou enormemente, mas só bem mais tarde, depois dos vinte anos, vim a ler um livro inteiro dela. Lembro de ter lido um conto de Cortázar pela primeira vez nessa revista, de que ninguém hoje fala mais. Lygia Fagundes Telles, salvo engano, também publicou ali algum texto, bem como outros que esqueci. Voltando a Proust: era um texto extremamente teórico, que nada tinha a ver com o que se pensa normalmente como romance, mas que hoje me lembra muito as melhores páginas do Tempo redescoberto. Este, de todos o volume da Recherche, é o que mais amo, justamente por constituir uma mistura de biografia e teoria, sendo citado explicitamente e traduzido no Retrato desnatural. Pouco compreendi daquele trecho publicado na revista Status, provavelmente retirado do volume Sodoma e Gomorra, mas fiquei fascinado por um narrador que não contava simplesmente uma história, porém de algum modo “filosofava”. Todavia, só aos vinte e tantos anos leria toda a Recherche, primeiro nas traduções da Globo, depois no original francês, em edição de bolso.
Entre dezessete e dezoito anos descobri a literatura de Thomas Mann, em primeiro lugar A montanha mágica, em seguida Morte em Veneza e os demais livros. O choque foi brutal, aquilo era tudo o que eu amava em literatura! Como não se identificar com Hans Castorp, sendo um adolescente a caminho da idade adulta? (Aliás, A idade da razão e O muro, de Sartre, que li na mesma época, foram também muito impactantes, junto com Crime e castigo, de Dostoievski.) Foi uma dessas experiências (no sentido mais intensivo da palavra) em que texto e vida se misturam inelutavelmente. Estava ali traçado o roteiro de minha “bio”: reinterpretar minhas próprias experiências a partir da literatura, das artes e da filosofia.
Desses três componentes a filosofia foi o mais tardio, pois dos outros dois já disse que apareceram na primeira infância. O texto filosófico veio primeiramente por meio da coleção Os Pensadores, da Abril Cultural, com que tive contato provavelmente em torno dos dezesseis anos, embora a edição que tenho até hoje date de três anos depois. Mas, antes disso, tentei ler emprestado os tomos de Aristóteles e de Platão. Entendi muito pouco, mas aquela linguagem também me atraía profundamente, e hoje penso ser um caminho que poderia ter seguido sem sustos. Não sei aonde me conduziria se fosse minha dedicação exclusiva. De qualquer modo, minha carreira universitária acabou me vinculando fortemente à tradição filosófica, e desde o início dos anos 90, quando fui estudar em Paris com uma bolsa do CNPq, tenho lido tanto filosofia quanto literatura, em proporções muito semelhantes. Aprecio muito ler e reler a tradição metafísica com um olhar desconstrutor.
Logo depois de Mann, veio Clarice, de que ainda vou falar, pois corresponde ao momento em que entro para a universidade. Resumiria minha resposta dizendo que aprecio todo tipo de literatura, e na verdade penso que cada escritor inventa sua própria literatura, pois não existe um conceito único do literário no mundo das ideias platônicas. Cada texto inventa ou deveria inventar suas próprias regras. Mas se há uma vertente geral da literatura que me apaixona é justamente a ensaística, que descobri em inúmeros autores: Machado, Borges, Kafka, Cortázar, Rosa, Beckett e, bem recentemente, Sebald, Vila-Matas e Coetzee, entre diversos outros. O Fausto de Goethe é para mim um tratado metafísico travestido de tragédia moderna. Tenho certeza de que, se Goethe vivesse hoje, seria um professor universitário de primeiro plano. A questão da universidade, aliás, está no coração da trama: Fausto é um autêntico scholar possuído pela vontade trágica de saber, um precursor de Nietzsche no sentido borgiano.
Isso no que diz respeito ao ensaio. Já no que se refere aos outros gêneros que emposto em meus textos, creio que toda a literatura do século XX (mas isso já começou ao menos no século XIX, sobretudo na França com Baudelaire, Mallarmé e Flaubert) se fez, de um modo ou de outro, pela mistura de gêneros. O que são o Ulysses e o Finnegans Wake, de Joyce, senão, entre várias coisas, uma mistura de romance, poesia, tradução, filosofia, história e estudo étnico ou antropológico? Tanto os autores da alta modernidade quanto os pós-vanguardistas, pelo menos os que mais me interessam, sempre combinaram formas distintas de acesso ao literário. Faz muitos anos que O livro do desassossego, de Pessoa/Soares, está em minha cabeceira – amo quase todo o Pessoa, mas esse volume tem um lugar decisivo em minha interlocução literária.
Quanto à contaminação mútua entre poesia e prosa, procede sem dúvida de Baudelaire, sendo difícil decidir se gosto mais das Flores do mal ou dos pequenos e delicados Poemas em prosa, que também fizeram parte de minha formação. Baudelaire disse tudo e um pouco mais (essa é a definição mesma de suplemento, aquilo que excede) acerca da invenção literária como tento praticá-la. Não sei se obtenho êxito, mas, sem essa mistura, a ficção e a poesia, bem como o teatro, me entediam profundamente. Felizmente alguns dos autores contemporâneos que tenho lido vão nesse sentido. Além dos citados Coetzee, Vila-Matas e Sebald, há Gonçalo Tavares, Paul Auster e Lydia Davis, entre outros. Diria mesmo que a literatura em estado puro não me interessa em absoluto, só me interessa a “maçã envenenada”, com filosofia, artes visuais, música, história, com a vida em suma. Como Rosa, penso que literatura tem que ser vida, porém reinventada – vida pulsante (Clarice). Isso tem a ver com a forma diário, que também faz parte de sua pergunta. Digo em algum lugar que o diário é uma combinação de diversos gêneros, e por isso me interessou também reinventá-lo.
Karl Erik – Onde você se posiciona na tradição literária brasileira? Quem são suas referências e modelos principais? Clarice é um nome que se impõe, mas quem são em sua própria interpretação os precursores?
Como escrevi no próprio ensaio sobre Clarice, não trabalho com a noção romântica de influência mas sim com a de confluência. A diferença é que, no primeiro caso, o influxo vai de um ponto a outro, linearmente num único sentido, enquanto, no segundo caso, há mesmo uma confluência de interesses e afetos. Os meus autores preferenciais são aqueles porque me afeiçoei, em relação aos quais procuro devolver na mesma moeda afetiva. Estou citando de propósito o tema de um maravilhoso colóquio que você e Heidrun Krieger organizaram na PUC-Rio em 2013, em torno de “literatura e afeto”, temática que se explicitou para mim no início dos anos 2000, justamente quando iniciava as primeiras tentativas de me lançar enfim publicamente como escritor. Por exemplo, no momento em que descubro Clarice, ao entrar na universidade, num curso de teoria da literatura, com minha querida Evelina Hoisel, hoje professora titular da UFBA, é como se as correntes sensórias e intelectuais que já perpassavam meu corpo encontrassem um lugar para desaguar e seguir novos cursos. Tudo em mim já me preparava para encontrar e desenvolver um aprendizado passional e muito prazeroso com o universo clariciano.
Li muita literatura brasileira em toda minha formação, mas um pouco menos hoje. Lia em parte influenciado pela escola, em parte pelos livros que encontrava ao alcance da mão em casa, emprestados por amigos ou na biblioteca do ginásio, na cidade do interior onde nasci, a pequenina Camacã, nome com tantos ecos indígenas… Minhas paixões são todas clássicas e de todos esses autores ficou um resíduo no que faço: os citados Alencar, Machado, Amado (sou da mesma região do cacau onde ele nasceu), Verissimo, Graciliano, Pompéia, Azevedo, Lima Barreto, Rodrigues, Queirós, Fonseca, Nassar etc. etc. A ostra e o vento, de Manuel C. Lopes, foi um livro que me deslumbrou na adolescência por seu lirismo. Não sei se ainda é editado e lido, mas lembro de ter assistido há alguns anos a uma bela adaptação para o cinema, com música de Chico Buarque.
Outra descoberta importante foi a Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, que marcou minha geração de amigos, bem como seus Diários, agora finalmente reeditados. Trevisan deve ter sido o primeiro escritor “sério” que adquiri com meus próprios recursos, quer dizer, com a mesada que recebia de meu pai. Tinha lido uma resenha num jornal de Salvador sobre um de seus livros e acabei comprando O vampiro de Curitiba, que me marcou bastante. Dos modernistas históricos, gosto muitíssimo de Mário mas me delicio com Oswald, por tudo o que ele representou de desconcerto, irreverência e inversão do fluxo das influências europeias com suas (não) teses antropófagas. Hoje penso e escrevo criticamente sobre o legado da antropofagia, questionando a metáfora desgastada da devoração. Mas considero que naquele contexto dos anos vinte e em tudo o que se seguiu na cultura brasileira, a vertente antropofágica teve um papel libertador, que de fato deságua na tropicália, outra referência pessoal fortíssima. Acho Caetano de longe um dos maiores poetas de nossa língua e o coloco ao lado de Camões, Pessoa, Drummond e Cabral. Certamente um especialista de poesia não concordará comigo, mas assumo tal opinião como leigo amoroso. Sobretudo a teoria concreta, mas também a prática poética, antilírica, do concretismo me fascinou quando jovem, e até hoje tenho grande admiração por Haroldo e Augusto de Campos, sem dúvida dois de nossos artistas universais, pois o concretismo é estudado em diversas instituições estrangeiras.
O primeiro contato com a poesia também dita séria foi com as antologias poéticas de Vinicius e de Drummond, que li quando ainda morava em Camacã, quer dizer, antes de completar catorze anos, quando então fui estudar em Salvador. Drummond, Pessoa, Baudelaire, Mallarmé, Cabral, Cecília, Bandeira e Whitman são até hoje minhas referências principais em poesia, mas a poesia em prosa de Rimbaud também me ilumina bastante. Tenho uma dívida enorme para com a literatura nacional, dívida esta que resgato escrevendo, e portanto me liberando desse “empréstimo”. Contudo, desde cedo me interessei por autores de outras nacionalidades, quando criança lendo as adaptações, e mais tarde pegando o touro pelos chifres, num corpo a corpo intelectualmente apaixonante. Em ficção, minhas confluências brasileiras maiores são sem dúvida Rosa, Clarice e Machado, que leio cada vez menos para não ser abduzido por nenhum deles. O risco é enorme de praticar uma cópia empobrecida dessas escritas demasiado fortes. Escrever um livro de ensaios a partir de Clarice foi um modo de exorcizar o fantasma da influência, tornando-a uma precursora. Esse termo tão borgiano é de uma beleza extrema: pré-cursor, o curso que precede, que antecipa o fluxo por vir. Eis outra boa definição de literatura hoje: a arte de inventar precursores, em ficção, em poesia, em ensaio, em biografia, em artes, em filosofia, em antropologia etc. De preferência misturando tudo e confundido os parâmetros, os dispositivos institucionais, os limites de gênero, as fronteiras nacionais. Como diria Rosa: ave, palavra!
No Retrato desnatural e em outros textos, busquei reinterpretar essa noção de confluência igualmente por meio de uma nova leitura da antiga categoria da emulação. O termo está lá, por vezes de forma jocosa – como jogo. Numa perspectiva pós-romântica, vanguardista e, agora, pós-vanguardista, emular é tomar diversas escritas como ponto de partida, não para imitá-las servilmente, mas para de algum modo, com menor ou maior sucesso, rivalizar com elas. Essa ideia de rivalidade já comparecia na emulatio clássica, de origem greco-latina. A diferença é que o exercício de emulação antes se fazia tomando alguns autores como modelos, tal como no caso exemplar das epopeias. No contexto pós-romântico, vanguardista e pós-vanguardista, contemporâneo, a ideia de um número restrito de modelos se esfacela, e a noção de confluência desloca em definitivo a de influência. É isso que nomeio como estética da emulação, englobando também as artes visuais, o teatro, a filosofia e outros discursos, digamos, menos artísticos: a política, a mídia, os esportes etc. O emulador é, antes de tudo, um fingidor. João Cezar de Castro Rocha estudou amplamente essa problemática emulatória, inclusive citando o Retrato desnatural, em seu livro sobre Machado de Assis na coleção que dirijo para a Record (selo Civilização Brasileira).
Karl Erik – Qual é a relação para um leitor profissional como você entre o prazer da leitura e o impulso da criação?
Como disse na primeira resposta, a leitura é o princípio mesmo da literatura. É escritor, por definição, aquele que lê e lê bem. Mas ler bem, nesse caso, vai muito além de decodificar um texto. As melhores leituras são interrompidas, aquelas que você faz erguendo a cabeça, como definiu Barthes lindamente num ensaio – aliás, ele é um de meus confluentes mais decisivos, bem como, sabidamente, outros pensadores franceses de sua geração. Dificilmente consigo ler um livro de ponta a ponta sem anotar alguma coisa e por vezes sem inventar um novo texto, à margem, a partir do que leio. Meus livros estão quase todos rabiscados, frequentemente com pedaços de um texto que posso ou não desenvolver alhures.
Ler, para mim, é sinônimo de rabiscar, de traçar novos cursos, para me tornar, com alguma felicidade, o precursor de alguém mais adiante. Tempo e contratempo, antecipação e retardo, eis o ritmo binário da invenção literária, termo que prefiro ao ultrarromântico “criação”. Inventar não é criar a partir do nada, mas estabelecer relações entre as coisas e os discursos do mundo, com recurso igualmente à imaginação. Os livros que não risquei decerto foram os que menos me interessaram. Nem todo livro é arrebatador, longe disso. Isso vale tanto para o que você chama de leitor profissional, decerto se referindo ao professor, crítico e teórico, quanto para o escritor, que é tanto um amador quanto, a seu modo, também um profissional. Minhas leituras são, quase sem exceção, uma mistura de viagem idílica, quase descomprometida, e possibilidade de escrita ou reescrita infinita do texto da outra e do outro que me raptam. Le Ravissement de Lol V. Stein, bem como diversos livros de Marguerite Duras, fazem parte do percurso literário que estou referindo. Não é a leitura essa forma de arrebatamento, de rapto ou quase “estupro” de que escapamos por meio do comentário e da reescrita? Todo grande escritor não passa de um reescritor dotado de imaginação, sua verdadeira linha de fuga. Tudo isso ocorre com grande influxo de prazer, senão não tem graça.
É nesse sentido que o sistema literário brasileiro é mais limitado do que deveria. Infelizmente a escola, sobretudo a pública, não forma em geral bons leitores, ou seja, sujeitos capazes de decodificar e reinventar o texto alheio. Se formássemos bem indivíduos aptos à decodificação, já seria um grande avanço, pois um dos problemas mais graves de nosso sistema escolar é gerar semiletrados, aqueles que mal assinam seus nomes e leem precariamente, quando o conseguem. E não é que seja tão baixa a verba para a educação, mas ela é mal administrada e, sobretudo, os professores do primeiro e do segundo graus são malformados, além de ganharem muito pouco. Li recentemente que mais da metade desses docentes jamais frequentou a universidade.
É duro escrever literatura nesse contexto de semiletramento, tendo que concorrer com mídias que fornecem o conteúdo visualmente mastigado. O porvir da literatura, no Brasil e no mundo, depende dessa atividade tão arcaica quanto a humanidade: o ato de ler e decifrar signos visuais, auditivos, táteis, olfativos, gustativos, amplamente sensoriais e cognitivos. Todo grande leitor é potencialmente um grande escritor: mesmo que nunca publique um livro, a escrita se faz mentalmente e se inscreve no corpo e nas ações que pratica. A equação é elementar: literatura = leitura. E a melhor definição de cidadania que conheço é a da aptidão à leitura em sentido estrito e amplo. Nada mais triste do que quem é incapaz de decifrar as múltiplas escritas do mundo, e nosso país conta com muitos indivíduos nesse lamentável estado.
Ana Chiara – Existe uma poética da epígrafe no seu livro Retrato desnatural (diários – 2004 a 2007) que seguiria os ditames de uma política da amizade, segundo uma definição de Blanchot, que disse: “A amizade, esta relação sem dependência, sem episódio e na qual, porém, entra toda a simplicidade da vida, passa pelo reconhecimento da estranheza comum que não nos permite falar de nossos amigos, mas somente de lhes falar”?
Penso que, sim, em meus livros de ficção há uma poética da epígrafe relacionada a uma política da amizade. As epígrafes me fascinam por dois motivos principais. Primeiro, elas dão o tom do texto que vem a seguir, o que em inglês se chama de keynote. Muitos textos, e não apenas os meus, é claro, podem ser lidos a partir das epígrafes, que constituem de fato um ponto de partida. As dedicatórias também contam bastante, pois muitas vezes a pessoa a quem se dedica o escrito foi seu inspirador ou sua inspiradora. Do primeiro caso, há inúmeros exemplos em Retrato desnatural, por meio das citações de Montaigne, de Almodóvar, de Zé Celso Martinez e de tantos outros. Do segundo caso, daria o exemplo de um conto do livro Cantos do mundo, dedicado a Michael Löwy. Intérprete de Walter Benjamin, Löwy sugeriu a possibilidade de um escritor brasileiro inventar uma narrativa na qual o pensador alemão viria dar aulas no Brasil – daí o meu “O dia em que Walter Benjamin daria aulas na USP”.
Citar autores é criar redes de amizade, não necessariamente confrarias, pois estas supõem em geral pessoas semelhantes, como também indivíduos do gênero masculino. É contra esse conceito consensual do que seja amizade que se dirige, a meu ver, a frase de Blanchot citada por você. O verdadeiro amigo não é fruto de nossa projeção narcísica, mas resulta de nosso estranhamento para com certas pessoas, estranhamento inicial que acaba se convertendo em afeto. Em geral, começamos por amar os dessemelhantes, ao menos comigo é assim, depois é que se instala uma parte de familiaridade. Por isso, gosto que meus amigos não pensem exatamente como eu acerca de diversos assuntos. E no fundo, jamais conheceremos de todo nossos amigos – qualquer excessiva afinidade nesse caso torna-se suspeita.
Diria que o mesmo acontece com as citações das epígrafes: são um diálogo com o texto do outro ou da outra, mas que não implica uma homogenia. Evidentemente, para que meu texto tenha alguma força é preciso que se distancie daquele de que partiu. Se apenas repetisse a fala alheia, não haveria interesse algum. O fato de um trecho citado dar o tom inicial a um poema, a um curto ensaio, a uma narrativa não quer dizer que se trate de mero desdobramento. Desdobramento até há, mas pode se dar num sentido divergente, desviante e inaugural.
Citar, como epígrafe ou não, se reveste assim de um duplo fito: por um lado, é um modo de homenagear o texto alheio, mas, por outro lado, necessita passar pela prova de fogo da diferença. Meu texto só pode afirmar sua própria assinatura se for dotado de uma singularidade em relação aos outros que cito direta ou indiretamente. Sejam textos literários, filmes, canções ou obras de artes plásticas, existe essa prova de fogo do singular, que é diferente da originalidade romântica. A originalidade supõe uma criação ex nihilo, do nada. Já a singularidade inventiva supõe um diálogo profícuo com a alteridade, que se torna um ponto de partida para outras aventuras e desventuras. Digo também desventuras porque o resultado é sempre incerto. Se coloco uma frase de alguém com o peso de um Proust como epígrafe de um texto meu, o risco é ser esmagado por essa voz todo-poderosa. Mas é um risco delicioso e lúdico, vale muito a pena tentar, sem temor nem tremor.
Ana Chiara – De que modo em seus livros está implicada a questão da “bioescrita” com a teatralidade e/ou a dramatização?
Prefiro, de fato, esse quase neologismo que você refere, bioescrita ou bioficção, ao de autoficção. O problema é que a autoficção se banalizou. Quando tive contato com o termo, em 1997, numa palestra da franco-canadense Régine Robin, quase ninguém o conhecia no Brasil. Desde então, por intuição ou por contato direto com o que se fazia e faz na França, por exemplo, a autoficção se tornou um modismo por aqui. Virou uma forma bastante redutora de projetar suas fantasias narcísicas no plano da literatura, descambando muitas vezes para um realismo pouco inventivo. Ora, quando li e pesquisei acerca do tema, o que me fascinou de imediato foi a possibilidade justamente de teatralizar a vivência imediata, mas sem realismo anódino. Teatralizar significava assumir diversas máscaras, supostamente falando na primeira pessoa, mas performando diversas outras. Essa inspiração veio em grande parte de Nietzsche, que não cessou de se reinventar ao longo de seus escritos, especialmente no Ecce homo. Mas veio também de Montaigne, cujos Ensaios justamente fornecem a epígrafe do Retrato desnatural (“Pois é a mim mesmo que pinto”), de Pessoa, de Kaváfis e de Proust, entre outros.
Em nenhum desses escritores homens, nem tampouco nas mulheres que me fascinaram, como Lispector, Duras e Ana C., a relação com a própria vida é desprovida de invenção. Para isso, basta ler as magníficas crônicas claricianas de A descoberta do mundo, ou O amante, de Duras, ou ainda vários textos de Ana Cristina Cesar na novíssima edição da Companhia das Letras. São escritas do eu, mas que se afirmam em tensão com a alteridade, com o desconhecido. Motivo pelo qual a autoficção para mim nunca deveria se tornar mais um gênero, como é o gênero bastante clássico da autobiografia.
Como a imagino, e até certo ponto pratico, a autoficção é somente um dispositivo, que posso articular em alguns de meus textos, ou em certas passagens, sem reduzir tudo a um imenso EU, como muitos fazem hoje. Digo em algum lugar do Retrato desnatural que o EU é apenas uma ficção: alguém já encontrou um EU, por assim dizer, em pessoa? Eu não!!! O EU é apenas uma das máscaras que inventamos para evitar o esfacelamento dessa identidade perfeita com que sonhamos… Acredito que cada indivíduo é portador de diversos EUS, que vão se revezando em vários tempos e lugares, até o fim. Como cantarola um personagem de Almodóvar, “teatro, tudo no mundo é teatro”.
E isso é o que se pode chamar também de bioficção ou de bioescrita: a escrita de uma vida como reinvenção. No dizer radical de Cecília Meireles, que amo citar e recitar, “a vida só é possível reinventada”. É, portanto, para tornar minha vida possível que escrevo, de outro modo ela seria impossível: “eu” me suicidaria ou morreria de tédio, o que dá no mesmo. O que salvou Baudelaire do tédio foi ter escrito amplamente sobre o spleen, senão acabaria envenenado pela própria melancolia.
Bioescrita é reescrita do eu como Outro, do eu outrado (Pessoa). Isso é o que nomeei num ensaio como alterficção, para rasurar a autoficção: ficção do eu como outro e não como mesmo egoico. A arquifamosa frase de Rimbaud é incisiva e sem apelo: eu é outro, ponto final. Eu é, e não “eu sou”. Eu é: terceira pessoa do singular. Para se atingir a singularidade cabe passar pela prova do outro, do desconhecido, do abismo (Clarice em “Os desastres de Sofia” e em A paixão segundo G.H.). A diferença entre essa teatralização do eu e o teatro como instituição é que a primeira não tem roteiro, é feita de improvisos e instantâneos.
Quando nos damos conta, a peça está para acabar e não fizemos nem metade do desejado… A solução é reescrever a vida para compensar essa impossibilidade que é ter uma vida plenamente satisfatória, com começo, meio e fim bem amarrados. Basta ver como morreu o mais do que consagrado Drummond: achando-se insuficiente, no limite da impotência, e com toda razão. Como diz Clarice em algum lugar, salvo engano em A hora da estrela, que cito propositalmente de memória, morrer não me basta. Viver tampouco é bastante, sequer suficiente (Raduan Nassar). Me sinto sempre aquém de tudo – deve ser por isso que não paro de escrever, publicando apenas uma parte do que faço. Bioescrita: questão de vida e morte. Nada mais contemporâneo e, ao mesmo tempo, intempestivo.
Ana Chiara – No panorama da cultura, considerando o grande público leitor: entre o jornalismo e a história, qual o papel do romance na atualidade?
Essa é uma pergunta gigantesca que não tenho como responder em sua totalidade. Vou tentar trazer um pouco para o lado das coisas que escrevo, esboçando uma curta resposta, decerto insuficiente. Um de meus escritos inéditos, o livro de poemas Camuflagens, tem como epígrafe geral uma frase do Ulysses, de Joyce: “A história, disse Stephen, é um pesadelo do qual estou tentando despertar” (é uma tradução minha, certamente tosca, para: “History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake”). Penso que a história é, de fato, um grande pesadelo e minhas Camuflagens estão cheias deles: o sofrimento dos palestinos, o horror da guerra em geral, a tentativa malsucedida das manifestações em diversos países, o homicídio, o dolo, os conflitos de toda ordem, o sonho desesperado de uma vida melhor para os exilados, e por aí vai. Mas um romance, em vez de ser mero jornalismo, ou seja, registro realista dos fatos, precisa ser um reinventor da história, sob pena de virar simples documento. Uysses, como tantos outros romances da alta modernidade, é uma reinvenção da história como tentativa (provavelmente vã) de acordar do pesadelo. Tal é também o lance de Grande sertão: veredas, de Rosa, e de A maçã no escuro, de Clarice, duas tentativas precárias de sair do labirinto.
Sonho em escrever um romance. Mas sempre me indago qual ou como seria “meu” romance. Pois não existe uma fórmula para o gênero. Cada grande obra romanesca, sobretudo a partir do século XIX, na Europa e no resto do mundo, reinventa seu próprio gênero. Só não age assim quem se baseia em receita para o sucesso, em geral com resultado medíocre mas potencialmente muito vendável. Na quarta capa do Retrato desnatural vem sugerido que se trata de “romance”. Luiz Ruffato, reconhecidamente um de nossos melhores romancistas atuais, levou a sugestão a sério e considerou, com efeito, o volume como romance. Não tenho como explicar isso em poucas palavras. Só posso defender que existe ali a vida algo romanceada de um indivíduo, que se oferece em fragmentos ou, melhor, em pedaços. Bem lidos, esses pedaços textuais configuram uma trajetória não linear e bastante acidentada, porém é uma verdadeira trajetória ficcional. Chamo isso de “romance”, ou esboço de.
Agora, tenho o projeto de escrever um romance “de verdade”, e já tomei inúmeras notas nesse sentido. Mas continuo me indagando o que seria isto: um romance “de verdade”? Um romance naturalista, realista, jornalístico ou autoficcional em sentido atualmente convencional? Como não encontro resposta satisfatória, vou escrevendo pedaços que, espero, um dia se juntem num todo mais ou menos harmonioso, que poderei nomear com mais exatidão como romance. Não sei que rosto terá, nem se terá algum, mas a aposta se faz por meio desse sonho acordado que é a ficção literária. Só ela pode nos livrar, ao menos em parte, do pesadelo da política, da guerra sórdida, do latrocínio, do terrorismo de Estado e do terrorismo de facções assassinas. A literatura tem a seu favor a capacidade infinita de inventar uma política dos afetos. É assim que leio (ou costumava ler) os romances fabulosos de Machado, sobretudo o Memorial de Aires: um testamento literário acerca da impossibilidade de fazer um “verdadeiro” romance. Essa ficção são as memórias afetivas de um senil, numa situação limítrofe, com um pé do outro lado.
Acredito muito, portanto, nesse romance por vir. Quando e se chegará, não tenho como prever. Só resta tatear ao acaso, traçando no escuro por enquanto minhas memórias de cego…
Antonio Cicero – Penso que a crítica ainda não deu ao seu livro Retrato desnatural a importância que ele merece. Passando – e bem – por todos os gêneros, ele, numa espécie de Aufhebung hegeliana, ao mesmo tempo os incorpora e transcende. Como é possível, depois disso, escrever algo além de um Retrato desnatural II?
Agradeço imensamente pela generosidade de seu comentário. É sempre muito complicado para um autor explicar por que um livro não recebeu a atenção que talvez – e enfatizo esse talvez – ele mereça. Não me interessa de fato o sucesso, disso a literatura atual está cheia, mas sim a leitura atenciosa da parte de leitores especializados e não especializados.
Nesse sentido, não creio que tenha havido propriamente fracasso, nem sua pergunta sugere isso, aliás. Alguns leitores cuja opinião tenho na mais alta estima, a começar por você, leram e apreciaram o livro com grande esmero. Uma de nossas maiores críticas, Leyla Perrone-Moisés, fez amplas referências ao Retrato desnatural num artigo em que tratou do que chama de “literatura exigente”. Um leitor bastante arguto das Minas Gerais, Flávio Boaventura, escreveu um ensaio de primeiríssima hora, que incluiu em seu livro A máscara inquieta, publicado pela 7Letras. Além disso, saíram duas excelentes resenhas na imprensa: uma de Carla Rodrigues, para o “Prosa & Verso”, do Globo, e outra de Italo Moriconi, que foi matéria de capa do caderno “Ideias”, no extinto Jornal do Brasil. O Retrato também é objeto do grupo de pesquisa sobre autores contemporâneos coordenado por Evelina Hoisel, na UFBA. Do mesmo modo, uma pesquisadora da UFES, Fabíola Padilha, escreveu um denso artigo sobre os aspectos autobiográficos do volume. Outro mineiro, excelente ensaísta e poeta, Rodrigo Guimarães, escreveu igualmente um estudo. Por fim, um jovem pesquisador radicado em Paris, Daniel Rodrigues, também realizou uma intervenção em evento internacional, discutindo aspectos do livro. Já dos leitores não universitários, recebi diversos comentários bastante alentadores, por e-mail ou pessoalmente. Notei que, por vezes, o leitor menos instrumentado descobre certas nuanças do texto que escapam ao scholar, e vice-versa. Por isso mesmo, não abro mão de nenhum dos dois, prezando muito a ambos.
Alguns colegas escritores também fizeram comentários muito encorajadores, como Armando Freitas Filho e Luiz Ruffato. Não me interessam o elogio gratuito ou sua contrapartida, o ataque infundado. Me importam realmente as respostas interessadas e interessantes, com a sensibilidade e a inteligência que cada um a seu modo pode investir na obra em questão. Razão pela qual mantenho grandes esperanças acerca de leituras vindouras.
Sabemos o quanto a história da literatura é instável em termos de reconhecimento. Autores consagradíssimos em sua época praticamente desaparecem quando morrem. Tal é o caso de Anatole France na França e de Coelho Neto no Brasil. Pode ser que em algum momento esses escritores sejam reabilitados, mas faz mais de um século que são pouco citados, nem talvez sejam reeditados. E o contrário também acontece: autores que em sua época não foram lidos reaparecem com toda plenitude nos séculos seguintes. Creio que a verdadeira força de Shakespeare só se expande inteiramente a partir do século XVIII, quando se tornará um escritor de escritores, uma referência incontornável na dramaturgia e na poesia. Ele foi autor popular em sua época, mas o prestígio universal da obra veio depois, daí até hoje se conhecer pouco de sua biografia.
Não estou me comparando a nenhum desses autores, seria absurdo! Mas os indiquei apenas como sintoma do que costuma acontecer nos sistemas literários formal e informalmente. Nenhum livro, nenhum autor jamais pode ter certeza da validade e da permanência de seu reconhecimento, embora muitos atravessem séculos e cheguem até nós. Drummond tinha grande consciência desse problema e não se deixava envaidecer pelos louvores que lhe eram tecidos. Assim sendo, para nós, autores de hoje, é preciso relaxar quanto a maiores ansiedades e investir o máximo na qualidade da escrita. Se aquilo que fazemos tiver valor, alguém há de reconhecer. Se não, paciência, a história também está cheia de talentos abortados… Como diz Armando Freitas Filho, citando lindamente Clarice em epígrafe, o importante é cumprir o doloroso mas também prazeroso Dever até o fim. Essa é a tarefa de quem escreve, em qualquer tempo.
Como escritor, considero pessoalmente Retrato desnatural até agora o ápice do que desejei – e desejo – fazer em literatura. Trata-se de um livro que se deu todas as liberdades, formais e temáticas. Nele investi tudo o que para mim conta na literatura: a narrativa, a ficção, a poesia, o ensaio, o diálogo com as artes plásticas, com o cinema, com as novas tecnologias etc. Dei a sorte de encontrar uma pessoa dadivosa como Luciana Villas-Boas, responsável editorial da Record na época, hoje minha agente literária, que aceitou bancar um livro pouco comercial. Apesar disso, o volume vendeu relativamente bem. Eduardo Coelho, então editor da Língua Geral, também gostou bastante dos originais, mas disse que a editora não poderia bancar um volume dessa extensão.
Resisti muito à tentação de fazer um Retrato desnatural II, e acho que fiz bem, pois isso seria cair numa fórmula. Não dá para repetir o gesto de liberdade sem cair no clichê de si mesmo, a pior coisa que pode acontecer a um autor. Intuitivamente, passei a escrever outras coisas, que nem de longe são o oposto do Retrato, mas que buscam, sim, outras configurações. Quero sempre experimentar temas e formas que ainda não desenvolvi de todo. Sou um apaixonado pelo experimentalismo em artes, tenho uma dívida enorme para com as vanguardas do século XX e para com os movimentos precursores do século XIX, como o impressionismo e o pós-impressionismo.
Mas não me considero um vanguardista, isso seria ridículo hoje: ter a pretensão de estar na dianteira de tudo! Aliás, você mesmo já escreveu excelentes artigos sobre o assunto. O que me interessa é experimentar, tendo a impressão – espero verdadeira – de que cada livro inventa seu próprio gênero e sua própria forma, ao mesmo tempo em que preserva alguns traços que suponho sejam meus e que alguns leitores já reconhecem. Escrever um romance faz parte de minha trajetória por vir, assim também o desejo. Diante desse tipo de intenção, me vejo sempre desarmado, começando quase que do nada. No fundo, vou sempre buscar meus interlocutores preferenciais no passado, mas também no presente, ainda que à revelia de alguns deles…
Antonio Cicero – Evando, como editor da Coleção Contemporânea, da Civilização Brasileira, você me encomendou o livro Poesia e filosofia, publicado em 2012. Assim, você sabe como é que percebo a relação entre essas duas atividades espirituais. Agora gostaria de saber o que você, que, como eu, pratica tanto filosofia quanto poesia, pensa sobre isso.
Seu livro se tornou uma grande referência sobre esse assunto. Com efeito, essa é também uma temática que atravessa as coisas que escrevo, e decerto constitui um dos motivos de nosso diálogo permanente. Tentei teorizar isso em diversos ensaios, tais como Derrida e a literatura e Clarice Lispector: uma literatura pensante. Também intento pôr em prática algumas dessas reflexões em meus escritos estritamente literários, mas sem cair em “aplicação” de conceitos. De modo que é difícil dar uma resposta concisa sobre esse aspecto que comparece praticamente em todos os meus textos, embora muitas vezes de forma disfarçada.
Não me considero um filósofo, nem tenho tal pretensão, por “n” motivos impossíveis de resumir. Todavia, desde adolescente, sempre me interessei por filosofia. Mas acho bom não ter feito essa opção na época do vestibular, escolhendo Letras. Mesmo assim, desde o início dos anos 90, quando fui à França e me tornei aluno de Sarah Kofman, na Sorbonne, e de Jacques Derrida, na E.H.E.S.S., tenho lido sistematicamente tanto autores da tradição, como Platão, Kant e Hegel, quanto filósofos modernos e contemporâneos, como Heidegger, Benjamin, Deleuze e principalmente Derrida. É uma leitura bem particular, com uma curiosidade específica por temas que me fascinam desde sempre: a relação entre vida e morte, a interseção complexa e ineludível entre o empírico e o transcendental, a grande questão da verdade, a relação homem/animal, o racionalismo etc.
Quando escrevo o que se chama de texto literário, não tenho dúvida de que essas questões aparecem, muitas vezes voluntariamente. Mas procuro a todo custo, e torço para que seja com algum sucesso, não fazer literatura filosófica, que considero uma chatice. A literatura não precisa imitar a filosofia para ser potente, ela tem seus próprios instrumentos e sua própria história. Não creio em absoluto que sejam campos rivais, mas antes vicinais, que se recobrem ao longo da história ocidental dos mais diversos modos. Falo do Ocidente porque, por bem ou por mal, é a única cultura a que tive acesso mais direto, pois infelizmente meu contato com as culturas indígenas e de origem africana já foi bastante mediado. Para mim, a literatura ou, melhor, alguns textos literários elaboram uma forma de pensamento que pode ser tão ou mais relevante do que os textos da tradição filosófica. É isso o que chamo de literatura pensante, que não é um rótulo classificatório, porém um modo de ler determinados textos para ver como neles se elabora um tipo de pensamento bastante diferencial. Foi o que procurei fazer em meu ensaio sobre Clarice.
Além disso, lembro que diversos escritores dialogaram explicitamente com a filosofia, sem de modo algum se reduzirem a simulacros de filósofos. Goethe, Mann e Machado, entre outros, não tiveram nenhum temor em citar e comentar textos da tradição dita metafísica, muitas vezes de forma irônica. Basta aqui referir o arquifamoso “humanitismo” de Machado.
Antonio Cicero – Você acredita em Deus?
Essa é uma questão vastíssima e que também faz parte de nossa “conversa infinita”, para citar um livro de Maurice Blanchot de que gosto muito. Vou tentar responder como leigo, a única posição nessa matéria em que me sinto competente. Não penso que o importante seja ainda “acreditar ou não acreditar em Deus”, e por isso percebo certa ironia no modo como você colocou a questão. Penso que essa indagação pertence à órbita da teologia, saber que entrou em declínio com o final da Idade Média e chegou ao século XIX totalmente desacreditado, depois da grande revolução das Luzes. Não sou um homem de fé, nem de não fé, então para mim essa temática, colocada assim, já está ultrapassada, exceto para os que professam algum tipo de religião. Nisso eu enquadraria o ateísmo e o agnosticismo. Ambos são rótulos que já encontram sua situação bastante definida na história do teologismo.
Haveria, portanto, três modos básicos de valorizar Deus ainda hoje: em primeiro lugar, o teísmo ou o fideísmo, que são os modos de compromisso direto com Deus, como o nome já diz, por fidelidade e fé. Em segundo lugar, o ateísmo, uma religião que não ousa dizer seu nome, mas que mal o disfarça: a-teu é o que nega Deus (a-theos), mas a negativa o prende infinitamente à divindade, e ele acaba sendo um crente eterno por vias negativas. Por fim, o agnosticismo igualmente ainda faz parte do campo das doutrinas teológicas, tendo sido inventado como movimento pelo positivista Thomas Huxley: a-gnóstico tem o mesmo defeito de ateu, apenas nega o adjetivo “gnóstico” (sábio ou conhecedor de assuntos metafísicos), declarando-se “ignorante”. Em ambos os casos, a privação ou a negação indicadas pelo “a” mantêm um vínculo permanente com o nome que negam. Epistemologicamente pouca coisa muda.
Ora, sinto-me nessa perspectiva um legítimo herdeiro das Luzes e considero que o nome de Deus já fez mal o suficiente à história da humanidade. É preciso simplesmente abandoná-lo à própria sorte e à dos que o veneram: teístas, ateus e agnósticos. Sou também um leitor assíduo de Nietzsche, embora não subscreva tudo o que ele diz. Aliás, não subscrevo a totalidade do pensamento de nenhum filósofo, pois todos merecem algum tipo de questionamento. Mas Nietzsche escreveu o essencial sobre a figura de Deus: Assim falou Zaratustra, Gaia ciência, Ecce Homo e O anticristo são maravilhosas paródias, dramas cômicos, em que se encena a morte de Deus. Enfatizo esse aspecto teatral. Ao contrário dos que tentam reinserir Nietzsche na tradição teológica, a graça e a comicidade de seus textos estão em não levar nem o Deus do monoteísmo nem os deuses politeístas a sério. Zombou deles a maior parte do tempo, mostrou como eram máscaras culturais e assim os tratou e destratou. Mesmo Apolo e Dioniso, que ele amava, eram figurações culturais e não entidades transcendentes, verdadeiras anedotas. Esse era e continua sendo o teatro filosófico nietzschiano como o interpreto: tratar as religiões como mitologias, descreditando-as como artigo ou matéria de fé. Os valores de Nietzsche eram bem outros e estavam mais próximos das artes, como desenvolveu Rosa Dias num belo livro sobre o assunto, também para a Coleção Contemporânea.
Aí o horizonte epistemológico muda completamente: não estamos mais, agora no século XXI, no campo das questões teológicas, que perderam a validade há mais de dois séculos. Estamos, sim, no campo das novas Luzes, das Luzes de hoje, que são uma combinação complexa de razão, inteligência, sensibilidade, intuição e muita pesquisa. Nesse sentido, as religiões me interessam bastante, mas apenas enquanto mitologias e como assunto de investigação intelectual.
Assim, defendo apaixonadamente que tudo deve ser investido para compreender como surgiu a ideia de deuses na humanidade, em seguida a noção inicialmente egípcia do Deus único, que se transformou no monoteísmo dos povos semíticos. Como ocorreram as guerras de religião, o poder destrutivo dos dogmas, os diversos fanatismos, os fundamentalismos atuais etc. etc. A tarefa é imensa e ela deve ser abordada numa perspectiva multidisciplinar: história, filosofia, antropologia, sociologia, etnologia, economia, política, literatura, artes e assim por diante. A teologia pode até dar alguma contribuição, desde que abra mão dos dogmas que sempre a regeram, algo quase impossível.
Em suma, o Deus dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos (será realmente o mesmo para todos esses fiéis?), por exemplo, só me interessa como personagem mitológico, e me sentiria espantado ao ter que minimamente acreditar ou desacreditar na existência real dessa grande e terrível fábula. Seria tão estranho quanto se me indagassem se acredito em Zeus, Hermes, Atenas ou qualquer outro personagem do panteão olímpico – daí a ironia a que me referi, diante de tamanho anacronismo. Os gregos do século IV a.C. ainda acreditavam nessas entidades, mas isso faz muito tempo… Já Heráclito dizia, um século antes, que o que existe não foi criado nem por divindade, nem por homem algum. Ele conseguiu antecipar em dois milênios e meio o declínio do teocentrismo e do antropocentrismo humanista, ambos movimentos altamente dogmáticos!
Você mesmo já escreveu, com grande liberdade, belíssimos poemas a partir da Torre de Babel e de alguns mitos greco-latinos. Há também inúmeras referências mitológicas no que faço, em geral de forma bem-humorada e desconstrutora. Adoro brincar com os mitos para desmistificá-los e desmitificá-los igualmente. Se consigo, não sei, mas é uma brincadeira que muito me apraz.
Inclusive um dos motivos para responder um tanto longamente a sua pergunta bastante provocativa e até mesmo aporética é que o tema religioso faz parte de um livro que acabou de sair pela Editora Globo (Selo Biblioteca Azul), os Cantos profanos, em que falo da necessidade de simplesmente esquecer Deus, para retirá-lo da cena, apagando-o um dia em definitivo da memória dos homens. Estes rirão muito, daqui a algumas décadas, quando alguém lhes lembrar que um dia seus ancestrais, quer dizer, alguns de nós hoje, ainda davam importância às divindades. Nesse dia, o contexto cultural será tão diferente que mesmo a palavra “laico” não fará mais sentido, pois terá perdido o outro elemento com que fazia par… Não vejo isso como utopia, mas como sonho bastante real.
É preciso urgentemente libertar a humanidade e o planeta como um todo da ideia tenebrosa do Deus totalitário. Para tanto, cabe traçar o quanto antes a genealogia plural do fenômeno religioso. Enquanto isso não ocorre, o direito ao culto mítico deve ser preservado como assunto privado, reduzindo-se a um mínimo a visibilidade pública dos símbolos religiosos. Isso porque a maioria das religiões tem caráter proselitista, e para os fundamentalistas o deus deles não só é melhor do que o dos outros, mas também, por isso mesmo, autoriza a matar. Essa possibilidade está inscrita tanto no Velho Testamento quanto no Alcorão. No ano passado, vi um documentário na TV a cabo em que jovens israelenses justificavam o assassinato de palestinos dizendo que a Bíblia é que os ordenava a fazer isso. Esse é o mesmo argumento dos fundamentalistas islâmicos. É claro que a maior parte dos judeus não pensa assim, tampouco os muçulmanos esclarecidos. O mesmo se aplica aos atuais evangélicos no Brasil e em outros países.
Entretanto, a facção fundamentalista de qualquer religião pratica atrocidades em nome do Senhor absoluto. Religião é matéria de grande perigo para os humanos em geral, e em nome da salvação eterna muitos homicídios continuam sendo cometidos. Motivo pelo qual cabe elaborar uma legislação bastante refinada sobre os limites do culto às divindades, quaisquer que sejam suas origens, como um direito importante mas do qual não se deve abusar. Proibir a visibilidade simbólica apenas é inócuo. Seria preciso também uma grande campanha de esclarecimento e educação cultural – mas quantos governos, hoje, estão dispostos a realizá-la? Para piorar tudo, acaba de emergir no teatro do mundo essa nova entidade tenebrosa chamada “Estado Islâmico”, com pretensões nazifascistas.
Por fim, compararia as religiões às drogas e aos fármacos em geral. Há aqueles que sabem fazer bom uso dos medicamentos e psicotrópicos, em prol de seu bem-estar e do alheio. Porém, há muitos outros que utilizam as drogas para se autodestruírem, levando junto, se possível, uma grande quantidade de pessoas. A devoção religiosa pode sem dúvida trazer benefícios, desde que bem dosada e controlada publicamente pelo Estado.
Godofredo de Oliveira Neto – O conto que fecha a segunda parte de Cantos do mundo (2011) tem como epígrafe uma frase em que Hélio Oiticica propõe literalmente: “Experimentar o experimental” (p. 139). Seria esta sua divisa, como ficcionista? Como e por que produzir literatura experimental numa época em que o mercado, a mídia e mesmo parte do meio acadêmico privilegiam outros critérios em suas escolhas?
Se é uma divisa, não sei, mas foi uma frase que me marcou muito e que é sem dúvida uma das linhas de força de minha atividade como ficcionista e como ensaísta. Ensaio e ficção se aproximam desde logo porque ambos são formas de experimento, de tentativas-e-erros, de uma pesquisa incessante que constitui provavelmente meu estar no mundo. Li recentemente uma entrevista do artista plástico norte-americano Richard Serra em que ele sublinha esses dois aspectos: sua relação com a escultura é um modo de elaborar suas experiências pessoais e, por isso mesmo, ele realiza uma investigação constante. É por essa razão que amo a palavra francesa recherche que significa busca e pesquisa, ou seja, vida e obra entrelaçadas, algo como vidobra, se o termo soa bem…
Retomo aqui parte de uma das respostas que dei a Antonio Cicero. A frase de Hélio Oiticica pode ser lida de inúmeros modos. Minimamente, creio que essa foi a forma que ele encontrou de evitar cair na armadilha da repetição inócua, ou seja, achar que descobriu uma fórmula de experimentar a linguagem artística e se acomodar. Sabemos que H. O. nunca estacionou, buscando até o fim novos modos de invenção, num estado inventivo permanente, que era sua própria vida. Não por acaso são as artes plásticas que mais me inspiram atualmente. Ao contrário da literatura, que, de um modo geral, mas nem sempre, tem se afeiçoado nos últimos tempos a uma linguagem comum que beira o banal, as artes plásticas se empenham cada vez mais em levar sua própria linguagem ao limite. Isso acontece na escultura, na pintura, nas instalações, no vídeo, nas performances e em todo tipo de intervenção urbana. Frequentemente essas linguagens se misturam, gerando um híbrido difícil de definir a partir de conceitos tradicionais.
É claro que Damien Hirst e Jeff Koons realizam coisas comparáveis a verdadeiras mercadorias, os ateliês deles se parecem mais com linhas de montagem do que com laboratórios de invenção. Têm também muitos seguidores, apenas com menos talento, pseudoartistas que vivem de puro marketing, fazendo pose de rebelde – uma mediocridade que pode render milhões. Mas há inúmeros artistas de fato inventivos e que mexem emocional e intelectualmente comigo: Cildo Meireles, Ernesto Neto, Carlito Carvalhosa, para citar alguns brasileiros, Antony Gormley, Gerhard Richter, além do próprio Richard Serra, entre outros.
O mesmo ocorre com o cinema. Já assisti a todo tipo de filme, de blockbusters a películas bastante experimentais, mas estas últimas realmente me inspiram a tentar fazer algo parecido na narrativa. Agora mesmo tenho escrito narrativas que provavelmente configurarão meus Cantos terceiros, fechando uma trilogia improvisada ao longo do percurso, mas que talvez receba outro título. Há duas semanas assisti a um filme, a seu modo, experimental, Oslo, 31 de agosto, do diretor norueguês Joachim Trier, parente distante do dinamarquês Lars Von Trier, mas com uma técnica cinematográfica bem distinta deste. Quando voltei para casa, não consegui parar de pensar naquela história e em alguns recursos que o diretor agenciou para elaborar uma narrativa que, no fundo, tem uma historinha relativamente simples de um jovem envolvido com drogas etc. Isso bastou para que se esboçassem duas histórias utilizando algumas das técnicas do filme e mesmo alguns de seus temas, embora com uma abordagem bastante diferenciada. Provavelmente se algum espectador que tenha visto o filme ler uma dessas narrativas, não reconhecerá a relação de gênese, pois minhas cópias são quase sempre transformadoras, até porque as linguagens são bem diferentes.
Não sei se vou colocar esses textos na nova coletânea, escrevo muito mais do que publico, mas eles estão dentro daquilo que chamo de meu pró-jeto: as coisas que, de modo às vezes irrefletido, vou lançando para frente, mais adiante, sem medir as consequências e sem fazer ideia de aonde vão dar. Será que esses livros que tenho lançado algum dia conquistarão o mercado? Não sei, tentar responder a isso me paralisaria. Só sei que não me interessa nem um pouco fazer outra coisa. Quiçá um dia ocorra reconhecimento efetivo. Se não ocorrer, paciência. Como diz um personagem de Beckett, eu tentei…
Por outro lado, como já disse, foi uma agradável surpresa perceber que meus dois livros ficcionais obtiveram um retorno tanto por parte do leitor comum, não especializado, quanto por parte de, digamos, profissionais da escrita. Teria vários exemplos, vou dar apenas um. Poucos meses depois de ter publicado Retrato desnatural, recebi o e-mail de um leitor do interior de São Paulo, dizendo que tinha lido e relido o volume, gostado muito e que doaria a uma biblioteca, assim como costuma fazer com os livros que julga importantes. Era uma mensagem muito bem escrita, mas sem nenhum jargão acadêmico, espontânea como costumam ser as declarações dos indivíduos que amam a leitura pelo prazer e pela curiosidade. Aliás, acho que a grande divisa de toda literatura deveria ser mesmo esta, como queria o poeta latino Cícero: para deleitar (antes de tudo), para comover (sempre), para educar (dos mais diversos modos). Sem um desses três elementos, a ficção, a poesia, a biografia e o ensaio ficam uma coisa desenxabida, anódina. De alguma forma, meu leitor paulista obteve prazer, emoção e depreendeu algo de útil em meus escritos, sem necessariamente dispor de instrumentos especializados. Recebi diversos outros testemunhos semelhantes.
Quanto à crítica universitária, já mencionei que mais de um pesquisador colocou livros meus em seus projetos e alguns textos foram publicados. Em ambos os casos, felizmente não tenho nenhum controle sobre o que o outro e a outra pensam a respeito de minhas ficções. Procuro acolher as leituras como elas vêm, ouvindo atentamente o que me dizem e agradecendo sempre como uma dádiva. A leitura é decerto o porvir da literatura, mas nenhum escritor pode prever o que acontecerá daqui a alguns anos com suas obras. E isso é um bem, pois representa um desafio para não se acomodar e continuar experimentando. Gostaria de ter muitos leitores, sinto horror pelo elitismo. Mas sinto igual horror pelo populismo: fazer literatura apenas para agradar ao mercado e a um tipo de leitor que adora consumir o já visto. Me indago sobre o que restará de tudo quanto se publica e badala hoje em dia – talvez muito pouco. Mas ninguém está mesmo apto a prever o futuro, tanto mais que a experiência do tempo se acelerou incontrolavelmente.
Em contraponto ao que acabei de dizer, pelo menos dois autores que li depois de publicar meus primeiros livros me fizeram ver que, também em literatura, o experimental está vivo: os já citados Sebald e Coetzee. Deste li recentemente o Diário de um ano ruim, que tem sido tomado como um dos parâmetros da literatura contemporânea de qualidade, e me agradou muitíssimo. É um texto dividido em três faixas, na mesma página: na parte de cima, encontra-se uma série de pequenos ensaios sobre questões atuais; na parte do meio, a voz narrativa do escritor que fala de suas relações com a digitalizadora dos ensaios; e na parte inferior, o rodapé, a voz feminina da digitalizadora (avatar da antiga datilógrafa) dá sua versão dos fatos. Eis um relato altamente experimental, feito por um escritor em plena atividade, que muito me encantou. Sebald fez igualmente uma literatura bastante ensaística, acompanhada de imagens que não são meras ilustrações. Desde Retrato desnatural, quando ainda não o havia lido, desejo associar imagens a meus textos, por razões editoriais ainda não pude fazê-lo, mas espero conseguir isso no próximo. Vou tentar.
Resumindo, “experimentar o experimental”, como penso, significa antes de tudo ver como se pode inventar hoje sem simplesmente repetir o legado das vanguardas. E sem tampouco cair nas armadilhas do mercado. Não desprezo o mercado, isso seria ingênuo, mas creio que a relação deve ser sempre crítica e desconfiada, sob o risco de trituração pela máquina. Há inúmeros casos desse engodo, me dispenso de citá-los, pois se tornaram quase uma norma. Ressalto, contudo, que também aprecio a literatura convencional, o poema clássico metrificado, o romance realista bem construído, a peça com começo, meio e fim. Só que vou procurar isso no século XIX ou antes, momentos áureos desse tipo de literatura. Hoje me interessa o que me desafia e inquieta, como o filme extraordinário O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, e a cinematografia em curso de Eryk Rocha. O cinema experimental contemporâneo é, com efeito, muito estimulante e o busco no circuito ou nos festivais.
Godofredo de Oliveira Neto – No conto “O dia em que Walter Benjamin daria aulas na USP”, você atribui ao personagem inventado a partir do pensador alemão a seguinte afirmativa: “Contudo, se um dia dominar o idioma, não sei se será possível filosofar em português, nunca ouvi falar em filósofo brasileiro” (p. 162). Passadas mais de seis décadas da datação da carta em que se encontra, a frase parece manter toda a atualidade. Ao mesmo tempo, suas narrativas são de uma densidade tal que o vinculam à linhagem de escritores inaugurada por Machado de Assis e integrada por nomes como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, cujos escritos temperam a ficção com uma boa dose de filosofia. A seu ver, a filosofia brasileira ainda surpreenderá o mundo, ou continuará limitada a essa aparição diluída, promovida por diletantes no regaço das artes? Seja qual for o prognóstico, o que significa para você tirar partido do enlace entre criação e reflexão?
Eis uma questão bastante espinhosa. Existe uma tradição filosófica brasileira. Aliás, é até uma das subáreas de estudo definidas pelo CNPq. Todavia, é fato que não tivemos até hoje nenhum filósofo, assim definido, com capacidade de influenciar e formar leitores a partir de um pensamento original. (Vicente Ferreira da Silva pode vir a constituir uma exceção, mas para isso é preciso que seja mais lido e divulgado. Um pensamento só se afirma plenamente a partir de sua recepção.) Menos ainda conseguiram nossos filósofos atravessar a fronteira, para serem traduzidos e apreciados lá fora. Temos, sim, uma grande tradição de professores, tradutores e leitores altamente especializados de filosofia. Mas esse é um problema do próprio sistema filosófico: pouquíssimos países, além dos notoriamente ligados à tradição metafísica, conseguiram afirmar uma voz própria em filosofia. Fora do grego, do latim, do francês, do alemão e, mais recentemente, do inglês, raríssimos são os casos de interesse internacional por filosofia em outros idiomas. Mesmo Agamben certamente é mais lido nas traduções francesas e inglesas, ou para outros idiomas, do que no original. Creio até que poucos leitores lembram que ele é italiano… Esse é portanto um problema geral da filosofia, que sempre foi irradiada no Ocidente a partir de algumas culturas hegemônicas. Torço para que no século XXI isso mude, mas ainda não há sinais claros nesse sentido, embora a investigação filosófica esteja tomando caminhos surpreendentes.
Em contrapartida, temos uma exuberante tradição sociológica e antropológica. Normalmente são pensadores que se voltaram para ler e comentar aspectos da cultura e da sociedade brasileiras no diálogo com outras culturas e sociedades. O mesmo ocorre com a crítica e a história literárias. Quanto aos escritores, decerto os que você cita dialogam com a filosofia. Mas me interessa neles sobretudo a formulação de um pensamento vinculado à própria literatura. Não creio que a literatura, quando pensa, esteja necessariamente retomando ou desenvolvendo temas da filosofia. Desde as origens gregas e mesmo desde as origens não ocidentais da literatura, vem se desenvolvendo um tipo de pensamento ligado à poesia, ao ensaio inventivo, ao teatro, ao romance. Veja Sófocles, Shakespeare ou Nelson Rodrigues. Os três são pensadores fundamentais que nada devem em princípio à filosofia, pois levam a uma experiência de pensamento que pode ser tão intensa quanto um comentário de Platão ou de Kant, porém com meios bem diversos.
O que me encanta na literatura é a densidade, ou seja, a capacidade de reverberar novas experiências no leitor, sem que se separe forma de conteúdo. Essas experiências são de toda ordem: intelectuais, emocionais, amplamente sensoriais. Em literatura, o pensamento nunca é meramente abstrato, pois se faz no cruzamento com diversos componentes bastante concretos. Diria que, nesses autores, a filosofia é apenas um dos elementos, uma linha de força entre outras. Talvez seja isso o que quis dizer quando inventei a referida expressão uma literatura pensante, que serve apenas para designar uma prática: a prática da reflexão em literatura e as experiências que suscita. O pensamento é um efeito que pode ou não ocorrer como resultado da interação, a maior parte das vezes fortuita, entre leitor e texto. Pensamento é uma relação inaugural com a alteridade, um acontecimento singular engendrado pelo desconhecido e que nos melhores casos atinge provocativamente o leitor.
Mas gostaria de chamar a atenção para um aspecto pouco apontado até agora por meus leitores. Apenas um sinalizou isso, o pesquisador Eduardo Losso. Trata-se de meu gosto pela cultura pop, que ajuda a nuançar um pouco minhas relações com a filosofia, sem que haja contradição alguma. Até aqui foi enfatizada minha relação com a chamada alta cultura, expressão cheia de equívocos, pois toda forma cultural relevante para mim é alta, o que não quer dizer que todas sejam iguais. Diferentemente, penso que o interesse disso que se chama de cultura reside na topografia, na alternância entre mais e menos alto, até atingir o verdadeiramente baixo, que pode ser também outra forma de chegar ao ápice…
Pois quero falar também de minha relação com matéria menos nobre, ao menos em aparência. Como disse no início, respondendo a Karl Erik, havia todo tipo de publicação para leitura lá em casa durante minha infância. Mas houve um que me acompanhou durante anos, até o final da adolescência. Tal material foram, primeiro, as histórias em quadrinhos, depois os desenhos animados da TV e do cinema. A primeira coisa que consegui ler foi um almanaque da Disney, e essa arte refinada fez intensamente parte de meu imaginário infantil. Li bastante também as fábulas dos irmãos Grimm, cuja coleção meu pai adquiriu quando eu era pequeno, bem como os contos de Perrault, alguns na versão integral, outros na versão adaptada e em geral mais adocicada. Mas os personagens de Disney tiveram forte presença em minha infância. Não apenas Tio Patinhas, Mickey e Donald, mas também as histórias que ele adaptou para o cinema: entre muitas outras, as de Peter Pan, Bambi, A Bela Adormecida, Alice no País das Maravilhas, além dessa obra-prima da cinematografia mundial que é Fantasia, saudado por Mário de Andrade como um filme luminoso. Já na puberdade me fascinavam sobretudo Super-Homem, Batman e um personagem hoje não por acaso desaparecido, o Fantasma. Quando enveredei em definitivo pela literatura adulta, sentia certa culpa por ainda gostar, em plena adolescência, de histórias em quadrinhos e de desenhos animados. Até que conheci a pop art de Lichtenstein e Warhol e me dei conta de que aquele material da cultura de massa poderia ser reutilizado magnificamente noutro plano cultural, sem culpas.
Hoje, Warhol é um dos artistas que mais admiro, exatamente por sua ousadia e capacidade de jogar infinitamente com as hierarquias culturais. Não é fortuito que minhas primeiras formas de expressão foram o poema, o romance e as histórias em quadrinhos, tudo inicialmente misturado no mesmo plano afetivo e intelectual. Ainda hoje, quando tenho tempo (raramente) gosto de ver um bom desenho na TV, sobretudo os de minha infância, como Pica-Pau, a Pantera Cor de Rosa e Tom & Jerry. Quando isso ocorre, me divirto feito a criança que outrora fui. Uma revistinha bem infantil da Abril, que creio existir ainda hoje mas num formato menor, chamada Recreio, possibilitava que se armasse em papel o chamado Mundo de Recreio. Para mim, era uma forma de materializar em muitas cores aquilo que a literatura me daria toda a vida: um universo de fantasias sem fim, boas e más.
Jamais quero perder esse gosto do menino pela cultura de massa, daí que, a despeito de sentir um prazer incomparável em ouvir música erudita e de vanguarda, nunca deixei de cultuar artistas pop como Michael Jackson e Madonna, além, claro, dos roqueiros clássicos, sobretudo a tríade espetacular: Beatles, Dylan e Stones. Ouço igualmente grupos contemporâneos, como Placebo, The Killers e Radiohead. Combino tudo isso em algumas histórias, com citações explícitas ou implícitas de trechos de canções bem populares, algumas de Lupicínio, outras de Caymmi, Cartola, Gil e outros. Não dou exemplos, porque isso se encontra em muitas das coisas que publiquei, e não estou aqui para dar o mapa de minha ficção (risos). A tropicália apenas reforçou esse aspecto: duas das trilhas sonoras de minha infância foram “Superbacana” e “Alegria, alegria”, ambas de Caetano – mais alta cultura pop, impossível. Deixo apenas uma pista: o conto “O último show” foi claramente inspirado na trajetória de superstars do showbiz. Ainda no capítulo das confluências musicais, ouço bastante os experimentais agora clássicos: Stockhausen, Schönberg, Cage e Boulez, entre outros.
Godofredo de Oliveira Neto – A terceira parte de Cantos do mundo se faz de histórias ambientadas em diferentes latitudes, que, no entanto, não recebem descrição detalhada e têm seus poucos dados bastante subjetivados. Quem quisesse entender esse movimento poderia lembrar que você é um desterrado que viveu em várias cidades e viaja bastante, que produz em plena globalização e que tem muita consciência literária, daí limar de sua prosa qualquer traço de naturalismo. Mas pensar assim talvez seja burocratizar a abordagem e perder de vista o desafio de escrever sem chão – sobre o qual pediria que falasse um pouco.
Creio que seu comentário já traz uma excelente constatação: sou, sim, um desterrado. Mas isso nada tem de negativo, pois não é vivido como doloroso exílio. Não me sinto preso a solo nenhum, embora adore morar no Rio de Janeiro, depois de ter trabalhado e vivido em outras metrópoles ou cidades de médio e pequeno porte. Nasci num vilarejo, que hoje é ainda uma pequena cidade no interior da Bahia, mas logo aos oito anos viajei de férias com a família ao Rio. Quando criança, meu pai era comerciante, e assim muito cedo me vi pegando o avião em Itabuna ou Ilhéus para ir a Salvador, acompanhando-o junto com meu irmão. Meu pai detestava viajar sozinho e minha mãe não ia por ter pavor de avião. De modo que ainda muito novo tive contato com meios diferentes daquele onde nasci e percebi logo que meu lugar jamais seria apenas ali. Antes mesmo de qualquer viagem, lembro de ter visto umas fotografias de São Paulo que muito me impressionaram. Havia um vasto mundo por descobrir e assim que pude fui em busca dele.
O primeiro grande deslocamento ocorreu aos catorze anos, quando fui morar com os irmãos em Salvador para estudar. Residi durante oito anos na capital baiana, onde concluí a graduação. Percebi então que precisava ampliar os horizontes, ter novas experiências culturais e existenciais. Lembro de ter parado de fazer literatura naquele momento por achar que precisava de mais experiência urbana para me tornar o escritor que pretendia ser. Por ter nascido na região do cacau, tinha medo de cair na tradição amadina que todavia amo. Era o receio de virar um regionalista… Receio infundado porque meus interesses sempre foram outros, sem nenhum aprisionamento à terra, à região. Hoje até sinto por vezes o desejo de escrever alguma história com temática rural, talvez um dia o faça, a meu modo, é claro.
Na primeira metade dos anos 80, vim fazer mestrado na PUC com intenções de voltar. Depois da PUC, comecei o doutorado na UFRJ, o que me permitiu viajar para a França com uma bolsa-sanduíche. Nunca tive a pretensão de ficar apenas um ano, como era previsto inicialmente no programa da bolsa. Fiquei dois anos como bolsista em Paris e mais três anos como professor em Grenoble. Isso rasgou em definitivo as limitações de meu horizonte de partida. Precisaria de muita escrita para dar conta das experiências de toda ordem por que passei e passo ainda a cada vez que me desloco no Brasil e em outros países.
Recentemente, fiz uma viagem por seis cidades da Holanda, motivado por uma busca de Van Gogh. Fui nas pegadas dele ou de seu espectro. Talvez um dia o torne personagem de minha ficção, mas de qualquer modo tenho me inspirado bastante em suas telas e em seus escritos. Van Gogh era um artista conceitual avant la lettre, suas cartas e até um sermão (tentou a carreira de pastor protestante, mas felizmente não deu certo) são hoje considerados como parte integrante de sua obra, no mesmo nível que as maravilhosas telas. Tinha uma lucidez inacreditável a respeito de sua inserção na história da pintura, era um crítico e um teórico de primeira linha. Era também um grande viajante, para sua época: passou por mais de uma cidade holandesa, viveu em Antuérpia, Bruxelas, Londres, Paris, Arles, Saint-Rémy. Além do holandês, falava e escrevia em inglês e francês. Era um eterno caipira, com seu chapéu de palha, mas profundamente desenraizado, à solta no mundo. Um matuto cosmopolita.
Em todas as histórias de Cantos do mundo que se passam em outros lugares, o narrador está pouco preocupado com a cor local, mas sim com certos traços culturais que servem para ele desenvolver sua imaginação e capacidade reflexiva. Em sua maioria, são lugares que visitei, com exceção da Cordilheira dos Andes no ponto em que se dá o acidente de avião de “E se comêssemos o piloto?” Conheci apenas a parte urbana da cordilheira, a cidade de Bogotá. Importam muito mais as experiências que vivenciei em vários sentidos do que a descrição naturalista da paisagem. Descrições minuciosas já foram feitas maravilhosamente no século XIX pelos realistas e pelos naturalistas – por que repetir isso no século XXI?! Estou mais interessado no trânsito, na passagem e no movimento dos personagens do que nos fatos em si, mas estes também certamente contam. O que busco realizar são instantâneos colhidos de passagem, que talvez deem um aspecto um tanto esquálido a meus personagens, com pouca carne e muito reflexo. Foi algo semelhante que disse a respeito de meus Cantos profanos, recém publicados, o designer Daniel Trench, responsável pela capa. Ele comparou meus personagens ao perfil alongado das figuras de Giacometti. Sublinhou ainda que essa falta de contornos definidos talvez seja nossa, quer dizer, dos humanos ou dos viventes em geral. Não sei se a comparação é justa, mas sinto que ao menos tem a ver: me vejo figurativamente esquálido, quase descarnado, e devo projetar isso nas personas que invento. Nunca encontrei Trench pessoalmente, mas o escolhi como capista por ter conhecido seu belíssimo trabalho na revista Serrote, entre outras publicações. No fundo, sou extremamente pobre, mas tento fazer algo de interessante com essa pobreza que vejo em mim e no mundo.
Não gosto da palavra globalização, muito ligada ao desenvolvimento tardio do capitalismo. Prefiro planetarização, termo mais neutro, que sinaliza o processo irrefreável de trânsito entre culturas, muitas vezes pacificamente, porém outras vezes com grandes conflitos. Os inúmeros migrantes por motivos de guerra são a face mais sombria desse movimento planetário ininterrupto.
Observaria ainda que é difícil determinar o momento e o modo como a ideia de um livro se faz. No caso de Cantos do mundo mas também dos outros, a coisa ocorreu de modo aleatório, com o acúmulo de textos esparsos, que depois configuraram um volume ficcional. Isso deve estar relacionado ao que no Retrato chamava de mundivisão. Essa era minha maneira de desfocar a antiga metáfora da visão de mundo, a Weltanschauung dos alemães. O que sempre me incomodou nessa expressão é a ideia de que um escritor, um artista, tenha uma única visão de mundo. Não creio nisso, mesmo uma obra tomada isoladamente pode ter diversas visões de mundo. Uma única visão de mundo suporia uma ideologia subjacente à obra, mas isso só ocorre, a meu ver, na arte panfletária, de direita ou de esquerda.
As artes complexas se fazem por divisões, multiplicidades formais, que implicam outras tantas concepções de mundo. Mundivisão significa que o mundo em si já está dividido, inelutavelmente – o mundo em que vivemos é um campo de forças em tensão permanente e conciliações parciais. Ao artista cabe redobrar essa divisão do mundo, mas não para intensificar os conflitos. Bem ao contrário, para nos ajudar a conviver melhor com essas diferenças e esses diferendos. A literatura e a arte em sentido forte não se fecham nunca numa visão de mundo, abrindo-se mais e mais a novas visões, com o aporte essencial de seus leitores. Mundivisão é sobretudo o modo como o leitor verá o texto, de múltiplas maneiras, sob vários prismas. Sonho sempre em realizar uma obra cada vez mais prismática, irredutível a qualquer ideologia, a qualquer concepção estrita do que seja o mundo. Estou indo ao encontro do que desconheço de olhos bem abertos, mas muitas vezes tateando no escuro. Mundivisão é também a impossível visão de um cego, aquele que tem a visão necessariamente dividida, bloqueada, interrompida. Um cego tangendo um alaúde ou, para atualizar a imagem, um cego dedilhando um teclado…
Antes de concluir, um último comentário. Esta entrevista saiu bem mais longa do que a encomenda, mas isso se deveu sem dúvida alguma à generosidade dos entrevistadores, que acionaram em mim teclas insuspeitas. Não deve ser levada muito a sério, não passa de ficção.
*Entrevista publicada originalmente em http://www.forumdeliteratura.com.br/