Palestinos e judeus ganham voz na ópera de John Adams – Dirce Waltrick do Amarante
Palestinos e judeus ganham voz na ópera de John Adams
Dirce Waltrick do Amarante*
A ópera The Death of Klinghoffer (A morte de Klinghoffer), do compositor norte-americano John Adams, estreou no dia 20 de outubro sob protestos, que se repetem a cada nova apresentação, no Metropolitan Theatre (MET), em Nova York. Desse modo, diria, o espetáculo começa antes mesmo de se entrar no teatro. Do lado de fora, na rua, manifestantes erguem cartazes contra a apresentação da ópera, considerada por muitos como antissemita. Policias impedem a aproximação dos manifestantes e, na entrada do teatro, espectadores são minuciosamente revistados.
Escrita em 1991, a ópera de Adams, com libreto assinado por Alice Goodman, trata de um tema sempre atual, o conflito entre judeus e palestinos, a partir de um fato histórico ocorrido em outubro de 1985, quando o navio italiano Achille Lauro, com turistas de diferentes nacionalidades a bordo, foi sequestrado por um grupo da Frente de Libertação da Palestina. Na ocasião um turista norte-americano de origem judaica, Leon Klinghoffer, que se locomovia em cadeira de rodas, foi covardemente assassinado e seu corpo assim como sua cadeira foram arremessados no mar.
As apresentações da ópera têm sido tumultuadas desde sua primeira apresentação, em 1991, em Bruxelas. Vale lembrar que Adams começou a trabalhar na ópera, em 1989, quando a Primeira Guerra do Golfo estava por explodir, deixando os americanos e o mundo divididos com relação aos ataques. Naquela época (e ainda hoje) muitos artistas, como Adams, acreditavam que ao darem voz aos vencidos e ao criarem obras polifônicas filosófica e culturalmente poderiam melhorar o mundo.
Neste ano, em que os judeus foram acusados de massacrar a população palestina, em ataques que não pouparam crianças, velhos e doentes, a reapresentação da ópera ganhou um caráter “antissemita” ainda maior. Além disso, dar voz aos palestinos pode ser entendido como atenuar os ataques terroristas e “dar-lhes razão”, mas, num libreto tão complexo quanto o de Alice Goodman, essas conclusões não são tão fáceis assim. Se por um lado o sofrimento dos palestinos é ressaltado em frases como: “A casa do meu pai foi destruída em 1948 quando os israelenses atravessaram a nossa rua”. Outras passagens, como essa cantada por um dos terroristas, demonstram a impossibilidade de diálogo com os judeus: “o dia que meu inimigo e eu sentarmos pacificamente […] nesse dia nossa esperança morre”.
Do mesmo modo, Klinghoffer, que representaria todos os judeus, é o bode expiatório, ou seja, o inocente livre contra o qual se volta o ódio da humanidade.
A ópera abre com o coro dos palestinos exilados e, em seguida, o coro dos judeus exilados. Os dois coros têm exatamente a mesma duração. Os palestinos falam da perda de suas casas, das árvores que lhes deram sombra … . Os judeus parecem perdidos e perplexos diante de uma terra e de um país que deveriam construir.
É interessante notar que na montagem deste ano, findo o coro dos palestinos, os atores (que representam mulheres) tiram suas burcas no palco, seguram-nas como se fossem casacos e passam a interpretar o povo judeu. A importância da cena está em demonstrar, parece-me, que por baixo de roupas, costumes e tradições, são todos seres-humanos.
Um leitmotiv importante é o ressurgimento de grupo de mulheres palestinas ao longo da apresentação, quando elas atravessam o palco, representando a impossibilidade de se fixarem no seu território. O grupo representa também uma consciência coletiva que fala em nome dos desejos individuais e pressiona os terroristas a lutarem por um bem comum.
Saí da ópera com a sensação de que é insano viver em qualquer um dos lados desse conflito, do qual, por causa de uma impossibilidade de diálogo, só existem vítimas.
No dia 15 de novembro, haveria a transmissão ao vivo da ópera para muitas cidades ao redor do mundo, mas o diretor do MET concordou, depois dos protestos, em cancelar a transmissão. Perdemos nós, espectadores, a oportunidade de participar desse conflito artístico e político e de ver o brasileiro Paulo Szot como capitão do Achille Lauro.
*Professora do Curso de Artes Cênicas da UFSC. Texto publicado no jornal “Notícias do Dia”.