Um teatro para não ser visto: diferentes formas de trabalhar com o público que nâo vê.Três entrevistas – Carolina Volpi

UM TEATRO PARA NÃO SER VISTO: DIFERENTES FORMAS DE TRABALHAR COM O PÚBLICO QUE NÃO VÊ.

Três entrevistas: 1. Tania Garcia; 2. Paula Wenke e 3. Mariana Lessa

Carolina Volpi*

Este texto é um recorte da minha monografia contendo a ideia central da pesquisa a partir das entrevistas realizadas com a criadora do Teatro dos Sentidos Paula Wenke e a atriz Mariana Lessa durante a temporada da peça Feliz Ano Novo em Brasília. E a entrevista com a Presidente da Biblioteca Argentina para Ciegos Tania Garcia realizada em Buenos Aires.

Para integrar o deficiente visual no teatro é necessário pensar em formas de ajuda-lo a “ver” o que está acontecendo em cena, os diálogos ajudam neste entendimento. Entretanto há que considerar que uma peça não está somente baseada no diálogo e na movimentação do ator. O cenário, a luz, o figurino, a maquiagem interferem diretamente na compreensão da cena.

Para que o cego tenha acesso aos elementos visuais de um espetáculo é necessário que alguém descreva a cena, neste caso o recurso a ser utilizado é a áudio descrição, que ambienta o cego na história.

Outra opção é a peça onde a visão é suprimida, trabalhando com um texto adaptado com a estimulação dos sentidos remanescentes (paladar, olfato, tato e audição).  Assim através desses estímulos o público tem sensações que o auxiliam na compreensão da história, dando oportunidade de explorar sua criatividade. Além disso, o teatro que anula a visão dá ao vidente a oportunidade de explorar novas sensações invertendo o papel, incluindo quem enxerga no mundo do deficiente visual. 

Teatro Cego

1. Entrevista com Paula Wenke

Criadora e diretora do Teatro dos Sentidos, iniciou sua pesquisa em 1997 na Casa da Gávea no Rio de Janeiro.

Paula, você teve algum motivo especial que te levou a fazer peças para deficientes visuais?

Não. Apenas observei que o cego era o único que não entendia totalmente uma obra encenada. Naquela época, início das pesquisas em 1997 nem se falava em inclusão ou áudio descrição. Senti que ali havia um enorme campo a ser explorado. 

É importante existir um teatro para deficientes visuais? Por quê? 

É importante existir um teatro onde não se veja nada para que se possa imaginar. Para que o vendado saiba como é o universo do cego. A áudio descrição é muito fria e tira a plateia da emoção e perturba a narrativa. Sem ver podemos fazer mágica com os afores provocadores dos sentidos. A provocação tão intensa só é possível porque a plateia não vê o que os atores provocadores fazem a sua frente. Essa sensibilização desperta canais adormecidos nos vendados e dialoga com toda a extensão de possibilidades com o cego.

Você apresenta peças para deficientes visuais há muito tempo, em sua opinião ele consegue compreender tudo que é apresentado?

Sim, se ele prestar atenção compreende tudo porque fazemos adaptações no texto para isso.

 Houve algum caso em que precisou de explicação pós-espetáculo?

Já houve casos tanto de vendados quanto de cegos que algo lhes fugiu. Mas porque não estavam prestando total atenção. Da mesma forma que ocorre num teatro comum. Quem desvia o pensamento perde sempre alguma coisa. Mas tudo o que já nos foi dito que não foi compreendido checamos bem e vimos que era falta de atenção da plateia e não defeitos de nossa narrativa. 

Você acha que o deficiente visual gostaria de ir a uma peça não destinada para cegos?

Acho que sim. E ainda bem que existe a áudio descrição para algumas delas. Quanto mais recursos para a compreensão deles, melhor. Mesmo que não seja a ideal, como acredito ser o Teatro dos Sentidos. Eu o concebi para que fosse o formato ideal. 

Acredita ser possível que uma peça não adaptada consiga ser compreendida pelo deficiente?

Se esta peça for totalmente calcada no texto e se não tiver ações mudas, ou cenas onde se revela o subtexto através do olhar ou qualquer gestual. Se as vozes dos atores forem bem diferentes e se não houver um número grande de atores no elenco.  Ou seja, muito difícil existir um texto assim. Perder os olhares e gestos significa perder muito do subtexto, onde justamente o ator se revela.

Você acha que há uma diferença de compreensão entre uma pessoa com cegueira desde nascença e outra que adquiriu a deficiência ao decorrer da sua vida?

Não. Talvez a cega de nascença não tenha todas as referências. Mas pode compreender tudo sim. 

É importante para o deficiente ter contato com o teatro?

É importante para todos. 

Você acredita que a arte pode ser capaz de ajudar um deficiente visual que não aceita a sua condição e sente-se excluído perante a sociedade?

Sim. Montamos Pluft, o fantasminha. Uma peça que conta a história de um fantasminha que tinha medo de gente e por isso não ia ao mundo. Teve que enfrentar o medo para salvar a menina Maribel. Tivemos um depoimento de um recém-cego, policial que havia perdido a visão num tiroteio e não saía mais de casa. Depois do nosso espetáculo decidiu que iria enfrentar o mundo sem medo de ser visto como um diferente. 

Você tem contato há muito tempo com deficientes visuais, em algum momento algum deficiente sentiu-se descriminado pelo fato da peça priorizar o cego? Você detectou algo nesse sentido?

De maneira alguma. Ficaram felizes. Só houve um que não gostou de não ter que pagar o ingresso, mas explicamos que o Minc nos exigia esta contrapartida. 

Já pensou que ao invés de incluir o cego na sociedade realizando uma peça específica para ele, o efeito pode ser o contrário já que ele se relaciona com pessoas na mesma condição que ele?

De forma alguma. Não fazemos teatro especificamente para cegos, mas esse foi o nosso primeiro intuito. Fazemos teatro para ser visto da imaginação. O que fazemos é não excluir a pessoa que enxerga, cedendo-lhes a venda. O Teatro dos Sentidos é infinitamente mais embasado filosoficamente do que pode parecer. Minha atitude radical de diretora que venda uma plateia é para dizer que todos nós somos cegos para inúmeras coisas, sentimentos, sensações e pessoas que estão ao nosso redor. Depois do espetáculo o cego sai feliz porque entende e sente tudo e o vendado descobre uma enormidade de sensações adormecidas. Ativa sua memória visual e emotiva para criar imagens e situações dramáticas. É preciso lembrar que o texto sempre é de uma forte poética e reflexiva sobre esses assuntos da percepção ao que está ao nosso redor. Não trabalhamos apenas um formato de teatro, mas também temas correlacionados. E no meio de tudo isso ainda oferece comédia, ação e erotismo para manter a plateia inteiramente interessada e em nossas mãos sempre prontas para o afago.

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2. Entrevista com Mariana Lessa

Atriz Provocadora do Grupo Teatro dos Sentidos participou do elenco da peça Feliz Ano Novo durante a temporada em Brasília em 2012/2.

Como é trabalhar tão diretamente com o público?

É ótimo, pois o ator provocador é o que está em maior contato com o público, cada um de nós fica responsável por uma área e somos nós que vemos a reação do publico, como quando entregamos alguma coisa e eles não esperam, ou quando jogamos algo, ou quando se assustam com algum barulho, é interessante ver como eles reagem.

Você percebe que tem gente que entra completamente desconfortável com a venda, mas é algo inicial, quando você leva esta pessoa até seu lugar ela começa a entrar no clima, a brincar.

Claro que as reações são muito diferentes, tivemos vários casos interessantes de senhores que estão sérios, e você pensa que ele não está gostando. Hoje mesmo teve um senhor muito sério que não reagia muito, mas no final saiu com um sorriso e então você percebe que ele gostou.

Outro exemplo foi na hora da carícia, em que passamos a mão no rosto, teve um senhor que deitava a cabeça sobre a mão e eu continuava a passar a mão no rosto dele e de repente os outros atores se reuniram pra assistir ele. Isso é uma coisa que o teatro dos Sentidos tem, a plateia atua junto com a gente e todo espetáculo é um espetáculo novo. Tem plateia mais séria ou como a de hoje que interagia mais, dava mais risada. Você não viu, mas teve gente que levantou pra abraçar na hora do ano novo, que pegou um dos atores pra dançar no momento do carnaval. É assim que nós atores vemos como vocês se divertem e isso é muito importante. Tem pessoas que se emocionam muito, hoje na hora do violino uma senhora chorou muito, é uma parte linda onde a personagem se declara.

É muito divertido, porque hora você é ator hora você é plateia, há momentos em que você observa seus amigos atuarem. De repente acontece alguma coisa do outro lado da sala, e vamos pra lá participar do que esta acontecendo, e é assim, a gente se comunica visualmente fazendo o espetáculo de uma forma que não dá nem pra explicar.

Como é a preparação do ator? Vocês focam em alguma coisa em particular?

A preparação é diferente, é tudo muito detalhado porque as ações tem que ser pontuais para que o público consiga associar a ação com o que está sendo dito. Temos que ter muita rapidez porque se alguma ação passar da narração ela não cabe mais, fica fora de contexto.

Como é participar de uma peça que tem uma proposta tão diferente?

É muito bom para o ator provocador, porque há uma riqueza imensa em saber que você pode atuar de diversas formas, com gestos, emitir uma mensagem, entregando coisas. Além disso, a gente fala com a plateia o tempo todo, nós estamos mais próximos deles atuando, e não é só isso, há momentos em que passamos o bastão pra eles serem os atores, porque afinal a festa só acontece quando todos estão na festa. É muito interessante fazer peças onde não seja necessária a visão, porque o ator se preocupa o tempo todo em ser visto, em estar no palco e ser o foco e isso acaba mexendo muito com o seu ego. Até meus amigos que vieram assistir o espetáculo perguntaram: ”Mas cadê o teatro?”. E como você pode ver aqui não tem nada centralizado, nenhum palco, é uma sala com publico e atores espalhados.

Vocês se utilizam de alguma gravação?

Tudo é feito no momento, o violino e as canções. Apenas algumas músicas e efeitos sonoros são gravados.

A peça é só para deficientes visuais?

A peça é feita para todos, mas é muito interessante você ouvir o que os deficientes visuais acham, pois é feita principalmente para eles. Hoje o filho de uma das atrizes que é deficiente visual e assistiu à peça diversas vezes, me disse que era muito prazeroso participar de um evento cultural, já que não tem muitos eventos para os cegos, pois as exposições de pintura ou de objetos eles não podem tocar, e poder participar de algo que é feito e pensado pra eles é muito bom.

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3. Entrevista com Tania Garcia

Presidente da Biblioteca Argentina para Ciegos – BAC, deficiente visual, participou do Teatro Ciego como atriz e público. 

Como funcionam os espetáculos do Teatro Ciego? As peças são criadas com o intuito de favorecer o público cego?

O Teatro Ciego não é especificamente para cegos, é para todo tipo de público, mas com livre acesso ao público cego. Apesar do espetáculo não incluir a visão, isto não significa que tenhamos um público maior de cegos, pelo contrário, levando em conta a quantidade da população cega, e a falta de interesse dos mesmos.

Estes espetáculos são muito interessantes para o público em geral, já que são feitos na escuridão total, a medida que você entra na sala onde o espetáculo é realizado você já não enxerga nada. Você é guiado por uma pessoa que te indica onde sentar, e logo começa a apresentação teatral como qualquer outra, com algum argumento, e com efeitos que causam sensações no público. O ambiente é pequeno e tudo acontece bem próximo ao público que também é pequeno.

E como foi a sua experiência como público e como atriz?

Diverti-me muito como publico e sentia liberdade para me expressar como atriz.

No espetáculo que presenciei o público era distribuído em quatro fileiras formando um retângulo, deixando um espaço para o ator se locomover. Há alguns exemplos de elementos que utilizávamos para causar as sensações no publico. Por exemplo, pra fazer ruído de água o ator passava com uma bacia cheia de água e fazia barulho com as mãos, dando ao público a sensação de estar muito perto da água, como se estivesse aos seus pés ou ao seu lado, pois o público sentia a água respingando. Uma vez fizemos uma obra de um escritor argentino muito conhecido chamado Roberto Arlt, onde tinha uma cena em que chovia. Quando fizemos a apresentação usamos uns objetos para jogar água no público, dando a sensação de estar embaixo da chuva, do mesmo jeito quando estavam na floresta jogávamos folhas, e passávamos com gravetos de arvores fazendo ruídos, dando ao público a sensação de estar correndo.

Já em outros momentos eram colocados essências como, por exemplo, de pomelo (um tipo de laranja ácida) e objetos que ajudaram a ambientar uma floresta. Colocava-se uma trilha sonora com grilos e barulho de água, pois havia uma parte da peça em que os personagens saltavam em uma lagoa. Havia uma parte onde os personagens estavam em uma tempestade, então os atores passavam pela frente e por trás do publico mexendo em bacias cheias de água.

Acredito que eu contando isso não pareça tão interessante, mas pra quem assiste é realmente muito bom e uma experiência única. Muitas pessoas me diziam que tinham assistido ao espetáculo mais de cinco vezes e pediam pra que fizéssemos outras peças, pois já tinham decorado.

Eu fiquei cinco anos fazendo a peça e acabei saindo, pois houve uma briga no grupo e também porque acabei ficando entediada, além disso, havia um descuido do grupo todo já que estávamos com a peça há muito tempo e todos já “sabiam tudo”. Gostaria de ter feito outra peça.

Tem muita movimentação durante a peça, o corpo trabalha muito, além de você carregar elementos o tempo todo, tem que cuidar de não esbarrar com o outro ator e de não bater no publico, para que ele não saia deste “momento”.

Vou te contar um segredo que eles guardam como um tesouro, para poder movimentar-se no espaço sem bater no público ou em outro ator, são colocadas cordas que nos guiam pelo espaço, então com uma mão eu me guiava pela corda e com a outra segurava o elemento que estava carregando.

Nós trocávamos de sapato, para que o publico não perceba a movimentação ou para que notasse o caminhar e o correr, e antes que as luzes sejam acesas no final da peça, a sala tinha que estar vazia. O publico não podia ver nem os elementos nem as cordas. Demanda muito trabalho e muita organização, mas o resultado é muito bom.

O público é avisado que a peça será feita no escuro, mas a qualquer momento a pessoa pode sair se não se sentir confortável. Basta avisar, que o ator mais próximo guia a pessoa para a saída.

Como é sua relação com o teatro atualmente?

Eu vou ao teatro e gosto muito, assisto às peças não adaptadas e consigo compreende-las, já que percebo o trajeto do  ator do proscênio ao palco, sua movimentação, se olha para um lado ou outro, algumas posturas, ou o sentar e levantar . A não ser mímica que fica complicado, pois prescinde da palavra.

Em minha opinião todo teatro é apto para o cego, dependendo do cego, principalmente o teatro clássico, pois geralmente é permeado pela palavra, o que ajuda bastante.

Eu não gosto de teatro para cegos, gosto da ideia que o deficiente visual possa ir a uma peça visível como qualquer outra pessoa, pois o cego pode entender uma peça sim, só dificulta se for algo muito contemporâneo. E do ponto de vista comercial acredito que o teatro para cegos seria um fracasso, pois não há muito publico pra isso. Quem sabe ao invés de teatro para cegos não seria melhor teatro para não ser visto e que todos possam frequentar.

Na resposta anteriorvocê me disse que não gostava da expressão “teatro para cegos”, por quê?

Bom, vou tentar ser mais clara agora. Os dramaturgos teatrais não escrevem para pessoas cegas, o que fazem é para o público em geral. Quando os grandes dramaturgos criaram suas tragédias e suas comédias escreveram pensando no ser humano cego ou não cego.

Pode-se fazer teatro com áudio descrição para que as pessoas cegas saibam o que está acontecendo na cena onde não tem voz, descrever os gestos, a cenografia e o figurino.

Então, essa seria una peça teatral com adaptações, fazendo-a mais acessívelàs pessoas cegas.

Se falarmos de teatro para cegos, parece que é algo concebido exclusivamente para pessoas cegas. O que quero dizer é que não é a mesma coisa uma adaptação para pessoas cegas, do que uma criação exclusiva para pessoas cegas.

Admito que toda adaptação exija algo de criatividade, acredito que tem que distinguir claramente uma coisa da outra.

Você acha que é importante para o cego ter contato com o teatro?

Sim, acredito que o teatro como as demais artes é importante para todas as pessoas, e claro, também para a pessoa cega.

Você acredita que pode haver alguma diferença de entendimento entre uma pessoa que é cega desde que nasceu e outra que perdeu a visão ao decorrer da sua vida (já que ela tem una ideia de cores, formas, objetos, etc…)?

Eu acredito que a compreensão da realidade em cada um dos casos, depende da formação das experiências, da personalidade e do estado anímico da pessoa.

Em sua opinião, fazer um teatro específico para cegos pode em algum momento ser visto como uma forma de descriminação?

Gostaria primeiramente de esclarecer que o teatro ciego não é teatro para cegos. Chama-se assim porque as peças são feitas sem a luz, é um teatro para todo tipo de público. Acredito que não é necessário, que não vale a pena, que não é proveitoso fazer uma peça de teatro que seja só para pessoas cegas. Porque nós cegos podemos desfrutar do teatro convencional e em todo caso, pode-se melhorar a acessibilidade de uma peça para que as pessoas cegas percam o mínimo de detalhes.

 *Graduada em artes cênicas pela UFSC.