Entrevista com a dramaturga Theresia Walser sobre a peça “As Filhas de King Kong” — Maria Aparecida Barbosa

Entrevista com a dramaturga Theresia Walser sobre a peça “As Filhas de King Kong”

Maria Aparecida Barbosa*

Maria Aparecida Barbosa entrevista a dramaturga Theresia Walser  (Alemanha, 1967. Sim, é filha do escritor Martin Walser.) sobre a peça “As Filhas de King Kong” que gerou polêmicas na Alemanha devido à genial abordagem de certos tabus como decrepitude, eutanásia e cuidados com os idosos. A peça, que tem lugar num asilo de velhos, trata de três ousadas cuidadoras para as quais a morte de seus protegidos deve ser em meio a uma cena de glamour tal e qual se imagina a morte de estrelas de cinema.

Theresia Walser

MAB: Theresia, o que se pode esperar de um teatro cheio de necessidades fisiológicas pouco estéticas, que trata de compressas para pernas com trombose, dores de hemorróidas e calças molhadas de xixi e sujas de cocô?
Theresia Walser: Numa peça de teatro que se ocupa de uma casa de idosos é impossível passar ao largo sem explicitar coisas que fazem parte natural desse cotidiano. Afinal isso também faz parte de nossa realidade, embora tentemos tanto quanto possível negá-lo. Além disso, a peça é uma comédia, talvez uma comédia dolorosa, na qual, na melhor das hipóteses, se deve poder rir do espanto. O riso sobre o espanto certamente não diminui o espanto, mas com a risada por um momento a gente se liberta do constrangimento e do medo.

MAB: Já com os escritores românticos, por exemplo na peça “O Gato de Botas”, de Ludwig Tieck (1797), na qual se encena uma peça na peça, as personagens questionam o próprio teatro. Essa ironia é muito bem-sucedida em “Seis personagens em busca de um autor”, de Pirandello. Fala-se, nesse caso, de Metaliteratura ou Metateatro. O pesquisador Christoph Menke se pergunta como o teatro deve se preparar para outras práticas após o malogro das promessas estéticas. Ele parte do princípio de que “não seria necessário se tratar de um teatro pós, porém sobre esse malogro da interpretação no próprio teatro. (Metatheater, Metatragödie, 2005). Você poderia falar de semelhantes procedimentos que talvez tenha empregado em suas peças?
Theresia Walser: O teatro (autoreferencial) que se refere a si mesmo, nós podemos vivenciar já com Shakespeare, tal como em “Hamlet” ou “Sonho de uma noite de verão”. Nele, o teatro se envereda, digamos, à maneira cômica, encenando o teatro e pode assim também apresentar ao público a possibilidade de se atuar especialmente bem ou mal. Tem-se o jogo no jogo, que além de representar uma escala, é sobretudo uma “compreensão” do que está cifrado, e possui um aspecto cômico profundo.
Menke defende que a arte não pretenda se servir de reivindicações racionais de crítica social ou exigências utópicas. Mas ele defende que deve buscar as leis próprias inerentes a si e justamente, por isso, propiciar uma experiência sui generis, qual seja a de não ter de se justificar perante ou de servir a qualquer moral, utopia ou similar.
Arte, afirma Menke, precisa manter o status de soberania diante de exigências quaisquer que lhe sejam impostas de fora. No entanto, ao afirmar que a arte tem como tarefa tratar do próprio malogro, que diz respeito à reivindicação utópica da sociedade, então isso consiste, por sua vez, numa exigência de fora que se faz à arte. Por conseguinte, a afirmação de Menke é paradoxal. Ele não pode atribuir à arte uma exigência, se ele mesmo anteriormente diz que não se deve incumbi-la de tarefa alheia ao domínio estético.
Consideremos na peça “As Filhas de King Kong” a cena da morte da Sra. Tormann. É uma referência involuntária ao teatro no teatro, à necessidade das encenações como tais, assim como acontecem em outros contextos, e que configuram, no final das contas, a razão de ser do teatro.
Mas essa tematização do próprio teatro não se dá no sentido de um teatro cujos mecanismos se revelem e questionem a própria instância. (Friedrich) Dürrenmatt cunhou o conceito de “tragicomédia” e, com isso, ele sintetizou o que na verdade existe desde Shakespeare quando mesmo entre tragédia e comédia mal se pode distinguir, quando no subtítulo de um drama se lê tragédia ou comédia. Há muito tempo se tornou impossível conceber no palco a tragédia heróica segundo o modelo grego.
Em relação às minhas peças, inclusive a “As Filhas de King Kong”, eu diria que a comédia é o drama da comédia! Meus personagens não dispõem de uma alternativa irônica para sair da miséria. Isso é uma tragédia. Não lançam um olhar irônico sobre sua catástrofe. Também nesta peça elas se constroem através das afirmações contundentes, às vezes monstruosas. Que isso conduza ao grotesco ou ao emocional consiste na essência da matéria, porque tudo realmente monstruoso e sublime transcende o tangível, por consequencia, o representável. O furor dessa impossibilidade as minhas personagens agarram com a linguagem. Ou, dizendo de outro modo: na linguagem elas podem dar vazão à sua ânsia de afirmação contida na tensa relação declarada à própria condição miserável.

MAB: Sua peça será o tema de um seminário no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina. A escolha se deve, não por último, à menção das brasileiras que gostam de se embelezar! Aliás, a anedota nós admitimos autocríticas e com humor. Será que a partir dela poderíamos pressupor que você conhece um pouco a cultura brasileira?
Theresia Walser: Não, eu não poderia afirmar que conheço realmente a cultura brasileira. Em “As Filhas de King Kong”, as três personagens enfeitam-se como “brasileiras”, o que provém de uma pueril-inocente projeção de três cuidadoras de idosos. Semelhante à maneira como a Alemanha no exterior com frequência é reduzida aos superficiais clichês Oktoberfest e cerveja, as personagens têm em mente o carnaval carioca, ao qual associam imagens de divertimento e animação.

MAB: Não somente o lado realista é mostrado na peça. A fantasia surge com a ilusão da personagem Carla de se chamar Salão de Manicure Maria (Maria Nagelstudio), com a história contada por Meggie, sobre Ulla, e que serve de estímulo sexual ao Sr. Pott, e assim por diante. Você se considera uma dramaturga do Realismo? Algumas descrições de cenas – pensemos na história de Ulla com o sujeito esquisito – eu diria que tendem ao surreal. O que você acha?
Theresia Walser: Eu concordo. Algumas vezes as fantasias das personagens descambam ao surreal, o que em “As Filhas de King Kong” se explica por não serem somente as personagens velhas que se apresentam ligeiramente malucas, mas também os “jovens” com sua sede de viver.
Por outro lado, tudo no palco é do início ao fim estilização: a luz, o tempo, o lugar e, naturalmente, a linguagem. Significa dizer que o palco exige uma linguagem que no cinema soa completamente excessiva. Assim como no palco uma frase pode se perder irremediavelmente, no cinema a mesma se assentaria com perfeição. Justamente aquilo que pensamos ter ouvido tim-tim por tim-tim da realidade, surte em geral efeito insípido no teatro. Isso sucede porque a gente – eu sempre observo isso quando acompanho os estudantes em seus primeiros textos teatrais – tenta colocar a coisa em ordem e forçar os diálogos numa suposta lógica. Pergunta resposta, pergunta resposta domestica os diálogos, poupa à fala a “indefinitude” que ela, de fato, possui na vida. Com bastante frequência se confunde a linguagem do cotidiano com a linguagem da televisão, que no palco soa absolutamente sem vida. Sem contar que a realidade é, sem dúvida, no mais das vezes muito mais grotesca e surreal do que gostaríamos de admitir!
 
MAB: Voltemos, por favor, nossa atenção à textura. Uma observação lingüística: eu nunca tinha visto tantas expressões sinônimas para designar esse instrumento de tão grande utilidade: pinico, bacio, urinol, comadre (Dreckspfanne, Nachttopf, Pisspott, não necessariamente na ordem respectiva), sem falar em lago de urina (Pisslache) etc.. Do traquejo com esse jargão você se apropriou na formação profissional como enfermeira de idosos?
Theresia Walser: Durante certo tempo eu trabalhei numa casa de idosos. Lá naturalmente as pessoas procuram denominar as coisas de uma maneira mais prosaica do que a maneira como fiz na peça. Ao escrever, eu tive vontade de lidar com a linguagem de forma lúdica.

MAB: A textura é, além disso, muito rica em onomatopéias. A inventiva personagem Sr. Nübel é criativa entre outros com os sons dos instrumentos musicais, como flauta, violino e trombone. A equivalência mais bem-acabada entre caráter da personagem e vocabulário empregado nos diálogos tem seu ponto-alto na preferência de Meggie pela palavra “especialista” (Spezialistin) e de Rolfi por “gigante” (gigantisch). Você pesquisa a fundo essas construções ou elas resultam espontaneamente?
Theresia Walser: Em geral isso tem a ver com musicalidade. Eu escrevo, pode-se dizer, seguindo o ouvido. Ou seja, eu sempre leio meus textos em voz alta. Há, claro, umas personagens que trazem inerentes seu modo de falar. Quando escrevo, eu me sinto dependente de certa autonomia das figuras. Pois, afinal, cada uma delas tem seu drama particular, do qual muitas vezes eu nem tenho conhecimento. Ao trabalhar numa peça, as personagens na maioria das vezes se comportam com mais inconstância do que eu imaginara a princípio. De repente, meus planos se interceptam, se sublevam as idéias, e simplesmente caem por terra as intenções. Todas as figuras disputam ansiosas em se destacar plenas de vida, todas querem unanimemente: se apresentar e tanto quanto possível se manter em cena. E se tem de sair, então de um jeito que se impregne longamente na memória do público.

MAB: Um meio estratégico de incorporar o filho da Sra. Albert é a apresentação de sua voz, gravada numa fita cassete. O recurso, similar à teichoscopia, poupa inclusão de personagens adicionais. Funcionou, nesse caso?
Theresia Walser: A apresentação do filho, que acontece apenas por intermédio da voz gravada, aumenta principalmente a solidão na qual se encontra a mãe, e também o filho. Todos na peça “As Filhas de King Kong” agem, na verdade, como se fossem hermeticamente separados do restante do mundo. Essa voz do filho, triste e irradiada pelo gravador, também é isso de certo modo. Onde quer que o filho esteja vagando mundo afora, ele soa e parece infinitamente tão só quanto sua velha mãe, no recanto dos idosos. No palco, a personagem Sra. Tormann adquire algo perdido e tocante, na medida em que praticamente nada fala e somente carrega consigo a ridícula maquininha com a voz do filho.

MAB: As cuidadoras Berta, Carla e Meggie se mostram inicialmente desesperadas pela vida automatizada, pelas suas mãos que se movem autônomas, maquinais e apartadas da consciência, pela dureza de seu trabalho. No final, quando levamos em conta as alusões às mortes dos idosos como estrelas de Hollywood, vemos as filhas de King Kong com outro olhar, elas se tornam deusas com um imenso poder. Essa reação do público foi premeditada, como uma homenagem às pessoas que se ocupam dos velhos?
Theresia Walser: Na ocasião em que eu trabalhava como cuidadora, frequentemente lidei com idosos que no sentido bem literal da palavra não tinham a mínima condição. Estavam com o corpo inteiro ferido e suplicavam cheios de dor pela libertação do sofrimento. Alguns manifestavam o desejo de finalmente poder morrer. As cuidadoras dentro da peça “As Filhas de King Kong” não querem se entregar ao desconsolo e ao impasse de sua dura profissão. Que elas desempenhem um papel similar ao de anjos da morte, pode num primeiro instante parecer cruel, mas eu penso que elas têm um grande coração, talvez até grande demais.

MAB: Theresia Walser, muito obrigada por conceder a entrevista ao Jornal QORPUS.

Theresia Walser: Foi um prazer, lembranças ao Brasil.

* tradutora, ensaísta, professora da UFSC.