Entrevista com o multiartista Rodrigo de Haro – Raquel Wandelli

Entrevista com o multiartista Rodrigo de Haro

Raquel Wandelli* 

Esqueça-se a Teia.

Observe-se a aranha,

suas pernas concêntricas

de estrela. A vetustez

enorme da surda

aranha na parede.

 

Esqueça-se a vã

literatura que a per-

segue com patas

ligeiras. Traz muita

 

fortuna a filha

de Saturno.

(Rodrigo de Haro, “Inseto”, de Folias do Ornitorrinco)

Rodrigo de Haro

Aos 72 anos, Rodrigo Antônio de Haro trabalha com paixão e afinco entre a palavra e a imagem. Empoleirado desde cedo em um andaime de alumínio no atelier de sua casa na Lagoa da Conceição, o multiartista executa uma grande tela de quatro metros quadrados para o altar-mor de uma Igreja em Curitiba depois de ter entrado a madrugada revisando os originais de seus dois novos livros de poesia. E assim o artista sai do cavalete e volta para a escrivaninha, criando, criando… “Dizem que nunca o artista é inteiramente humano”, bem fala o próprio Rodrigo no poema Invenção do olfato”. O verso integra os dois volumes inéditos do conjunto “Poemas” que o artista lança pela Editora UFSC no dia 15 de março, às 20hs, no Espaço Cultural Coisas de Maria João, em Santo Antônio de Lisboa, ao lado da obra, Arcabouços 2007, de Pedro Garcia, em uma noite de festa para a arte e a literatura.

Espelho dos Melodramas e Folias do Ornitorrinco integram uma única embalagem que é como um presente desta fase de jorro criativo de Rodrigo. O autor tem mais cinco livros na gaveta. São obras manuscritas em folhas de papel amarelo onde desenha e lapida poemas, contos, novelas, ensaios, que vão compor cadernos ilustrados por gravuras, envoltos na beleza e raridade de um pergaminho. Além da compreensão cada vez mais plural e aberta da vida e da arte, os anos só deram mais urgência a esse monge da arte, consagrado além das fronteiras do estado e do país pela palavra, pela pintura e pela erudição. Com o “álbum duplo” de poesia, a Editora UFSC encerra um ano de grandes lançamentos e comemora o aniversário de 51 anos da universidade.

O menino artista de São Joaquim deixou a escola aos 16 anos para formar-se por conta própria aproveitando os estímulos dos pais, sempre mergulhados no mundo da sensibilidade e do conhecimento. Difícil encontrar uma expressão artística que ele não tenha experimentado: roteiro para cinema, novela, conto, poesia, aquarela, mosaico, pintura — até adaptações de literatura para rádio-novela ele fez. Integrante transgressor do grupo Litoral que atuou em Santa Catarina no final dos anos 50 e do grupo de poetas (Roberto Piva, Cláudio Viller, Antônio Fernandes Franceschi) que consolidou o surrealismo no Brasil a partir dos anos 60 e se confrontou com a Ditadura Militar. Como uma das maiores expressões contemporâneas da arte brasileira, na avaliação do Editor Sérgio Medeiros, seus poemas guardam uma musicalidade poética serena e trágica ao mesmo tempo: “Primeiro amar os dados,/tutores das moradas. Sempre/com malícia atirá-los/sobre a mesa sem ocupar-se/de outras faces – Onde vais?/ Agito o copo,/atiro as pedras./Tantos tactos sono- /rosos trato – dados por/vertigem lado a lado./Furtar sem felonia,/abrir última porta.” (Folias do Ornitorrinco)

Retornando eternamente ao lar e ao mistério sagrado da vida, o filho do pintor Martinho de Haro e de Maria Palma produz sua arte de uma concepção sempre transversal sobre os seres e as coisas. O maldito e o sublime, o sagrado e o profano compõem uma única dimensão do presente, que busca sua força ontológica na tradição. Nesse tempo anacrônico do poeta, a ousadia estética se alicerça no legado clássico. “Sim, abre as janelas, as janelas cegas./Deixa cair a chuva misturada ao vinho/sabático da Beladona. Espia. Ouve/os fatigados rios do mundo e saúda/Dona Urraca, a intrépida, girando/a chave do abismo”. (Espelhos do Melodrama).

Conforme rezam as escrituras sobre a cena bíblica, onde o apóstolo S. Pedro recebe de Cristo as chaves da Igreja, a mesma cena que inspirou artistas célebres como Velásquez: “…com estas chaves aquilo que ligares na Terra, será ligado nos céus; aquilo que desligares na Terra será desligado nos céus…”. Enquanto dá ao ramo de oliveira a última pincelada, Rodrigo fala sobre sua obra poética:

  1. 1.      Que motivações éticas e estéticas têm movido a sua poesia?

 

Rodrigo de Haro: Todo poeta almeja cativar a matéria, dominar, fazer cantar a energia adormecida nas coisas. Precipitar a metamorfose das coisas é missão do poeta, conferir asas ao inanimado. A poesia, disse Balthazar Gracian, consiste em preservar o espanto: – o caderno alado que voa…

 

  1. 2.      Como um multiartista, você desafia a manifestação mais recorrente entre os criadores, que é dominar bem apenas uma ou no máximo duas modalidades literárias e mesmo artística. E você transita pela poesia, conto, ensaio, novela e também por várias expressões visuais. Como é esse trânsito da literatura para as artes plásticas?

 

Rodrigo de Haro: Não acho que desafie. Acontece simplesmente que o mundo é um laboratório mágico, uma gruta de ressonâncias e apelos, onde se entremostram tentações e miragens. Nada é impossível para esta arte combinatória – a poesia – capaz de acordar (sim…) os mortos. Literatura, conto, ensaio e novela? É tudo poesia, se for de – fato coisa real.

Sim, sou também pintor – logo desenhista. Apenas pintor e desenhista.  Às vezes me aventuro no conto, é verdade. Tenho mesmo participado de algumas antologias até fora do País. O som, a palavra, começa na alma. Pois só a poesia é familiar do sagrado.

 

  1. 3.      Que autores têm mais inspirado sua obra poética?

 

Rodrigo de Haro:  Acima das divergências (só aparentes) está a unidade da inspiração e da busca. Na verdade ouso me aproximar de uma ilustre família, aquela de Michelangelo e Blake que se manifestaram no desenho e na pintura e na escrita e na pintura e tantos outros. A criação desconhece fidelidade partidária. O preconceito difuso (que de fato existe) contra a multiplicidade é uma inovação recente, desconhecida na China e no Japão, por exemplo. Utamaro sentia-se tanto poeta quanto aquarelista. E gostaria de reconhecer minha dívida com Rilke e o poeta expressionista alemão Georg Trackl e o grande de la Cruz.

 

  1. 4.      O sagrado sempre esteve presente na sua pintura e na sua obra literária, mas você também é normalmente discutido em relação aos poetas malditos. Como você vê essa relação entre o sagrado e o profano – ou maldito – no seu trabalho poético?

 

Rodrigo de Haro:  Malditos? Quem são? Maldito é título de nobreza, é ser politicamente incorreto? É possível. No mundo midiático, mecânico, em que vivemos é uma grande honra: Dante, Villon, os místicos, foram malditos também em seus dias, não é verdade?

 

  1. 5.      O mito, o sagrado, o inumano, a tradição, a memória… De certa forma esses elementos são sempre recorrentes na sua poesia… Você acredita que eles ainda ajudam a compreender o mundo hoje?

 

Rodrigo de Haro:  A verdadeira poesia aproxima-se demais do ominoso para não provocar arrepios em alguns momentos. “Aqueles que levantam o véu….”. O sagrado, que nos ultrapassa está na essência da ordenação poética. Meu trabalho é aquilo que é. Sou apenas o servidor de uma força maior que, de um modo ou de outro, com esforço e trabalho tento dominar, ordenar, logo que sou tomado por esta visitação dos espaços exteriores ao pragmatismo. A pulsação do sangue, a respiração e a dança são parte integrante das forças ativas da memória e da nostalgia operante. A poesia solicita liturgia, algo que o surrealismo intuiu (e também explorou) com bastante inteligência. Breton-Hudini, por exemplo, foi um agente muito perspicaz…

 

  1. 6.      E sua obra poética e pictórica é também sempre classificada ao lado do grupo de poetas surrealistas, com quem de fato você escreveu uma trajetória. Você se identifica com esse rótulo?

 

Rodrigo de Haro: Sou irredutível a grupos, exceto socialmente. As escolas são sempre provisórias e o surrealismo me parece como estética ter perdido a inocência: Frida Kahlo, por exemplo, riu-se do movimento quando em Paris. Sua realidade, o seu entorno, o México coberto de caveiras de Jaguar em obsidiana, colocou o surrealismo dentro de medidas bastante discretas. O fantástico de Buñuel é sempre maior quando ele se afasta do surrealismo. Viridiana, Nazarin, Los olvidados. Mas… naturalmente agrada-me o discurso surrealista.

 

  1. 7.      O mito, o sagrado, o inumano, a tradição, a memória… Esses elementos estão sempre gerando sua poesia e sendo gerados por ela… Você acredita que essas dimensões clássicas ainda ajudam a compreender a vida no mundo em que vivemos?

 

Rodrigo de Haro: Sim, uma certa tradição hermética me fecunda. Acredito que os valores do sagrado e só eles poderão salvar o mundo. Este mundo em que vivemos.  É preciso reencantar o mundo através do apelo ao silêncio e também a outros ritmos compatíveis com a expansão do ser. O ético e o social devem expandir-se sem coerção, sem decretos, mas segundo o desabrochar da consciência de cada homem: pois todos sabemos de nossos deveres, todos podemos comunicar da mesma alegria. Basta abrir a porta.

 

  1. 8.      Vejo que sua obra é povoada por esposas vegetais, animais contemporâneos ou míticos, seres heterogêneos. Seus versos evocam o caráter trans-humano da arte, como em “Invenção do olfato: “Dizem que nunca o artista é inteiramente humano/ seu rosto modelado por visível piedade/ Fala também com os répteis do lobo e sonha”. O filósofo francês François Lyotard cita em O inumano uma frase de Apollinaire segundo a qual “a Arte mantém-se fiel aos homens unicamente por sua inumanidade para com eles”. O que você pensa dessa relação entre a arte e o não humano?

 

Rodrigo de Haro: Devemos acreditar na comunhão dos seres, das coisas. O olhar da criança é um olhar cúmplice dos anjos, logo fala com as coisas e os bichos. “O olho da flor da arnica amarela à minha porta, piscou-me esta manhã”. Toda poesia de verdade será trans-humana por definição, pois cabe a ela restabelecer uma corrente rompida na queda, o antigo elo solidário entre as coisas e as criaturas.

 

  1. 9.      Espelho dos Melodramas e Folias do ornitorrinco: como se pode falar dessas obras que você lançar pela Editora da UFSC?

 

Rodrigo de Haro: E esses dois volumes de poesia acompanham Voz, Idílios vagabundos e Lanterna mágica, outros inéditos que produzi nos últimos tempos, neste voluntário recolhimento do Morro do Assopro. O primeiro deles representa minha adesão ao campo lírico, ao drama – pois trata (por vezes) do excesso, dos movimentos violentos ou dolorosos do espírito, mas com humor. Já Folias do Ornitorrinco obedece a um caráter sintético. São dois livros diferentes, mas compostos pelo mesmo homem. Estão próximos.

 

  1. 10.   Quais são os grandes autores da literatura brasileira e qual a melhor contribuição que deram, no seu ponto de vista, à renovação literária?

 

Rodrigo de Haro: Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso.

 

  1. 11.   Na convivência com o multiartista Rodrigo de Haro, percebe-se que estamos diante de um homem de 72 anos com uma rotina de trabalho diria até rigorosa, obstinada. Como é essa rotina e o que o move dessa forma ao trabalho artístico? Você se sente tomado por um sentimento de urgência de criação?

Rodrigo de Haro: Trabalho artístico ou simplesmente trabalho… Com o tempo, estabelecida a rotina, torna-se impossível fugir a ela. O trabalho de um atelier-escritório é riquíssimo. É tudo a fazer o tempo todo. Os quadros te arrastam para o cavalete, os cadernos sussurram nos ouvidos. Impossível aproximar-se do material sem ser de novo absorvido pelo visgo da invenção, do retoque, de alguma nova sugestão.

 

  1. 12.   Que outros projetos ainda estão saindo do atelier multiartístico de Rodrigo de Haro? A propósito, qual a importância do ambiente de trabalho no seu processo de criação?

Rodrigo de Haro: Sempre são muitos os projetos, pois o hábito contínuo da reflexão se resolve em sonhos de realização urgentíssimos. Nada é mais importante do que sonhar para materializar.

 

* Jornalista na Secretaria de Cultura e Arte da UFSC, professora de Jornalismo na Unisul e doutoranda em teoria literária na UFSC com a tese “Devires do inumano na literatura e na arte”. Publicou pela Editora da UFSC e IOESP  “Leituras do hipertexto; viagem ao Dicionário Kazar”. Assina diversos ensaios publicados em livros, revistas e jornais sobre literatura, cinema e cultura em geral.