Poesia e performance: uma entrevista com Ricardo Aleixo – Sérgio Medeiros

Florianópolis, 21 de novembro de 2011.

Poesia e performance: uma entrevista com Ricardo Aleixo.

Por Sérgio Medeiros*

 

                                              Ricardo Aleixo

No livro “Modelos Novos” (Crisálida, Belo Horizonte, 2010), o poeta e performer Ricardo Aleixo afirma: “Comparado aos outros títulos que compõem a minha pequena bibliografia, ‘Modelos Vivos’ é o que mais me exigiu em termos de realização prática. Isso porque, depois de um longo período de dedicação intensiva às performances, aos vídeos, aos objetos tridimensionais, às peças de arte sonora e às canções, demorei até identificar, em meio ao grande número de poemas que criei nos últimos anos, quais deles dariam conta de falar da errância que é, desde sempre, a marca principal da minha trajetória como poeta”.

Nesta entrevista, Ricardo Aleixo não apenas fala dessa trajetória como também discute aspectos do novo livro, finalista de dois grandes prêmios literários: O Portugal Telecom de Literatura e o Jabuti.

SM: Poesia e performance são termos sinônimos? Práticas complementares?
RA: Tomo-as como práticas complementares, sim, Sérgio. Entendo a escrita da poesia e a corpografia, que é a definição que dou à forma particular pela qual pratico e penso a performance, como formas de leitura. Insisto na ideia de que o ato da leitura é, também, um gesto performativo, por envolver modos específicos de agenciamento do corpo na apreensão de um determinado texto. Escrevo sempre tendo em mente, mais que o “leitor Ninguém” imaginado por João Cabral, o leitor que efetivamente sou. E que continuarei a ser ao performar – lembrando que performar significa, no meu projeto poético, uma forma de dar a ler, em perspectiva ampliada (verbivocovisual, diriam James Joyce e os concretos), elementos já virtualmente presentes no texto escrito que só por meio da ação do corpo e da voz (que também é corpo) podem ser de fato materializados.

SM: O livro “Modelos Vivos” dialoga com artistas plásticos. Poderia comentar sua afinidade com Hélio Oiticia e Arthur Bispo do Rosário?
RA: Com Hélio Oiticica aprendi, principalmente, que pensamento e obra são inseparáveis: o corpo pensa. Tal premissa, de resto, está presente em outros artistas do grupo neoconcreto, como Lygia Clark e Lígia Pape – com esta última eu tive a alegria de conviver por um brevíssimo tempo, num workshop sobre palavra e imagem que ela ofereceu aqui em Belo Horizonte, no final da década de 1990. Voltando a Oiticica, também veio dele o gosto que desenvolvo, desde sempre, pela relativização das diferenças entre as artes. “O que faço é música”. A ligação com Bispo do Rosário é de outra ordem. Gosto dele, sou fascinado por seu fazer obstinado, por sua mística, e isso é tudo o que sei dizer a respeito. Aquele “só faço porque a voz manda” que ele dispara (como explicação a uma mulher que visita o seu espaço de trabalho) no belo documentário O prisioneiro da passagem, de Hugo Denizart, me intriga, me provoca, me interroga sobre a tal voz que, vez ou outra, também julgo ouvir, e que me obriga a fazer o que faço.

SM: Como você descreveria a relação entre palavra e imagem em “Modelos Vivos”? É sempre necessária? Às vezes imprevista ou conflituosa?
RA: Palavra é imagem. Imagem em termos plástico-visuais e imagem como, digamos assim, dispositivo mental que desencadeia aquele tão rico quanto complexo processo a que damos o nome de imaginação. Desculpe-me se simplifico, mas é desse modo que vejo a coisa. Acontece com relativa frequência o seguinte: aproximo um grupo de palavras, num poema e, por exemplo, uma fotografia cujo tema nada tem a ver com o poema, o que convida o leitor a tentar buscar, ele próprio, as analogias possíveis entre uma e outra coisa. Faço isso não por amor ao conflito em si, mas por intuir que há, na raiz desse processo de aproximação de elementos aparentemente díspares, algo que já estava lá, aí, aqui, em algum lugar, e que é – para mim, e só para mim – necessário revelar.

SM: Como é seu diálogo com os poetas contemporâneos?
RA: Vale, aqui, um tanto por blague, a pergunta de Duchamp, que reproduzo de memória: “Quão contemporâneo? De 1910?”. Falando sério, gosto do dito de Octavio Paz, naquele bonito e pequeno livro sobre Duchamp, em que ele fala da possibilidade da gente ser “de todos os tempos sem deixar de ser do instante”. Assim, sou contemporâneo tanto de Mário Faustino e John Cage quanto de Manoel Ricardo de Lima e Caroline Bergvall. São escolhas minhas, da poética que me empenho em desenvolver. Com um detalhe importante: sou um leitor compulsivo de tudo – não excluo o que quer que seja antes de me entregar a um processo de leitura que me permita contemplar a questão dos mais diferentes ângulos. Tentando ser mais direto, digo que meu diálogo com os poetas de agora, com os contemporâneos de agora, mais próximos de mim, é ao mesmo tempo aberta e tensa, tensionada. Me atraem mais, sempre, os que se projetam sem tantas certezas, na busca menos de respostas que de reproposições da pergunta sobre o que é a poesia, como ela pode ser feita hoje, para que serve e a quem se destina. Poetas assim são raros, mas existem, e a eles eu dedico boa parte do meu tempo de leitor:
entrevistando-os, musicando seus poemas, convidando-os para os eventos públicos que organizo, resenhando seus livros, respondendo às questões que levantam sobre meu próprio trabalho, como faço agora com você, que tão gentilmente me permitiu abordar aspectos que considero importantes de  destacar no meu trabalho.

SM: Poderia falar da influência do concretismo na sua obra?
RA: Os concretos me ensinaram a ler – se é certo que já aprendi a fazê-lo. Augusto de Campos, mais que todos os outros poetas, concretos ou não, me fez e faz crer na possibilidade de ir além das demarcações prévias de território. O único território que conta para o poeta, parece me dizer a todo tempo a poesia de Augusto, é o da movência, da instabilidade, do trânsito, da “pergunta que repergunta”, incômoda e incontornável. Eu me entrego a práticas estéticas que não cabem no paideuma concreto (como a série de orikis, por exemplo, ou o poemanto, arte vestual), mas deixo claro que só cheguei a tais hipóteses criativas por ser, como me defino, um “discípulo indisciplinado” do maior poeta brasileiro vivo. Amo, acima de tudo, em Augusto, o que é pura recusa. Sua radicalidade. Sua música de tão difícil beleza. Sua insistência em nos mostrar que ler é aprender, a cada novo poema – nosso ou de outros poetas –, aprender a ler. A Décio Pignatari também devo muito, principalmente no que diz respeito ao trânsito entre os códigos. Livros como o fabuloso Contracomunicação fizeram com que eu, muito novo ainda, começasse a me interessar por semiótica. Para dizer o mínimo, é a partir da definição que ele dá do poeta como um “designer da linguagem” que eu organizo os fundamentos da minha pesquisa interartes, da minha “obra permanentemente em obras”, como gosto de dizer. E há, claro, os poemas: “terra”, “life”, “organismo”, além de muitos dos pré-concretos, são exemplos inquestionáveis da excelência poética de Décio. Haroldo me marca menos, embora eu seja, ainda hoje, leitor de toda a sua vastíssima produção. Gosto especialmente do barroquismo das Galáxias, sobretudo quando as escuto na estupenda série de vocalizações que o poeta gravou nos anos 1990. Admito que poemas meus que se organizam por meio da adoção de um princípio permutacional, como “Para uma eventual conversa sobre poesia com o fiscal de rendas”, do livro Trívio, e alguns outros, devem respostas a Haroldo – e também a Affonso Ávila, outro maioral da poesia de invenção, que soube compor sua obra em diálogo aberto e crítico com os concretos, sem se render à ortodoxia da fase “heróica” do movimento. Também revisito sempre as obras de José Lino Grünewald, Ronaldo Azeredo e Edgard Braga – deste me veio o gosto pelas manuscrituras, que pratico desde meados da década de 1980 – e sou entusiasta da obra de Wlademir Dias Pino, um ex-concreto que, dos grandes poetas experimentais surgidos no mundo dos anos 50 em diante, talvez seja o mais desconhecido. Quero muito poder colaborar para retirar a obra de Wlademir da invisibilidade em que ela se encontra.

UMA ESTROFE DE “MODELOS VIVOS”:
“Sou, quando coloco sobre / meu corpo (negro) / o pedaço de pano (preto) / coberto por palavras grafadas / com tinta (branca) / ao qual dei o nome / de poemanto, / um performador.”

*poeta e professor de literatura da UFSC.