Entrevista com o compositor Silvio Ferraz – Sérgio Medeiros

Florianópolis, 28 de agosto de 2011

ENTREVISTA COM O COMPOSITOR SILVIO FERRAZ*

Por Sérgio Medeiros**

P. Recentemente, o Quarteto Arditti, referência mundial em música erudita e contemporânea, tocou em São Paulo uma peça sua, dedicada ao grande compositor José Antônio Rezende de Almeida Prado, conhecido apenas como Almeida Prado. Poderia comentar essa obra, “Litania”, sua execução e a homenagem ao compositor paulista, morto em 2010?

R. “Litania”…, a série de coincidências. Diversos pontos me ligam a Almeida Prado. Quando garoto, meu pai me deu um disco com “Cartas Celestes”, ele, astrônomo, tinha assistido a um concerto com esta obra. Almeida escreveu suas peças a partir das “Cartas Celestes” de Ronaldo Mourão, uma espécie de padrinho para mim. Por volta de 1992 recebi um telefonema de Almeida Prado, conversamos por cerca de quatro horas, não nos conhecíamos e só viríamos a nos encontrar pessoalmente no ano de 2002, na defesa de tese de Adriana Lopes na UNICAMP, que tinha por tema os “Poesilúdios” de Almeida Prado. Almoçamos juntos e conversamos um bocado.
Só reencontrei Almeida no ano passado, 2010, e por duas vezes. A primeira, em um concurso de composição em que fomos júri, a segunda – a última – em Cuiabá, sob um calor de 43 graus. Nas duas ocasiões conversamos um bocado sobre sua música e sobre a grande série de “Cartas Celestes”. Muitas vezes com Almeida falando quase que em tom de brincadeira sobre a série, que tomou sua vida de compositor.
Passados não mais de 20 dias, vim a saber que Almeida havia sido hospitalizado. Face ao cansaço que se manifestava em Cuiabá, já imaginava que as coisas não seriam simples para ele. Em Cuiabá ouvimos juntos o Quarteto da Universidade do Rio Grande do Norte interpretando seu “Livro Sonoro”, obra que escreveu ainda sob orientação de Nadia Boulanger: “Très bien mon chéri! Elle est plaine de lumière. Maintenant tu commence”. Almeida adorava fazer tais interjeições em francês, imitando a velha amiga Boulanger, sua tutora nos anos de Paris.
No final do ano passado perdemos este nosso amigo, este que talvez tenha sido o grande sucessor de Villa-Lobos sem que nos déssemos conta.
Eu já andava às voltas com a encomenda que Irvine Arditti me fizera em agosto. E até mesmo comentei isto com Almeida, que logo me disse: “Escreva o que quiser, mas que seja música tua, não sei deixe levar pela sonoridade do grupo, você deve se manter íntegro em um processo deste”, e me contou algumas de suas experiências com grandes músicos e suas técnicas instrumentais.
Mas a encomenda não ia para a frente. Foi então que mais coincidências se deram e dia depois da morte de Almeida recebi um pacote com o livro de sua tese de doutorado, “Cartas Celestes: Uma uranografia sonora”…, ele dava títulos geniais, quase sempre beirando a ironia.
A “Litania”, que faz parte de um grupo de peças que tenho escrito a partir deste afeto forte que é o vazio, nasceu então como que um adeus e um obrigado, intercalando ondulações (como uma respiração, como ruídos da noite, como um parque de diversões) em constelações e nebulosas. Deveria se chamar “Constelações-Nebulosas”…, mas esta terminologia pertence a Almeida e a meu pai, que é astrofísico.
P. Almeida Prado foi aluno de Olivier Messiaen. Sabemos que você escreveu uma tese de doutorado sobre o mestre francês. O que Messiaen significa para você?

R. Me apaixonei por Messiaen ainda na faculdade, um dia confisquei (em nome da cultura…rsrssr), em uma loja de música, uma fita rolo contendo exemplos de música do séc. XX. Uma publicação alemã e toda correta, mas com uma faixa estranha, sem título, em que havia uma profusão de instrumentos de cordas tocando cantos de pássaros encavalados, impressionante. Imediatamente imaginei que aquilo fosse Messiaen, o compositor que era quase que incógnita na faculdade. Messiaen era nome de livro, mas cuja música ninguém conhecia além de seu quarteto. Ingênuo, fui então procurar o quarteto, quando descobri que o tal do quarteto não era um quarteto de cordas tradicional, mas uma formação inusitada com violino, clarinete, piano e violoncelo. E nada de pássaros em profusão. O “Quarteto para o fim do tempo”, embora com este título forte, era bem menos impressionante do que aquela profusão louca que eu havia ouvido.
Muitos anos depois, apaixonado por cantos de pássaros e imaginando que o homem começou a cantar por imitar os pássaros, fui atrás de Messiaen e sua obra no CDMC de Campinas. Lá encontrei a profusão, mas na forma de sopros e não cordas: “Les oiseaux de Karuizawa”, um dos movimentos de seu “7 Haikais”. Por sorte entrei em contato com a editora, que me doou uma cópia da partitura. Pude estudar este e outros pássaros, até mesmo escrevi ao Messiaen, enviando alguns pássaros brasileiros – a carta que ficou sem resposta…, estava bem mal escrita…e com uma letra que devia ser ilegível. Ao fim das contas, cheguei a “Chronochromie” e, finalmente, à profusão de pássaros tocados por instrumentos de cordas.
Não gosto muito do canto humano vocal. Gosto da música popular brasileira, do canto barroco, mas a voz de ópera, a voz do bel canto me incomoda terrivelmente. Com a adesão às vanguardas no tempo de estudante, aderi também à composição não melódica e também não regular, optando sempre pela composição textural ou de estruturas de métrica irregular. O canto dos pássaros me ajudou a voltar a ouvir e imaginar melodias. E seu mecanismo, o da reiteração, me chamou a atenção, deste o meu mestrado, em que estudei as aulas de Paul Klee e seu pensamento sobre o ritmo. Foi por conta dos pássaros, da reiteração não minimalista, da composição por ritmos irregulares, das tramas sonoras, que cheguei a Messiaen, como um dos focos principais de minha tese de doutorado. Na tese o foco é a filosofia da diferença de Gilles Deleuze e sua aproximação à música, o que eu já havia tentado desenvolver no mestrado, mas sem êxito. Messiaen vem de reboque, segundo entendo, por uma via não significante da música, um viés nem atrelado à estrutura nem ao tema – muito embora fosse um homem religioso e os títulos de suas obras sejam todos cheios de referências no mundo cristão.
Recentemente, Messiaen reapareceu, quando orientei a tese de doutorado do jovem Tadeu Tafarello, que se propôs fazer um estudo comparativo entre Messiaen e Almeida Prado, analisando as obras de Almeida antes e depois de Paris. Interessante trabalho, com uma longa entrevista com o compositor brasileiro.

P. Poderia comentar as relações entre música e natureza, e entre música e tecnologia, na sua obra e nas suas aulas no curso de composição da UNICAMP?

R. A música e a natureza, antes de tudo. O canto dos pássaros, a música indígena (seguindo a máxima do “bon sauvage”), as pequenas tramas de ruídos cíclicos de uma boca de mata, o jogo cíclico irregular da ondas do mar, a textura irregular da areia, a proliferação de plantinhas nas fendas de terrenos carcomidos pela erosão, a polifonia de linhas de montanhas quando se olha um complexo como a serra do mar ou a Mantiqueira. E tudo isto marcado por um jogo entre repetir e não repetir, entre ser regular e irregular, entre ser fácil de ouvir e denso.
Já a tecnologia, só se ela vier ajudar a reforçar estas tramas e repetições.

P. Você já propôs que a música é “um grande bate-papo de sons”. Poderia comentar isso?

R. Imagine que exista uma língua, e que nesta língua as palavras não digam nada a não ser sua presença. As palavras podendo ser mais rápidas, mais lentas, mais fortes, mais fracas. Talvez esta seja a língua da música e com ela um compositor de hoje pode conversar com um sabe-se lá quando, sabe-se lá onde. São ciclos pulsantes que ora atraem ora repelem. É neste sentido que imagino este grande bate-papo, um compositor conversando com outro, uma música de um lugar conversando com outra, a música do homem conversando com o mundo sonoro dos bichos e da terra, ou mesmo com o mundo sonoro das máquinas em um parque industrial. Acho que um exemplo é a poesia-ideograma de Henri Michaux. Ele escreve com riscos, com borrões, a gente se sente atraído, quase que acha que está entendendo, mas não tem nada escrito lá. Tem só um código e este código é atraente e mantém os olhos do leitor presos nele. Imagino uma música como os poemas de Michaux…Claro, existe uma distância entre imaginar este jogo de sedução para ouvidos e conseguir realizá-lo.

P. Seu pai, Sylvio Ferraz Mello, é físico, e seu irmão, Heitor Ferraz Mello, é poeta. Sua música dialoga com a astronomia do primeiro e com os versos do segundo?

R. Algumas poucas vezes os poemas de meu irmão entraram no jogo musical. Quando estudante, escrevi uma peça para coral. Gravei uma longa melodia em fita k7 e passei ao Heitor, que então escreveu um poema que respirava como a música. Refizemos a brincadeira umas três vezes mais. Já em 2003, escrevi uma série para coro e piano (encomenda do Coro da OSESP) a partir de “Goethe e o olho do lagarto”. Gostei muito do resultado. E, finalmente, há dois anos, tomei um poema do Heitor que falava um pouco de nossa infância e das estrelas, “Estrelas Duplas”, e fiz uma curta peça eletroacústica com a voz do Heitor lendo o poema e sendo deformada por umas constelações ou nebulosas eletrônicas.
Já a astronomia…, difícil, é uma área complicada, a matemática daquilo é de verdade…, e minha cosmogonia é mais terrena que espacial. Sou mais de ouvir rangidos de carro de boi do que estrelas.

* Compositor, professor e autor de uma tese sobre Olivier Messiaen, o paulista Silvio Ferraz é um dos nomes mais promissores da cena musical contemporânea. Já participou dos principais festivais brasileiros de música contemporânea e foi diretor artístico do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, em 2010. Nesta entrevista, ele apresenta sua estética e comenta sua relação com a natureza e os compositores que o influenciaram
** Poeta, tradutor e ensaísta. Professor de literatura na UFSC.