Qorpus entrevista o poeta, ensaísta e tradutor Claudio Willer

 Qorpus entrevista o poeta, ensaísta e tradutor Claudio Willer

 

Q. Você poderia falar sobre o surrealismo na América Latina?
W.Especialista e estudioso sistemático do assunto, autor de levantamentos e publicações importantes, é Floriano Martins. Observaria duas situações diferentes, do Brasil e dos países americanos de língua espanhola em geral. Isso, lembrando que países de língua francesa também compõem a América Latina: neles, tivemos os surrealistas caribenhos, principalmente Aimé Césaire, Magloire Saint’Aude e René Depestre. Nos países da América de língua espanhola – ou predominantemente espanhola, posto que o Paraguai é bilíngüe e a Bolívia trilíngue – tivemos, em quase todos, grandes autores surrealistas, em poesia e outros modos de expressão. Isso, desde a Argentina – com poetas extraordinários como Aldo Pellegrini e Enrique Molina, além daqueles que se relacionaram com surrealismo, como Oliverio Girondo e Alejandra Pizarnik, mais os simpatizantes declarados, como Julio Cortázar – até o México, onde a presença de Octavio Paz, importante não só como poeta mas como pensador do surrealismo, não deve encobrir outros autores e manifestações. Em alguns desses países, a exemplo do Chile e Peru, a presença surrealista foi mais forte. Há, ainda, grandes autores que, não sendo surrealistas, e até antagonizando-o, apresentam evidentes pontos de contato, a começar por Vicente Huidobro.

Q. No Brasil, por que o movimento não foi tão intenso quanto em outros países latino-americanos, como o Peru, por exemplo? Quais são os brasileiros surrealistas mais “ilustres”?
W.Há várias explicações para essa presença reduzida, tão minoritária, do surrealismo no Brasil. Observou-se o peso do catolicismo, ou de um tipo de nacionalismo algo restritivo. Valentim Faccioli, por exemplo, associa o recalque do surrealismo à adesão de modernistas ao projeto getulista. Sergio Lima entende que houve surrealismo, porém subterrâneo, mal divulgado e insuficientemente estudado – mas acho que exagera em seus elencos de surrealistas brasileiros. Da minha parte, observo que as vanguardas hispano-americanas mantiveram relação de continuidade com o simbolismo, que chamaram de “modernismo”, assim como o surrealismo francês. Aqui, nossos modernistas obliteraram o riquíssimo simbolismo brasileiro, e essa continuidade nãos e estabeleceu. Também já observei, para usar uma linguagem direta, caretice em Mário de Andrade e outros expoentes, através da imposição de limites à criação (“loucura, não!”, proclamou Mário). Há um vezo cartesiano em poetas de enorme influência, como João Cabral, além do cerebralismo formalista, dos concretos, contendores diretos do surrealismo, e afins. Nacional-populistas tampouco apreciavam, achavam obscuro demais.
Meu critério, conforme exposto em artigos a respeito – o mais recente é https://www.academia.edu/6541702/Surrealismo_no_Brasil_poesia_e_critica_literaria – , consiste em localizar ligações efetivas com surrealismo: adesão, identificação com uma atitude ou visão de mundo surrealista. Sob esse critério, apontaria, em um primeiro momento, Murilo Mendes e Flávio de Carvalho (arquiteto e artista plástico mas incluo a dramaturgia e manifestações dele no campo da poesia). Temos Manoel de Barros, um belo poeta sobre quem já escrevi. E o extraordinário prosador Campos de Carvalho (prosa poética, a meu ver): ambos declararam afinidade. Surrealismo intensifica-se a partir dos anos de 1960: principalmente o beat-surreal Roberto Piva, Sergio Lima, Raul Fiker, Leila Ferraz, evidentemente eu (virei tópico de surrealismo no Brasil na história da literatura de Carlos Nejar, gostei). E Afonso Henriques Neto, bem como, mais recentemente, Floriano Martins. Nada disso é surrealismo tardio: há sincronia com relação a atividades e manifestações em Portugal e outros países, e precede um surrealismo dos Estados Unidos que se constituiu como movimento em 1973; esse, entre outros exemplos. Interessante como temos bastante autores novos com uma dicção surrealista, ou, alguns, beat-surreal, além de um grupo ativo desde 2001, o Decollage. Enfim, tardio ou não, o surrealismo prossegue.

Q. Aqui, em Santa Catarina, tempos a obra do Péricles Prade. Como você a avalia?
W. A obra de Péricles Prade, enorme, impressiona pela qualidade e consistência, mas sem repetir-se, sempre acrescentando algo. Sua tônica é a imagem poética feita de aproximações de termos distintos. Mas ele marcou sua distância do surrealismo, observando que sua escrita é pensada, resultado da reflexão, e não automática, espontânea – embora eu ache que isso não seja decisivo, pois nem todo surrealismo é escrita automática.
Q. A sua própria poesia dialoga com a estética surrealista? Poderia falar um pouco sobre os seus poemas mais surrealistas? (Teria um poema para enviar para o jornal?)
W. Estou catalogado como surrealista brasileiro e aprecio essa catalogação. Minha poesia é de imagens, criada no modo espontâneo – tenho poemas que são automáticos, outros coletivos ou espontâneos. E um intertexto surreal. Além do que escrevi a respeito, dos meus ensaios. Se o critério é afinidade com atitude, poética e visão de mundo, então eu sou.
5. Como o surrealismo europeu dialogou com as poéticas ameríndias?
Mais que dialogar, maravilhou-se. Como é precisa esta observação do surrealista português Mario Cesariny: “ O surrealismo é de hoje, mas inactual, tão inactual como um índio o pode ser”. Um dos documentos, a Anthologie des mythes, légendes et contes populaires d’Amérique de Benjamin Péret, que, inclusive, esteve duas vezes no Brasil; a segunda, para coletar material adicional para essa antologia. Breton escreveu sobre os Hopi em poemas e em Arcano 17. Artaud foi aos Taraumara. Já comentei haver levado relatos de índios como Couro dos Espíritos (SENAC e Terceiro Nome, 2001), registro de narrativas dos preparado por Betty Mindlin e colaboradores Gavião Ikolem da Rondônia a cursos de surrealismo e oficinas para mostrar como é relato não-discursivo.